O segundo
fruto que se há de colher da consideração da primeira Palavra dita por Cristo
na Cruz
Tradução: Permanência
Se
os homens aprendessem a perdoar sem murmurações as injúrias que recebem, e
assim forçassem seus inimigos a converterem-se em amigos, tiraríamos uma
segunda e muito salutar lição da meditação da primeira palavra. O exemplo de
Cristo e da Santíssima Trindade há de ser um poderoso argumento para nisto nos
persuadirmos. Pois se Cristo perdoou e rezou por seus verdugos, que razão
pode ser alegada para que um cristão não atue de modo semelhante com seus
inimigos? Se Deus, nosso Criador,
o Senhor e Juiz de todos os homens, o qual
tem o poder de vingar-se imediatamente do pecador, espera seu arrependimento, e
o convida à paz e à reconciliação com a promessa de perdoar as traições feitas
à Divina Majestade, por que uma criatura não poderia imitar esta conduta, especialmente
se recordamos que o perdão de uma ofensa obtém grande recompensa? Lemos na
história de São Egelberto, Arcebispo de Colônia, assassinado por alguns
inimigos que o estavam esperando, que, na hora de sua morte, rezou por eles com
as palavras de Nosso Senhor: "Pai, Perdoa-lhes", e foi revelado que
este gesto foi tão agradável a Deus, que sua alma foi levada ao céu pelas mãos
dos anjos, e posta no meio do coro dos mártires, onde recebeu a coroa e a palma
do martírio, e sua sepultura tornou-se famosa por realizar muitos milagres.
Ó,
se os cristão aprendessem quão facilmente poderiam obter tesouros inesgotáveis,
se apenas o quisessem; e quão facilmente alcançariam graus notáveis de honra e
glória pelo domínio das várias agitações de suas almas e desprezo magnânimo dos
pequenos e triviais insultos, certamente não seriam tão duros de coração e tão
obstinados contra o indulto e o perdão.
Objeta-se
que agiriam contrariamente à natureza caso se permitissem ser injustamente
rechaçados com desprezo ou ultrajados por obra ou palavra: se os animais
selvagens, que apenas seguem o instinto natural, atacam de forma selvagem seus
inimigos quando os vêem, e os subjugam com garras e dentes, também nós, à vista
de nosso inimigo, sentimos o sangue a ferver e o desejo de vingança aflorar.
Tal argumento é falso. Não faz distinção entre a defesa própria, que é válida,
e o espírito de vingança, que é inválido. Ninguém pode achar falta em um homem
que se defende por uma causa justa, e a natureza nos ensina a rechaçar a força
com a força — mas não nos ensina a vingar-nos nós mesmos uma injúria que
tivermos recebido.
Ninguém
nos impede tomar as precauções necessárias para nos preparamos contra um
ataque, mas a lei de Deus nos proíbe que sejamos vingativos. O castigo de uma
injustiça pertence não ao indivíduo privado, mas ao magistrado público, e, por
isso que Deus é o Rei dos reis, Ele clama e diz: "A mim me pertence a
vingança, eu retribuirei"1.
Quanto
ao argumento de que um animal é levado por sua própria natureza a atacar o
animal inimigo de sua espécie, respondo que isto é o resultado de serem animais
irracionais, que não podem distinguir entre a natureza e o que é vicioso na
natureza. Mas os homens, que são dotados de razão, hão de traçar uma linha
entre a natureza ou a pessoa, que, criadas por Deus, são boas, e o vício ou o
pecado que é mau e não procede de Deus. Da mesma maneira, quando um homem for
insultado, deve amar a pessoa de seu inimigo e odiar o insulto, e deve antes se
compadecer dele que se perturbar com ele, assim como um médico que ama seus
pacientes e lhes prescreve com o devido cuidado, mas que odeia a enfermidade e
luta com todos os recursos a sua disposição para afugentá-la, destruí-la,
torná-la inofensiva. E isto é o que o Mestre e Doutor de nossas almas, Cristo
Nosso Senhor, ensina quando diz: "Amai os vossos inimigos, fazei bem aos
que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e caluniam"2.
Cristo, nosso Mestre, não é como os Escribas e Fariseus que se sentavam na
cátedra de Moisés e ensinavam, mas não praticavam o que ensinavam. Quando subiu
ao púlpito da Cruz, Ele praticou o que ensinou ao rezar por seus inimigos, que
amava: "Pai, Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". Porém, a
razão pela qual a visão de um inimigo faz que em algumas pessoas o sangue ferva
em suas veias, é esta: são animais que não aprenderam a trazer as moções da
parte inferior da alma, comum tanto à raça humana como à criação selvagem, sob
o domínio da razão, ao passo que os homens espirituais não estão sujeitos a
estes movimentos da carne, pois sabem como mantê-los controlados, e não se
turbam com aqueles que os injuriaram, senão que, ao contrário, se compadecem,
e, estendendo a eles atos de bondade, se esforçam por levar-lhes a paz e a
unidade.
Objeta-se
que isto é uma prova demasiado difícil e severa para homens de nascimento nobre,
os quais devem ser zelosos de sua honra. No entanto, não é assim. A tarefa é
fácil, pois, como testemunha o Evangelista, "o jugo" de Cristo, que
deu esta lei para guia de seus seguidores, "é suave, e sua carga
ligeira"3; e seus “mandamentos não são custosos” 4,
como afirma São João. E assim, se parecem difíceis e severos, parecem também
pelo pouco ou nenhum amor que temos por Deus, pois nada é difícil para aquele
que ama, como disse o Apóstolo: "A caridade é paciente, é benigna; tudo
desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre"5. Nem foi Cristo o
único que amou a seus inimigos — ainda que, na perfeição com a qual praticou a
virtude, a todos superou — pois o Santo Patriarca José amou com amor especial a
seus irmãos que o haviam vendido à escravidão. E na Sagrada Escritura lemos
como Davi, com muita paciência, resignou-se com as perseguições de seu inimigo
Saul, que por muito tempo procurou matá-lo; e que, quando pôde Davi tirar a
vida de Saul, não o matou. E sob a lei da graça, o proto-mártir Santo Estevão
imitou o exemplo de Cristo ao fazer esta oração enquanto o apedrejavam à morte:
"Senhor, não lhes impute este pecado"6. E Santiago
Apóstolo, Bispo de Jerusalém, que foi lançado de cabeça desde o cume do templo,
clamou no céu no momento de sua morte: "Senhor, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem". E São Paulo escreve de si mesmo e de seus companheiros
apóstolos: "amaldiçoam-nos e bendizemos; perseguem-nos e o sofremos; somos
difamados e rogamos"7 . Enfim, muitos mártires e
inumeráveis outros, logo após o exemplo de Cristo, não encontraram nenhuma
dificuldade em cumprir este mandamento. Mas pode haver alguns que continuem
argumentando: não nego que devemos perdoar nossos inimigos, mas escolherei o tempo
que me apraze fazê-lo, quando, em verdade, tenha quase esquecida a injustiça
que me foi feita, e tenha me acalmado após o primeiro arrebatamento de
indignação. Mas, quais seriam os pensamentos destes se fossem então chamados a
prestar as contas finais, e fossem encontrados sem o traje da caridade, e
fossem perguntados: "como entraste aqui, não tendo a veste nupcial?"
8. Por acaso não se assombrariam enquanto Nosso Senhor pronuncia sua
sentença: "Atai-o de pés e mãos, e lançai-o nas trevas exteriores; aí
haverá pranto e ranger de dentes." 9. Age melhor e com
prudência agora, e imita a conduta de Cristo, que rezou a seu Pai, "Pai,
perdoa-lhes", no momento em que era objeto de escárnios, quando o sangue
caía gota a gota de seus pés e mãos, e seu corpo inteiro era presa de torturas
dolorosas. Ele é o verdadeiro e único Mestre, cuja voz a devem escutar todos
que não serão guiados ao erro: a Ele se referiu o Pai Eterno quando uma voz se
ouviu do céu dizendo: "Ouviu-o". Nele estão "todos os tesouros
da sabedoria e da ciência" de Deus10. Se pudesses perguntar a
opinião de Salomão sobre qualquer assunto, poderias com segurança ter seguido
seu conselho, mas "aqui está quem é mais que Salomão"11.
Continuo
ainda a ouvir objeções. Se decidimos retribuir o mal com o bem, o insulto com a
bondade, a maldição com a benção, os maus se tornarão insolentes, os infames se
tornarão aprumados, os justos serão oprimidos, e a virtude calcada sob seus
pés. Este resultado não se dará, pois de ordinário, no dizer do Homem Sábio,
"a resposta branda aquieta a ira"12. Ademais, a paciência
de um homem justo não poucas vezes enche de admiração seu opressor, e o
persuade a estender a mão da amizade. Por outra, esquecemos que o Estado nomeia
magistrados, reis e príncipes, cujo dever é fazer que os malvados sintam a
severidade da lei, e prover meios para que os homens honestos vivam uma vida
tranqüila e pacífica? E se em alguns casos a justiça humana é tardia, a
Providência de Deus, que nunca permite que um ato malévolo passe sem castigo ou
um ato bom sem recompensa, está continuamente nos observando e, de um modo
imprevisível, cuidando para que as ocasiões em que os malvados crêem que
humilharão os virtuosos, conduzam estes à exaltação e honra. Pelo menos assim o
diz São Leão: "Estiveste furioso, ó perseguidor da Igreja de Deus,
estiveste furioso com o mártir, e aumentaste sua glória aumentando sua dor.
Pois que inventaste em tua ingenuidade que se voltasse em tua honra, se até
seus instrumentos de tortura foram tomados em triunfo?". O mesmo deve ser dito
de todos os mártires e santos da antiga lei, pois que trouxe mais reputação e
glória ao patriarca José que a perseguição de seus irmãos? O ter sido vendido
por inveja aos ismaelitas foi ocasião para que se convertesse em senhor de
todo Egito e príncipe de todos seus irmãos.
Mas,
omitindo estas considerações, passemos revista aos muitos e grandes
inconvenientes que sofrem aqueles homens que, apenas para escapar de uma sombra
de desonra diante dos homens, estão obstinados a se vingar daqueles que lhes fizeram
qualquer mal. Em primeiro lugar, agem como estultos ao preferir um mal maior a
um menor. Pois é um princípio considerado certo em toda parte, e que nos foi
declarado pelo Apóstolo nestas palavras: "Não façamos o mal para que venha
o bem"13. Segue-se que, por conseqüência, um mal maior não há
de ser cometido para que se possa obter alguma compensação por um menor. Aquele
que recebe a injúria, recebe o que é chamado de mal da injúria: aquele que se
vinga de uma injúria, é culpável do que se chama de mal do crime. Ora, sem
dúvida, a desgraça de cometer um crime é maior que a desgraça de ter de
suportar a injúria, pois, ainda que a ofensa possa tornar um homem miserável,
não necessariamente o torna mau. Um crime, no entanto, o faz, a um tempo,
miserável e malvado. A injúria priva o homem do bem temporal, o crime o priva
tanto do bem temporal como do eterno. Assim, um homem que remedia o mal de uma
injúria cometendo um crime, é como um homem que corta uma parte dos seus pés
para calçar sapatos menores, o que é um ato de total loucura. Ninguém comete
tal insensatez em suas preocupações temporais, mas, no entanto, há alguns
homens tão cegos a seus interesses reais, que não temem ofender mortalmente a
Deus para escapar daquilo que tem aparência de desgraça, e para manter um
semblante de honra aos olhos dos homens. Caem, pois, sob o desagrado e a ira de
Deus, e, a menos que se corrijam a tempo e façam penitência, terão que suportar
a desgraça e o tormento eterno, e perderão a honra sem fim de habitarem no céu.
Acrescente-se a isto que realizam um ato dos mais agradáveis ao diabo e seus
anjos, que urgem a este homem fazer algo de injusto a aquele outro, com o propósito
de semear a discórdia e a inimizade no mundo. E cada um deve refletir com calma
quão desgraçado não é quem agrada o inimigo mais feroz da raça humana e
desagrada o Cristo. Ademais, se sucede que o homem injuriado que ambiciona
vingança fira mortalmente a seu inimigo, e o mate, é ele ignominiosamente
executado por assassinato, e toda a sua propriedade é confiscada pelo Estado,
ou, ao menos, é forçado ao exílio, e tanto ele como sua família viverão uma
existência miserável. Assim é como o diabo joga e como se ri daqueles que
escolhem antes se aprisionar com as ataduras da falsa honra, que se fazerem
servos e amigos de Cristo, o melhor dos Reis, e serem reconhecidos como
herdeiros de reino mais vasto e mais durável. Por isso, posto que o homem
insensato, apesar do mandamento de Cristo, se nega a reconciliar-se com seus
inimigos, e se expõe ao desastre total, todos os que são sábios escutarão a
doutrina que Cristo, o Senhor de tudo, nos ensinou no Evangelho com suas
palavras, e na Cruz com suas obras.
1. Rm 12,19.
2. Mt 5,44.
3. Mt 11,30.
4. 1 Jn 5,3.
5. 1 Cor 13,4-7.
6. At 7,59.
7. 1 Cor 4, 12-13.
8. Mt 22,12.
9. Mt 21,13.
10. Cl 2,3.
11. Mt 12,42.
12. Pr 15,1.
13. Rm 3,8.
Capítulo
3: O segundo fruto que se há de colher da consideração da primeira Palavra dita
por Cristo na Cruz
Capítulo4: Explicação textual da segunda palavra: “Amém, Eu te digo: Hoje estaráscomigo no paraíso.”
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