Tendo o Reitor do Seminário de Ecône, Padre Lorans, pedido que eu
colaborasse na redação deste número da “Lettre aux Anciens”, pareceu-me útil
relembrar o que escrevi em 20 de janeiro de 1978 sobre algumas objeções que nos
fizeram, relativas à nossa atitude face aos problemas que a atual situação da
Igreja levanta.
Uma das perguntas era: Como o senhor concebe a obediência ao Papa? Eis a
resposta dada há dez anos:
Os princípios que determinam a obediência são conhecidos e são tão
conformes com a razão e com o senso comum, que podemos perguntar como é que
pessoas inteligentes podem afirmar que "preferem enganar-se com o Papa
do que estar na Verdade contra ele".
Não é isso que nos ensinam a lei natural e o Magistério da Igreja.
A obediência supõe uma autoridade que dá uma ordem ou decreta uma lei.
As autoridades humanas, mesmo sendo instituídas por Deus, apenas têm autoridade
para atingir o fim determinado por Deus, e não para dele se desviarem. Quando
uma autoridade usa o seu poder em oposição à lei pela qual esse poder lhe foi
dado, não tem direito à obediência, e devemos desobedecer-lhe.
Essa necessidade de desobediência é aceita em relação ao pai de família
que encoraja a filha a prostituir-se, ou em relação à autoridade civil que
obriga os médicos a provocarem abortos e a matarem inocentes. Porém, a
autoridade do Papa é aceita a qualquer preço, como se o Papa fosse infalível no
seu governo e em todas as suas palavras. É desconhecer a história e ignorar o
que é, na realidade, a infalibilidade.
Já São Paulo teve que dizer a São Pedro que ele "não andava
direito segundo a verdade do Evangelho" (Gal. II,14). E o mesmo São
Paulo encorajou os fiéis a não lhe obedecerem se lhe acontecesse pregar um
Evangelho diferente daquele que lhes tinha ensinado anteriormente (Gal. I,8).
São Tomás, quando fala da correção fraterna, alude à resistência de São
Paulo face a São Pedro, e comenta-a assim: "Resistir na cara e em
público ultrapassa a medida da correção fraterna. São Paulo não o teria feito
em relação a São Pedro se não fosse de algum modo o seu igual (...). No
entanto, é preciso saber que, caso se tratasse de um perigo para a Fé, os
superiores deveriam ser repreendidos pelos inferiores, mesmo publicamente. Isso
ressalta da maneira e da razão de agir de São Paulo em relação a São Pedro, de
quem era súdito, de tal forma, diz a glosa de Santo Agostinho, que 'o próprio
Chefe da Igreja mostrou aos superiores que, se por acaso lhes acontecesse
abandonarem o reto caminho, aceitassem ser corrigidos pelos seus inferiores’"
(S. Tomás.,Sum. Theol. IIa-IIae, q. 33, art. 4, ad 2m).
O caso evocado por São Tomás não é ilusório pois aconteceu, por exemplo,
em relação a João XXII. Esta Papa julgou poder afirmar que as almas dos eleitos
só gozariam a visão beatífica depois do Juízo Final. Emitiu essa opinião
pessoal em 1331 e, em 1332, pregou uma opinião semelhante sobre o castigo dos
condenados. Queria impor essa opinião à Igreja por um decreto solene.
Mas as vivíssimas reações dos Dominicanos – principalmente os de Paris –
e dos Franciscanos fizeram com que renunciasse a essa opinião em favor da tese
tradicional, definida pelo seu sucessor Bento XII em 1336.
E eis o que diz o Papa Leão XIII na sua encíclica Libertas praestantissimum, de 20 de junho de 1888: "Suponhamos, pois, uma prescrição de um poder qualquer que estivesse em desacordo com os princípios da reta razão e com os interesses do bem público (e, com mais razão ainda, com os princípios da Fé): ela não teria nenhuma força de lei..." E, um pouco adiante: "Quando faltar o direito de mandar, ou quando a ordem for contrária à razão, à lei eterna, à autoridade de Deus, então é legítimo desobedecer – queremos dizer: aos homens – para obedecer a Deus."
E eis o que diz o Papa Leão XIII na sua encíclica Libertas praestantissimum, de 20 de junho de 1888: "Suponhamos, pois, uma prescrição de um poder qualquer que estivesse em desacordo com os princípios da reta razão e com os interesses do bem público (e, com mais razão ainda, com os princípios da Fé): ela não teria nenhuma força de lei..." E, um pouco adiante: "Quando faltar o direito de mandar, ou quando a ordem for contrária à razão, à lei eterna, à autoridade de Deus, então é legítimo desobedecer – queremos dizer: aos homens – para obedecer a Deus."
Ora a nossa desobediência é provocada pela necessidade de conservar a Fé
católica. As ordens que nos foram dadas exprimem claramente que o foram para nos
obrigar à submissão sem reservas ao Concílio Vaticano II, às reformas
pós-conciliares e às prescrições da Santa Sé, ou seja, a orientações e a atos
que minam a nossa fé e destroem a Igreja, e a isso é impossível acedermos.
Colaborar na destruição da Igreja é atraiçoar a Igreja e Nosso Senhor
Jesus Cristo.
Ora, todos os teólogos dignos desse nome ensinam que, se o Papa pelos
seus atos destrói a Igreja, não lhe podemos obedecer e deve ser repreendido,
respeitosa mas publicamente. (Vitoria,Obras..., pp. 486-487; Suarez, De
fide, disp. X, sec.VI, no. 16; São Roberto Bellarmino, De Rom. Pont., lib. II, c.
29; Cornelius a Lapide, Ad. Gal. 2, 11; etc.),
Os princípios da obediência à autoridade do Papa são os mesmos que
os que ordenam as relações entre uma autoridade delegada e os seus súditos.
Eles só não se aplicam à autoridade divina, que é sempre infalível e
indefectível e, portanto, não supõe qualquer falha.
Na medida em que Deus comunicou a sua autoridade ao Papa, e na medida em que o Papa entende usar essa infalibilidade – cujo exercício implica em condições bem determinadas – não pode haver falha.
Na medida em que Deus comunicou a sua autoridade ao Papa, e na medida em que o Papa entende usar essa infalibilidade – cujo exercício implica em condições bem determinadas – não pode haver falha.
Mas fora desses casos, a autoridade do Papa é falível, e, por isso, os
critérios que obrigam a desobediência aplicam-se aos seus atos. Não é, pois,
inconcebível que haja um dever de desobediênciaem relação ao Papa.
A autoridade que lhe foi conferida foi-lhe conferida para fins
determinados e, em definitivo, para glória da Santíssima Trindade, de Nosso
Senhor Jesus Cristo, e para salvação das almas.
Tudo o que for realizado pelo Papa em oposição a esse fim não terá
qualquer valor legal, nem qualquer direito à obediência e, mais ainda, obriga
à desobediência para permanecer na obediência a Deus e na fidelidade à Igreja.
É o que acontece relativamente a tudo o que os últimos Papas ordenaram
em nome da liberdade religiosa e do ecumenismo, desde o Concílio: todas as
reformas feitas a esse respeito são desprovidas de qualquer direito e de
qualquer obrigação. Os Papas usaram da sua autoridade contrariamente ao fim
para o qual essa autoridade lhes foi dada. Têm, pois, direito à nossa
desobediência.
A Fraternidade S. Pio X e a sua história manifestam publicamente essa
necessidade de desobediência para permanecermos fiéis a Deus e à Igreja.
Os anos 74-75-76 trazem à memória essa incrível disputa entre Ecône e o
Vaticano, entre o Papa e eu próprio.
O resultado foi a condenação, a suspensão “a divinis”, nula de pleno
direito, pois o Papa abusou tiranicamente da sua autoridade para defender suas
leis contrárias ao bem da Igreja e ao bem das almas.
Esses acontecimentos são uma aplicação histórica dos princípios do dever de desobediência.
Esses acontecimentos são uma aplicação histórica dos princípios do dever de desobediência.
Foram motivo de afastamento de certo número de padres amigos e de alguns
membros da Fraternidade que, assustados por essa condenação, não compreenderam
o dever de desobediência em determinadas circunstâncias.
Ora, doze anos se passaram; oficialmente, a condenação mantém-se; as
relações com o Papa são tensas, tanto mais que as conseqüências do ecumenismo
se aproximam da apostasia, o que nos obrigou a reações veementes.
No entanto, o anúncio de uma consagração episcopal feita em 29 de junho
de 1987 alvoroçou Roma, que, finalmente, decidiu aceder ao nosso pedido de uma
visita apostólica e enviou, em 11 de novembro, o Cardeal Gagnon e Mons. Perl.
Tanto quanto nos foi dado saber pelos discursos e comentários dos
visitadores, o seu julgamento foi dos mais favoráveis, e o Cardeal não hesitou
em assistir à Missa Pontifical de 8 de dezembro, celebrada pelo prelado
suspenso “a divinis”.
Que concluir de tudo isto, a não ser que a nossa desobediência dá bons
frutos, frutos reconhecidos pelos enviados da autoridade à qual desobedecemos?
E eis-nos perante novas decisões a tomar. Estamos mais do que nunca
animados a dar à Fraternidade os meios de que precisa para continuar a sua obra
essencial: a formação de verdadeiros padres da Santa Igreja Católica Romana,
isto é, dotar-me de sucessores no Episcopado.
Roma compreende esta necessidade, mas aceitará o Papa que os bispos
sejam oriundos da Tradição? Para nós não pode ser de outro modo.
Qualquer outra solução seria sinal de que nos querem alinhar pela
Revolução Conciliar, e, nesse caso, o nosso dever de desobediência surge
imediatamente.
As conversações estão em curso, e em breve conheceremos as verdadeiras
intenções de Roma. Elas decidirão o futuro. Temos de continuar a rezar e a
velar. Que o Espírito Santo nos guie por intercessão de Nossa Senhora de
Fátima!
Ecône, 29 de março de 1988
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