Amor à Verdade
e
Ódio ao Erro
Ernesto Hello (1828-1885), católico, francês, escritor. Produziu livros e artigos sobre filosofia, teologia e literatura.
Fragmento
do Jornal Sim Sim Não Não (Maio/1997)
Todo
aquele que ama a verdade odeia o erro. Falar assim parece tanto uma
ingenuidade como um paradoxo. Mas o ódio ao erro é a pedra de toque
para reconhecer se uma pessoa ama a verdade. Se alguém não ama a
verdade, pode – até certo ponto – dizer que a ama e talvez até
se fazer acreditar. Mas fique tranquilo que cedo ou tarde, dará
sinais de não odiar o erro e com isto se entenderá que não ama a
verdade.
Quando
um homem, que costumava amar a verdade, não mais a ama, não declara
logo a sua defecção; começa a odiar sempre menos o erro. Com isto
se trai.
As
complacências secretas fazem parte de uma das histórias menos
conhecidas pelo mundo.
Quando
um homem perde o amor pela doutrina que professava até ontem, seja
boa, seja má, conserva o símbolo da doutrina. Mas sente morrer em
si a aversão a todas as doutrinas contrárias.
Pelo
mesmo fato de ser a caridade uma coisa sublime, a realidade por
excelência e a medula dos ossos da criatura, por isso, também o
abuso da caridade e o mau uso do seu nome devem ser, especialmente e
de modo singular, perigosos. “Optimi corruptio pessima”. Quanto
mais belo for o nome, tanto mais é terrível. Portanto, se se
revolta contra a verdade armando com o poder que recebeu para a vida,
que serviços não prestará à morte?
Ora,
volta-se contra a luz o nome da caridade, todas as vezes em que, em
lugar de atacar o erro, se chega a um acordo com este, sob o pretexto
de poupar o homem. Volta-se contra a luz o nome da caridade, todas as
vezes em que se serve deste para ceder na execração do mal.
Habitualmente o gosta de ceder. A fraqueza é uma coisa agradável à
natureza decaída; além disso, a falta de horror ao erro, ao mal, ao
inferno, ao demônio, esta falta parece quase uma desculpa pelo mal
em nós mesmos, e aí se prepara um pretexto para escusar aquilo que
acariciamos em nossa alma. Em geral, a atenuação se localiza e o
homem se amansa no confronto da debilidade que o quer invadir, quando
começa a chamar “caridade” à acomodação universal com todas
as fraquezas, ainda que distantes.
Aqui
está um dito de Davi que nunca se escuta: “Que diligitis Dominum,
odite malum” (“Vós que amais o Senhor, odiai o mal.”).
Quando
o mal entrou no mundo nasceu alguma coisa de irreconciliável. A
caridade, o amor para com Deus, exige, supõe, implica, ordena o ódio
contra os inimigos de Deus. Mesmo a nível humano, a amizade não se
mede pela vivacidade da ternura, mas antes pela comiseração no
sofrimento. Se o amigo está contente, pode-se mesmo faltar à
ternura por um momento, e, no entanto, permanecem amigos. Se o amigo
sofre na sua pessoa ou na sua honra, devido a um acidente, a uma
ofensa qualquer e se se ressente apenas francamente com o seu mal, já
não se é mais amigo.
O
grande Josafá, cujas dimensões desconhecidas espantam, foi
reprovado pelo Senhor; tinha-se aliado com o rei de Israel. Aliar-se
com o inimigo é o crime escondido, o delito profundo. Existem crimes
evidentes, crimes aparentes. Mas a intimidade que possui tudo, tem um
crime contra si, que é se aliar com o inimigo. A medida do amor
consiste em execrar o inimigo comum. O rei de Israel era inimigo de
Deus, mas Josafá se tinha esquecido do que Deus execrava.
A
aliança, a aproximação, a vizinhança espiritual do inimigo são
crimes contra a intimidade! Ora, esta é a glória quando se trata de
Deus, e é mais íntimo de Deus aquele que tem a maior reverência a
Sua Majestade. Eis porque o pecado contra o Santo Nome faz os santos
estremecerem de horror! Aqueles que sentiram o sopro da glória não
se podem reconciliar com os crimes contra a glória. A caridade os
impele; eis porque são intratáveis, uma vez que ela os obriga, como
uma nobreza superior, a não consentir nas obras do ódio. Quem
pactua com o erro não pode conhecer o amor na sua plenitude nem na
sua força soberana.
Depois
de uma longa guerra quando não se pode mais com ela, quando o
cansaço pode causar a vontade de acalmar-se, os reis foram vistos,
fatigados pelos combates, cederem esta ou aquela fortaleza. São
concessões que fazem acabar a guerra sem disparar os canhões. Mas
as verdades não se tratam como fortalezas. Quando se quer fazer a
paz, em espírito e verdade, deseja-se a conversão e não a
acomodação. A justiça é inteiramente aquilo que é.
Nas
relações entre os homens, quando uma aproximação parece
realizar-se sem que o culpado tenha mudado em coisa nenhuma, quando
se crê que um aperto de mão possa substituir o arrependimento e o
sentimento de culpa, esta aproximação falaz acaba por revelar as
dificuldades que traz consigo. É uma segunda separação muito mais
profunda do que a precedente. E acontece o mesmo com a doutrina. A
paz aparente, que a complacência compra e paga, é contrária tanto
à caridade como à justiça, porque cava um abismo onde antes havia
um pequeno fosso. A caridade requer sempre a luz, e a luz evita
também as sombras do compromisso. Toda a beleza é uma coisa
inteira. A paz é, talvez, no final das contas, a vitória mais
segura sobre si mesma.
Que
se diria de um médico que, por caridade, poupasse a doença de um
cliente? O médico poderia dizer ao doente: “Depois de tudo,
senhor, é preciso ter caridade. O câncer que o corrói
interiormente talvez o faça de boa fé. Vamos! Seja mais gentil; não
se deve ser tão duro. Ponha-se no lugar do câncer; nele talvez está
um animal que tem necessidade de consumir-lhe a carne e o sangue, e o
senhor terá a coragem de negar-lhe aquilo que lhe aproveita? O
pobrezinho poderia morrer de fome! Por outro lado sou inclinado a
crer que o câncer esteja de boa fé e o aconselho a ter um
comportamento mais caridoso”.
É
o crime do século dezoito (Nota do excerptos: outrossim do século
dezenove, vinte e vinte um.): não odiar o mal e fazer-lhe propostas.
Mas há uma única proposta para fazer ao mal: a de desaparecer.
Qualquer compromisso com ele é uma vitória parcial, mas a vitória
total do mal, porque ele não quer expulsar o bem, mas coabitar com
ele. Um instinto secreto adverte-o de que, cedendo alguma coisa, cede
tudo. E desde o momento em que não é mais odiado, sente-se adorado.
A
paz, como se disse, é a vitória segura de si mesma. É uma
eliminação. Uma eliminação tão completa que não se tem mais de
lutar.”
(Ernesto
Hello. “O homem”, XL, Edição Perrin, 1941)
Interessante! E mais interessante ainda a frase: "Se a palavra exagero não existisse, o homem medíocre a inventaria..."
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