Arai Daniele
Quem se dispõe a perscrutar os
eventos de Fátima, deve ter presente que um sinal sobrenatural só pode vir
expresso na linguagem das Escrituras e da Tradição, pela qual é o desígnio
divino a dirigir os eventos do mundo como a órbita do universo. Nesta linguagem
está a chave da autenticidade e da compreensão de todo sinal celeste.
Apuremos então a mente na linguagem
cristã em que estão cifrados tanto os eventos portentosos como os mais
singelos. Nada é fortuito na História e nada escapa à solicitude divina na vida
de Sua Igreja. Reconheçamos o motivo próximo das aparições de Fátima para não
perder uma manifestação do amor divino, chave de todo saber.
Quando em 1917 os horrores da lª
Grande Guerra provocavam rios de sangue e de lágrimas sem que se pudesse prever
o seu fim, o papa Bento XV invocou com toda a Igreja a intercessão de Maria
Santíssima pela paz. Eis os termos da carta ao secretário de Estado, cardeal
Gasparri, com as disposições para que toda a Igreja invocasse a Rainha da paz
nas suas orações mais freqüentes:
“Rainha da Paz…
Para tal fim, se eleve a Jesus mais freqüente, humilde e confiante,
especialmente no mês dedicado a Seu Santíssimo Coração, a oração da miserável
família humana para suplicar-Lhe o fim deste terrível flagelo. Purifique-se
cada um com maior freqüência no lavabo da confissão sacramental, e ao
amantíssimo Coração de Jesus ofereça com afetuosa insistência as suas súplicas.
E uma vez que todas as graças que o Autor de todo o bem se digna conceder aos
pobres descendentes de Adão provêm, por amoroso conselho de Sua Divina
Providência, pelas mãos da Virgem Santíssima, nós queremos que seja dirigido à
Grande Mãe de Deus nessa hora horrível, mais que nunca o vivo e confiante
pedido de seus filhos muito aflitos. Encarregamos portanto a Vós, Senhor
Cardeal, de fazer conhecer a todos os bispos do mundo o nosso ardente desejo
que se recorra ao Coração de Jesus, Trono de graças, por meio de Maria. Com
esse propósito ordenamos que, desde o dia primeiro do próximo mês de junho,
fique inserida na Ladainha de Loreto a invocação Regina pacis, ora
pro nobis.
“Eleve-se portanto
a Maria, que é Mãe de misericórdia e onipotente pela graça, de cada canto da
terra, dos templos majestosos como das pequenas capelas, dos palácios e ricas
mansões dos grandes como dos mais pobres casebres onde se aloja uma alma fiel
dos campos e mares ensangüentados, a piedosa e devota invocação e leve a Ela o
angustioso grito das mães e esposas, o gemido dos meninos inocentes, o suspiro
de todos os nobres corações: possa mover a Sua amável e muito benigna
solicitude a obter para o mundo desvairado a aspirada paz, e possa lembrar
depois aos séculos futuros a eficácia de Sua intercessão e a grandeza do
benefício por Ela obtido a Seus filhos.”
A carta é de 5 de maio de 1917.
Oito dias depois, 13 de maio, na Cova
da Iria em Fátima, Maria Santíssima aparecia, qual arco-íris da paz e da graça,
para mostrar aos homens o caminho da verdadeira paz neste mundo e da salvação
eterna no outro. Seria reconhecida?
De início este evento extraordinário
ficou circunscrito à região, mas com o passar dos dias começou “uma
concorrência assombrosa de peregrinos incomparavelmente superior a Lourdes na
época das aparições e apesar da dificuldade de acesso” (NDOC. p. 95).
A testemunhar e registrar os eventos
foi o cônego dr. Manuel Nunes Formigão, laureado em Teologia e Direito Canônico
pela Universidade Gregoriana. Pelos seus apontamentos, dia 13 de julho
estiveram na Cova da Iria de 4 a 5 mil pessoas, em agosto de 15 a 18 mil, em
setembro de 25 a 30 mil (NDOC. p. 362, 366, 374).
É importante notar que já das
primeiras aparições sabia-se terem os pastorzinhos recebido um segredo. Isto
despertou grande interesse até no prefeito maçom de Vila Nova de Ourém, que no
dia 13 de agosto foi a Fátima e levou a menina Lúcia ao pároco P. Ferreira a
fim de que lhe revelasse a mensagem celeste. Eis a resposta: “Sim (recebi um
segredo), mas não posso dizê-lo. Se V. Rvcia. quiser conhecê-lo, perguntarei à
Senhora e se ela autorizar, então eu o contarei a vós (TSF. p. 113) Diante
desta resistência o prefeito, enganando-as, levou as três crianças a Ourém
onde, ameaçando-as de morte, tentou ainda obter sem êxito a confissão do
segredo recebido de Nossa Senhora. Como se vê, já no início, interessaram-se
mais pela mensagem de Fátima autoridades anticlericais do que as eclesiásticas.
Estas chegaram a ver nesses eventos mais motivo de embaraço do que uma ajuda
providencial para a Igreja.
No dia 13 de outubro de 1917, para o
qual Nossa Senhora anunciara um grande milagre a fim de que todos
pudessem crer, havia cerca de 70 mil pessoas a testemunhar o evento.
Este era esperado até na França, segundo carta publicada (NDOC. p. 23, 24).
Dele escreveria o padre José Ferreira de Lacerda: “Raro tem sido o jornal
português, quer diário, quer semanário, quer católico quer independente ou
livre pensador, que não tenha referido aos acontecimentos da Fátima e muito
principalmente ao fenômeno solar.” (NDOC. p. 65) Estas notícias dão idéia da
dimensão e universalidade do evento apesar dos obstáculos criados pela
autoridade civil e do silêncio da autoridade eclesiástica. É muito importante
examinar isto. Isto foi feito no livro «Entre Fátima e o Abismo» considerando
as seguintes questões:
1) se para a Fé é plausível que o
Papa seja atendido com uma intervenção sobrenatural;
2) se, neste caso, o evento de Fátima
se conforma ao pedido feito por Bento XV;
3) se a mensagem de Fátima está na
linguagem de sempre da Igreja;
4) se seus avisos e pedidos são
atinentes ao momento histórico em que foram dados;
5) se, satisfeitos os pontos acima,
subsiste razão para que a Igreja ignore tal resposta.
Em primeiro lugar foi lembrado que a
Igreja ensina como verdade de fé que a revelação concluiu-se com a morte do
último Apóstolo. Portanto, nenhuma mensagem sobrenatural vem acrescentar algo à
Revelação. Todavia, pela mesma Revelação sabemos que houve a maior intervenção
de Deus na ordem natural pela encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade. Esta foi o apogeu de uma longa série de intervenções sobrenaturais em
favor da preparação desse supremo evento. Depois de Sua Vida, Paixão e Morte, o
Verbo de Deus encarnado deixou no mundo a Sua Igreja, sinal visível do Seu
poder de Senhor da História. A Ela e à sua hierarquia e pastor foram dados
poderes de ligar e desligar, além da promessa dada a todos os fiéis de que se
pedissem ao Pai em nome de Jesus seriam atendidos.
A fé, a esperança e a caridade na
Igreja exprimem-se na oração e no Santo Sacrifício, que são pedidos de
intervenção divina. É claro que a resposta sobrenatural segue os desígnios de
Deus que dirige os eventos e envia os Seus profetas quando estes se tornam
necessários, acima de qualquer entendimento humano. A razão por que foram
enviados serão os próprios fatos que nos revelarão cedo ou tarde.
Por exemplo, hoje sabemos que São Pio
X foi o profeta que protegeu a Igreja do flagelo modernista, que continuou,
porém, chamado de progressismo. O profeta, como a Mensagem profética de Fátima,
avisa e ampara os fiéis, mas aos homens da Igreja pode faltar a graça de
entenderem e aplicarem os avisos da profecia.
A linguagem sobrenatural, velada para
a visão espiritual imperfeita do homem, torna-se indecifrável para a
mentalidade racionalista que pretende explicá-la na ordem natural. Negando-se a
causa divina, presume-se que fatos e fenômenos possam ter por causa um
zombeteiro ou cruel, mas sempre cego, acaso. Como, porém, sinais, milagres e
profecias não têm o menor sentido para o acaso, como de resto a própria Igreja
que confirmou o evento de Fátima e ensina ser instituída e guiada pela Divina
Providência, a visão naturalista não podendo negar o fato objetivo mostra toda
a sua cegueira, mesmo se o fizer com desculpas piedosas.
Atenção, pois: se essa cegueira é
lamentável ao pretender explicar os eventos do mundo, quando se manifesta
dentro da Igreja e para explicar fatos espirituais, toma a forma de letal
apostasia. Pondo em dúvida o senso cristão da História, contesta a própria Fé.
A Divina Providência tendo instituído
a Igreja com o papa por chefe, para guiá-la, guiará a este a quem deu poderes
especiais. Este é um fato doutrinal verificado na História. Mas dependerá do
uso que a pessoa que ocupa a suprema Sede fará de seus poderes, quer para pedir
a ajuda divina, quer para reconhecê-la. Por isto podemos hoje entender o
pensamento a seguir.
No Evangelho temos a profecia do
velho Simão a Maria: “Uma espada trespassará a tua alma, a fim de que
se descubram os pensamentos secretos nos corações de muitos” (Lc
2,35). E Fátima tem sido sinal de contradição, pedra de tropeço colocada num
ano crucial do início do século XX que, vai desde então medindo homens e
eventos. Um sinal à imagem do supremo sinal, o Salvador que, rejeitado, revela
o que escondem os corações. Isto ajuda a interpretar Fátima no que diz respeito
à Fé, porque dois fatos assinalam a história da sua Profecia dada para ajudar
os chefes da Igreja:
-a dificuldade de recebê-la no tempo
de Bento XV, Pio XI e Pio XII;
-as tentativas de ofuscá-la, da
censura de João 23 à sua adaptação à pessoa de João Paulo 2º. Entre os dois
fatos coloca-se a visão do Segredo, isto é do evento mais claro em 1960 e mais
devastador para a Fé que as duas guerras mundiais: a hecatombe do Papa e dos
testemunhos católicos, que seria mais clara em 1960. E visto que o primeiro
fato se concluiu com a morte de Pio XII em 1958, pode-se deduzir que a
hecatombe é consequência da dificuldade daqueles pontificados de receber a
ajuda profética e causa
próxima do que seguiu: a sua censura
e abuso. Em outras palavras, por não ter ouvido devidamente os avisos e a ajuda
oferecida pela Profecia de Fátima o Papa católico foi eliminado e substituído
por quem estava pronto a obscurecer a Fé da Igreja e os termos mesmos do
Segredo. Uma «decapitação» da autoridade papal predita por Nosso Senhor numa
comunicação a Lúcia já em Agosto de 1931: “Faça saber a meus ministros
que, como eles seguem o exemplo do rei da França ao retardar a execução de meu
pedido, eles o seguirão na desgraça … ”(Documentos do P. Joaquim Alonso).
Esse terrível
aviso para os ministros da Igreja
pelas suas omissões em seguir o pedido de Fátima, está também em outros
documentos: “Não quiseram atender ao meu pedido! [de consagração}… Como
o rei da França, arrepender-se-ão e fá-lo-ão, mas será tarde. A Rússia terá já
espalhado seus erros pelo mundo, provocando guerras e perseguições à Igreja. O Santo
Padre terá muito que sofrer.” (Documentos do P. António Maria Martins,
p. 465).
A pergunta seguinte é: quando essa
luta atingirá seu auge? A resposta pode estar na entrevista ao Padre Fuentes de
1957 da Irmã que, sob a pressão do Bispo de Coimbra (redarguido pelo Vaticano?)
teve que retratar em 59: “Odemônio está para iniciar a luta decisiva, isto
é, final, da qual sairemos vitoriosos ou vencidos, ou estamos com Deus ou
estamos com o demônio. Eis o motivo da luta final entre o bem e o mal
no mundo na qual o Papa é visto na primeira linha.
Na ausência deste o mundo caminha
para um descalabro terminal, com uma perseguição final do Cristianismo reduzido
a bem pouco depois de uma geral apostasia. Não é o que já se vive hoje? No
entanto, é impossível negar que já fora profetizado em Fátima mas,
infelizmente, deixado de lado por um mundo católico em crise já no pontificado
de Bento XV, morto em 1922 sem se pronunciar publicamente sobre Fátima.
Transcorria então considerável distância entre fazer um apelo a Maria
Santíssima pela paz na Terra e crer que a resposta pudesse ser dada por uma
aparição do Céu. E, todavia, não se pode negar que Maria Santíssima atendeu o
apelo do Papa. Afinal, que solicitude mais benigna e qual intercessão mais
eficaz pela paz podia vir da Mãe Celeste? Que admiráveis benefícios se o Papa a
tivesse reconhecido! Que terrível ausência por não tê-la atendido!
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TSF | The True Story of Fatima, Pe. John de Marchi, JMC. Ed. William Fay, St. Paul 2, Minnesota, 1952. |
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NDOC | Novos Documentos de Fátima, Pe. Antônio M. Martins, Livraria Apostolado da Imprensa, Porto, 1984. |
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