16/03/2013

A FÉ E A DOR


Porque é que sou católico 
por Jean Guiraud, redator Chefe de "La Croux" - 1930

Há momentos na vida em que nossa alma se sente desarvorada, como frágil batel ao sabor das vagas tormentosas! Já passei por esses momentos, e tu também, leitor amigo... Aquele pai não viveu senão para nós, labutando sem descanso, privando-se de tudo por nossa causa. Fomos a sua preocupação constante de todos os dias, de todas as horas. As rugas que lhe sulcam as faces, cavaram-nas os cuidados e ansiedades que lhe demos. Bem cedo privado daquela que compartilhava dos seus
trabalhos, esperanças e ideais, foi para nós uma verdadeira mãe, aliando aos seus austeros exemplos ternura maternal. Para manifestar-lhe o nosso reconhecimento, buscamos não somente realizar os desígnios que sobre nós formava como acalentávamos ainda o doce sonho de
preparar-lhe para os velhos dias uma vida de paz, de intimidade familiar, de cuidados afetuosos... Justamente quando julgamos pagar-lhe assim a nossa dívida de gratidão, ei-lo que morre! Que tristeza, que amarga decepção! Que melancolia sem remédio diante desse malogro repentino dos nossos mais caros projetos de afeição!

            Mas lá vem a nossa fé lembrar-nos que nada neste mundo atinge a perfeição e o pleno desenvolvimento, mas que nada também se faz em pura perda e que todo bem que aqui se põe em obra há de ter na outra vida a sua plena expansão! Os sonhos que sonhamos e que se malograram é o próprio Deus quem há de realizá-los! Esse pensamento sugerido pela fé, ao mesmo tempo que nos consola, transmudamos em esperança cheia de conforto a decepção e o luto.
            Tínhamos um filho, transbordante de generosidade, e que vibrava a todos os sentimentos nobres. Rebenta a guerra e não se pode ele resignar à espera da hora em que deverá partir. Alista-se, pede, como uma graça, os postos mais perigosos, e tomba, ceifado na flor da juventude, no entusiasmo dos vinte anos!
            Que consolo esperar dos homens e de uma filosofia puramente humana?
            “Aí está um que cumpriu, diz-nos ela, o seu destino e foi um belo exemplar de energia humana; guardar-lhe-emos a memória, plantando-lhe à beira da cova a cruz de guerra." Ah! quão frio é tudo isso e vazio, ao lado dos ensinamentos de nossa fé que nos mostra além campa aquele que choramos e nos lembra, que quanto maiores forem os sacrifícios neste mundo, maior há de ser no outro a recompensa. O dogma da comunhão dos santos nos ensina que aqueles que se foram e já não podem ser vistos pelos nossos olhos mortais, não deixam por isso de estar vivos, permanecem em comunicação conosco e, depois de curta ausência, havemos de encontrá-los na outra vida que não acaba nunca!
            Dias há em que tudo parece abandonar-nos; frustram-se os nossos mais caros projetos, atraiçoam-nos os amigos mais íntimos, e em paga do bem que lhes fazemos, não alcançamos outra coisa mais que a ingratidão. Deturpam-se-nos odiosamente as mais retas intenções; incompreendidas e menosprezadas ficam as nossas iniciativas; dir-se-ia que já neste mundo laço algum nos prende e que desertar dele fôra uma libertação.
            Em face dessas dores físicas e morais que nos conduzem à desesperação, a atitude das mais nobres filosofias humanas não tem sido outra senão a fuga ou a mentira.
            A mentira! Dor, não és mais que uma palavra! - diziam os estoicos, acreditando suprimir a dor com a negação dela. Bem sabiam, entretanto, que ela existia, que era uma realidade demasiado verdadeira, mas reagiam contra o seu domínio, e, sofrendo, atiravam-lhe um supremo desafio, renegando-a. Orgulho, forrado de mentira!

            A fuga! Em um dos seus tratados de filosofia, aconselha Seneca ao homem esquivar-se às mordeduras da dor por meio do suicídio. Vai ao ponto de admitir que a nossa superioridade sobre os animais está em podermos, quando nos apraz, fugir ao sofrimento, abandonando voluntariamente a vida.
            Sem chegar a esse extremo, certas filosofias planejam o homem em uma atitude altaneira em face da dor. "Abstine, sustine" - diziam os estoicos; refugiai-vos na abstenção! Se vos acometem males de toda a casta, padecei-os sem pestanejar, suportai-os como as borrascas que não está em nosso poder evitar!
            Impossível negar quanto há de nobre em semelhante doutrina, mas, se é ela, indubitavelmente, preferível à fuga pelo suicídio, nem por isso deixa de ser passiva na sua rigidez e resignação fatalista.
            Bem outra a norma que me propõe a minha fé católica. A dor, ela não pretende negá-la, antes a explica e torna compreensível, descobrindo o papel sobrenatural que em nossa vida moral está chamada a desempenhar.
            Para o que valorosamente a suporta, é provação que tempera a alma como as chamas o aço, é fogo que lhe despega todas as escorias para o reduzir a limpidez perfeita e, destarte, o que a nossos olhos carnais se afigura um mal, a fé no-lo apresenta como um dos mais eficazes meios de aperfeiçoamento próprio.
            Nem se contenta com ensinar-me essa doutrina bem mais precisa que a dos estoicos e a de Kant. Torna-a uma realidade, apresentando-nos qual modelo de infinita paciência um Deus a quem aprouve partilhar todas as misérias e que quis ser chamado o "Homem das Dores."
            Aí está, aos nossos olhos, traído, abandonado, cuspido, flagelado, coroado de espinhos, crucificado em presença dos seres que Lhe são mais caros e para os quais representa a Sua morte o máximo dos suplícios.
            Nem se contenta ainda a Igreja de no-lo descobrir assim nos crucifixos das igrejas, das praças públicas, das encruzilhadas e dos lares: ela conduz-nos a ele: "Vós todos que sofreis vinde àquele que sofre!" Recorda-nos as Suas palavras: "Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Felizes os que sofrem perseguição pela justiça, pois deles é o reino dos céus." Comentando a doutrina do Mestre, eleva-nos então o apóstolo São Paulo até o divino Crucificado, apresenta-nos a Ele como colaboradores seus, mediante a contribuição dos nossos próprios sofrimentos para a obra sublime da Paixão redentora.
            Sua liturgia afinal outra coisa não é senão um canto de confiança em Deus, cujo amparo se estende tanto mais sobre nós quanto nos sabe na provação e no sofrimento: "Vós sois, Senhor, a minha força e o meu refúgio... Aquele que habita à sombra do Altíssimo, ficará sempre sob a proteção do Deus do Céu. Assim fala ao Senhor: "Sois o meu protetor e o meu refúgio, Deus meu, esperarei sempre em vós... Sois a minha esperança e ao abrigo de qualquer ataque pusestes o refúgio que me dais... Ordenou a Seus Anjos te guardassem nos caminhos, eles te levarão nas suas mãos, para que teus pés se não magoem em pedra alguma."
            Não há ofício da liturgia católica que não celebre a proteção divina e a confiança que nela devemos ter em nossas desgraças.
            Em circunstância sobremaneira dolorosa de minha vida, tive disso a prova consoladora. Achava-me à cabeceira de meu pai morto, e, diante da imagem do Crucificado e dos círios acessos, lia eu o ofício dos defuntos. Senão quando, entram-me pela porta dentro aqueles que vinham metê-lo no esquife, para a última separação. Neste mesmo instante, lia eu no salmo este versículo: Pater meus et mater mea dereliquerunt me. Dominus autem assumpsit me (Ps.26). Que palavras mais consoladoras me poderiam ser dadas numa hora dessas? Era a minha fé que m’as vinha trazer, lembrando-me que dora avante viria o próprio Deus substituir junto a mim a pobre mãe que eu mal chegara a conhecer e esse pai bem querido que levavam agora à sua ultima morada.

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