"O CV II se trata de um concílio pastoral que não definiu nenhum ponto de doutrina nem condenou nenhum erro, mas apenas quis adaptar a Igreja ao mundo moderno secular em oposição ao espírito dos papas que condenaram o liberalismo (Syllabus, de Pio IX)".
DECLARAÇÃO
NOSTRA AETATE
SOBRE A IGREJA
E AS RELIGIÕES NÃO-CRISTÃS
NOSTRA AETATE
SOBRE A IGREJA
E AS RELIGIÕES NÃO-CRISTÃS
Laços comuns da humanidade e
inquietação religiosa do homem;
a resposta das diversas religiões não-cristãs e sua relação com a Igreja
a resposta das diversas religiões não-cristãs e sua relação com a Igreja
1. Hoje, que o género humano se
torna cada vez mais unido, e aumentam as relações entre os vários povos, a
Igreja considera mais atentamente qual a sua relação com as religiões
não-cristãs. E, na sua função de fomentar a união e a caridade entre os homens e
até entre os povos, considera primeiramente tudo aquilo que os homens têm de
comum e os leva à convivência.
Com efeito, os homens constituem
todos uma só comunidade; todos têm a mesma origem, pois foi Deus quem fez
habitar em toda a terra o inteiro género humano (1); têm também todos um só fim
último, Deus, que a todos estende a sua providência, seus testemunhos de
bondade e seus desígnios de salvação (2) até que os eleitos se reunam na cidade
santa, iluminada pela glória de Deus e onde todos os povos caminharão na sua
luz (3). Os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da
condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam seus
corações: que é o homem? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o pecado?
donde provém o sofrimento, e para que serve? qual o caminho para alcançar a
felicidade verdadeira? que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte?
finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual
vimos e para onde vamos?
Hinduísmo e Budismo
2. Desde os tempos mais remotos
até aos nossos dias, encontra-se nos diversos povos certa percepção daquela
força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos; encontra-se
por vezes até o conhecimento da divindade suprema ou mesmo de Deus Pai.
Percepção e conhecimento esses que penetram as suas vidas de profundo sentido
religioso. Por sua vez, as religiões ligadas ao progresso da cultura, procuram
responder às mesmas questões com noções mais apuradas e uma linguagem mais
elaborada. Assim, no hinduísmo, os homens perscrutam o mistério divino e
exprimem-no com a fecundidade inexaurível dos mitos e os esforços da penetração
filosófica, buscando a libertação das angústias da nossa condição quer por meio
de certas formas de ascetismo, quer por uma profunda meditação, quer,
finalmente, pelo refúgio amoroso e confiante em Deus. No budismo, segundo as
suas várias formas, reconhece-se a radical insuficiência deste mundo mutável, e
propõe-se o caminho pelo qual os homens, com espírito devoto e confiante,
possam alcançar o estado de libertação perfeita ou atingir, pelos próprios
esforços ou ajudados do alto a suprema iluminação. De igual modo, as outras
religiões que existem no mundo procuram de vários modos ir ao encontro das
inquietações do coração humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas e normas
de vida e também ritos sagrados.
A Igreja católica nada rejeita do
que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito
esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem
em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, reflectem
não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela
anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, «caminho,
verdade e vida» (Jo. 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida
religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas (4).
Exorta, por isso, os seus filhos
a que, com prudência e caridade, pelo diálogo e colaboração com os sequazes
doutras religiões, dando testemunho da vida e fé cristãs, reconheçam, conservem
e promovam os bens espirituais e morais e os valores sócio culturais que entre
eles se encontram.
A religião do Islão
3. A Igreja olha também com
estima para os muçulmanos. Adoram eles o Deus Único, vivo e subsistente,
misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra (5), que falou aos
homens e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuram submeter-se de todo o
coração, como a Deus se submeteu Abraão, que a fé islâmica de bom grado evoca.
Embora sem o reconhecerem como Deus, veneram Jesus como profeta, e honram
Maria, sua mãe virginal, à qual por vezes invocam devotamente. Esperam pelo dia
do juízo, no qual Deus remunerará todos os homens, uma vez ressuscitados. Têm,
por isso, em apreço a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a
oração, a esmola e o jejum.
E se é verdade que, no decurso
dos séculos, surgiram entre cristãos e muçulmanos não poucas discórdias e
ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que, esquecendo o passado,
sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a
justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens.
A religião judaica
4. Sondando o mistério da Igreja,
este sagrado Concílio recorda o vínculo com que o povo do Novo Testamento está
espiritualmente ligado à descendência de Abraão.
Com efeito, a Igreja de Cristo
reconhece que os primórdios da sua fé e eleição já se encontram, segundo o
mistério divino da salvação, nos patriarcas, em Moisés e nos profetas. Professa
que todos os cristãos, filhos de Abraão segundo a fé (6), estão incluídos na
vocação deste patriarca e que a salvação da Igreja foi misticamente prefigurada
no êxodo do povo escolhido da terra da escravidão. A Igreja não pode, por isso,
esquecer que foi por meio desse povo, com o qual Deus se dignou, na sua
inefável misericórdia, estabelecer a antiga Aliança, que ela recebeu a
revelação do Antigo Testamento e se alimenta da raiz da oliveira mansa, na qual
foram enxertados os ramos da oliveira brava, os gentios (7). Com efeito, a
Igreja acredita que Cristo, nossa paz, reconciliou pela cruz os judeus e os
gentios, de ambos fazendo um só, em Si mesmo (8).
Também tem sempre diante dos
olhos as palavras do Apóstolo Paulo a respeito dos seus compatriotas: «deles é
a adopção filial e a glória, a aliança e a legislação, o culto e as promessas;
deles os patriarcas, e deles nasceu, segundo a carne, Cristo» (Rom. 9, 4-5),
filho da Virgem Maria. Recorda ainda a Igreja que os Apóstolos, fundamentos e colunas
da Igreja, nasceram do povo judaico, bem como muitos daqueles primeiros
discípulos, que anunciaram ao mundo o Evangelho de Cristo.
Segundo o testemunho da Sagrada
Escritura, Jerusalém não conheceu o tempo em que foi visitada (9); e os judeus,
em grande parte, não receberam o Evangelho; antes, não poucos se opuseram à sua
difusão (10). No entanto, segundo o Apóstolo, os judeus continuam ainda, por
causa dos patriarcas, a ser muito amados de Deus, cujos dons e vocação não
conhecem arrependimento (11). Com os profetas e o mesmo Apóstolo, a Igreja
espera por aquele dia. só de Deus conhecido, em que todos os povos invocarão a
Deus com uma só voz e «o servirão debaixo dum mesmo jugo» (Sof. 3,9) (12).
Sendo assim tão grande o
património espiritual comum aos cristãos e aos judeus, este sagrado Concílio
quer fomentar e recomendar entre eles o mútuo conhecimento e estima, os quais
se alcançarão sobretudo por meio dos estudos bíblicos e teológicos e com os
diálogos fraternos.
Ainda que as autoridades dos
judeus e os seus sequazes urgiram a condenação de Cristo à morte (13) não se
pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem
aos judeus do nosso tempo, o que na Sua paixão se perpetrou. E embora a Igreja
seja o novo Povo de Deus, nem por isso os judeus devem ser apresentados como
reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa se concluísse da Sagrada
Escritura. Procurem todos, por isso, evitar que, tanto na catequese como na
pregação da palavra de Deus, se ensine seja o que for que não esteja conforme
com a verdade evangélica e com o espírito de Cristo.
Além disso, a Igreja, que reprova
quaisquer perseguições contra quaisquer homens, lembrada do seu comum
património com os judeus, e levada não por razões políticas mas pela religiosa.
caridade evangélica. deplora todos os ódios, perseguições e manifestações de
anti-semitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja quem for a
pessoa que isso promoveu contra os judeus.
De resto, como a Igreja sempre
ensinou e ensina, Cristo sofreu, voluntariamente e com imenso amor, a Sua
paixão e morte, pelos pecados de todos os homens, para que todos alcancem a
salvação. O dever da Igreja, ao pregar, é portanto, anunciar a cruz de Cristo
como sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça.
A fraternidade universal e a
reprovação de toda a discriminação racial ou religiosa
5. Não podemos, porém, invocar
Deus como Pai comum de todos, se nos recusamos a tratar como irmãos alguns
homens, criados à Sua imagem. De tal maneira estão ligadas a relação do homem a
Deus Pai e a sua relação aos outros homens seus irmãos, que a Escritura afirma:
«quem não ama, não conhece a Deus» (1 Jo. 4,8).
Carece, portanto, de fundamento
toda a teoria ou modo de proceder que introduza entre homem e homem ou entre
povo e povo qualquer discriminação quanto à dignidade humana e aos direitos que
dela derivam.
A Igreja reprova, por isso, como
contrária ao espírito de Cristo, toda e qualquer discriminação ou violência
praticada por motivos de raça ou cor, condição ou religião. Consequentemente, o
sagrado Concílio, seguindo os exemplos dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, pede
ardentemente aos cristãos que, «observando uma boa conduta no meio dos homens.
(1 Ped. 2,12), se ‚ possível, tenham paz com todos os homens (14), quanto deles
depende, de modo que sejam na verdade filhos do Pai que está nos céus (15).
Roma, 28 de Outubro de 1965.
PAPA PAULO VI
Notas
1. Cfr. Act. 17,26.
2. Cfr. Sab. 8,1; Act.
14,17; Rom. 2, 6-7;1 Tim. 2,4.
3. Cfr. Apoc. 21, 23-24
4. Cfr. 2 Cor. 5, 18-19.
5. Cfr. S. Gregório VII, Carta
III, 21 a Anazir (Al-Názir), Rei da Mauritânia: ed. E. Gaspar, em
MGH, Ep. sel. II, 1820,
I; p. 288, 11-15; PL 148, 451 A.
6. Cfr. Gál. 3,7.
7. Cfr. Rom. 11, 17-24.
8. Cfr. Ef. 2, 14-16.
9. Cfr. Lc. 19,44.
10. Cfr. Rom. 11,28.
11. Cfr. Rom. 11, 28-29;
Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. De Ecclesia., Lumen gentium: AAS 57, (1965), p. 20.
12. Cfr. Is. 66,23; Salm.
65,4; Rom. 11, 11-32.
13. Cfr. Jo. 19,6.
14. Cfr. Rom. 12,18.
15. Cfr. Mt. 5,45
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