Se
eu asseverar que existem muitos casais infelizes, e que o número
deles tende a crescer, tornando-se uma componente considerável de
nossa crise social, creio que ninguém exigirá de mim as
estatísticas comprovantes. Há certas coisas que saltam aos olhos; e
tenho para mim que a maioria dos inquéritos e dos levantamentos
estatísticos só serve para mostrar, com o adorno das cifras, o que
todo o mundo está cansado de saber. Chego até a pensar que muitas
dessas pesquisas sociológicas são movidas por um gosto
semi-consciente de desvalorizar o bom-senso, ou de levar ao
descrédito os mais elementares princípios. No caso vertente, e para
descobrir que as famílias estão funcionando mal, eu não preciso
andar de porta em porta com um impertinente questionário. Basta-me
observar a rua, os bondes, os cafés, para poder concluir que as
casas já não retêm as pessoas. A febre nas ruas prova a agonia das
casas. E como a felicidade conjugal está vinculada à casa, ao
equilíbrio, ao poder de retenção da casa, posso deduzir do aspecto
publicado nas ruas as infelicidades escondidas nas casas.
Além
disso, temos dados mais convincentes nos casos mais próximos.
Realmente, salta aos olhos do mais descuidado observador que o número
de casais infelizes cresce dia a dia, e que esse problema já pesa na
sociedade com graves repercussões no econômico e no político.
Diante
de um fenômeno desta natureza, e de tão sérias conseqüências, o
problema que logo se impõe é o da pesquisa das causas. Mas nem todo
o mundo pensa assim. Há pessoas, animadas de excelentes intenções,
que não crêem na utilidade dessa pesquisa, ou não têm tempo a
perder nessas ponderações. Chegam correndo, nervosos e
filantrópicos, com a primeira maravilha curativa que encontraram
para as contusões de amor, sem considerar o perigo de agravar a
causa do mal com o tratamento do sintoma. Se há pessoas infelizes é
preciso socorrê-las com urgência. Se há casais desajustados, é
preciso proporcionar-lhes, o mais depressa possível, uma nova
combinação de pares mais harmoniosos.
A
idéia que preside essa terapêutica matrimonial é a seguinte: os
casamentos se fazem por acaso, numa espécie de movimento browniano
de encontros fortuitos, em que não pesa a razão. E assim sendo,
para libertar o homem dessa tirania do acaso, é preciso conceder-lhe
sucessivas oportunidades até que possa encontrar a boa solução.
Ora,
o que pretendo mostrar nesse estudo é que a causa principal desse
estado de coisas é justamente essa negligência das causas; ou
melhor, é o clima de futilidade e de irresponsabilidade em que se
fazem os casamentos.
Poderíamos
aqui invocar os inquéritos organizados nos Estados Unidos. Eles
provam insistentemente que a maioria dos divórcios é motivada por
coisas de uma espantosa futilidade; e provam também, como era de
esperar, que se uniram levianamente os que levianamente se desunem.
Esta
é a causa principal dos muitos casamentos infelizes: a falta de
preparação, a leviandade com que se casam, a atmosfera de
frivolidade, de imprudência e de imaturidade que cerca o mais grave
dos atos humanos.
É
claro que o homem é extraordinariamente engenhoso na arquitetura de
sua infelicidade. Ainda que os fatores extrínsecos sejam seguros e
bonançosos, o homem traz em si a borrasca. Ainda que os elementos
econômicos, afetivos e temperamentais sejam favoráveis, o homem se
encarrega freqüentemente de inventar sua desventura.
As
causas da infelicidade são pois numerosíssimas. São entrelaçadas,
combinadas, variadas, convergindo todas para o mesmo epílogo de
lágrimas. Não pretendo deixar aqui uma receita de paraíso
conjugal, nem pretendo que o problema seja fácil. A vida conjugal
sempre foi difícil; e sempre o será. Mas o que se pode dizer sem
erro, e sem ridículo otimismo, na atual conjuntura em que vivemos, é
que o desvario ultrapassou seus razoáveis limites, e que alguma
coisa pode e deve ser tentada no sentido de uma recuperação. E para
isto cumpre isolar, no emaranhado de causas, aquela que mais influi
na aceleração do mal.
Torno
a dizer que é a imaturidade, o despreparo. As outras causas são
todas tributárias dessa imensa bacia hidrográfica da frivolidade.
As pessoas se casam por motivos oblíquos; se casam sem saber o que é
o casamento; fundam família sem conhecer o que é a família; mudam
de estado com ponderações menores do que os motivos de escolha de
uma carreira, e às vezes tão leves como as que determinam a escolha
de uma gravata. Ignoram a natureza do novo estado; desconhecem-se
mutuamente os que se propõem viver unidos; e se ignoram a si mesmos,
seus próprios recursos, seus novos deveres, suas responsabilidades
novas.
Ora,
o divorcista começa por conceder que esse desatino é normal, e nos
traz um remédio que ainda o tornará mais desatinado. Seu remédio
virá pois incrementar as causas do mal. Se já existe uma alarmante
falta de seriedade no regime da indissolubilidade, é fácil imaginar
o delírio a que se chegará no regime do divórcio. E essa é a
primeira contradição intrínseca do divorcismo: pretende curar
alargando as fontes do mal, pretende remediar com sua pomada de
emergência dez infelizes, à custa de cem outros que já se colocam
na fila da infelicidade.
Mas
o divorcista — seja dito em sua homenagem —
não percebe essa contradição; e não a percebe justamente porque
renunciou, de antemão, usar aquilo com que se evidenciam as
contradições. Para ele, como já disse, o casamento é casual,
essencialmente irrefletido, e não pode deixar de ser assim uma
espécie de loteria onde pesa mais a sorte do que a razão. Dizem por
exemplo que o amor é cego, e que é impossível, em meses de
noivado, conhecer perfeitamente a pessoa com quem se delibera fundar
uma família.
Concedo
que é impossível, em meses, conhecer perfeitamente o outro. Vou até
mais longe. Se é preciso conhecer perfeitamente o outro em todos os
seus recantos psicológicos, a vida inteira não basta, e deveríamos
adiar todos os casamentos par o dia do juízo final. Ou então, para
atender às flamas do mais impaciente amor, deveríamos estipular que
os noivos esperassem a provecta idade dos senadores.
O
que é evidente, nesse pessimista irracionalismo, é que a
incapacidade de conhecer o outro, se destrói o casamento
indissolúvel, destrói também o divórcio. Porque o divórcio se
baseia justamente nessa idéia insensata de que, num certo ponto da
vida conjugal, a gente esgota completamente o conhecimento do outro,
a ponto de lhe recusar a mínima possibilidade de recuperação.
Concedamos
pois que o noivado é curto para a exaustiva análise dos noivos. Mas
daí a recusar a possibilidade de um certo conhecimento, e a
necessidade de uma certa preparação, vai um abismo. Essa idéia se
reduz a afirmar que o homem está completamente desarmado para os
atos mais graves de sua vida. Sua razão lhe serve para instalar um
aparelho de rádio, mas é incompetente para fundar família. Sua
inteligência lhe basta para demonstrar que a soma dos três ângulos
internos de um triângulo é igual a dois retos, mas é deficiente
para apreender a natureza desse outro triângulo em cujo vértice
nasce uma criança.
É
claro que a vida está cheia de imprevistos. A própria criança é
um destes, e dos mais terríveis. Mas dizer que a vida é somente
formada de imprevistos, diante dos quais o homem é impotente,
equivale rigorosamente a denunciar toda a validez da moral. Convém
firmar este ponto: a pessoa que admitir a incompetência da razão
nos atos mais graves da vida está admitindo tacitamente a falência
total dos princípios de moralidade. Bem sei que já muita gente
admite essa falência, e que seria preciso deslocar a origem das
coordenadas, e escrever um outro livro para discutir esse problema.
Neste que agora escrevo [1] suponho no leitor esse mínimo — a
confiança na ordem moral. E já me declararia satisfeito se
conseguisse convencer algum divorcista de seu radical amoralismo.
Seria um progresso para ele se largasse o equívoco e enfrentasse com
lealdade o niilismo moral. Aliás, se isto acontecesse, o divorcista
deixaria de pleitear o divórcio, e passaria a defender o amor sem
regras.
Dizer
que o amor é cego equivale a afirmar a radical incompatibilidade
entre o amor e a razão. O caloroso amor será cego; a lúcida razão
será gélida. Divide-se então o homem em si mesmo de um modo
irremediável, e o fogo do amor será uma loteria com poucos prêmios
e muitos bilhetes brancos. A razão virá mais tarde, quando esfriar
o amor, para passar um pito no apaixonado; ou para se rir amarelo da
ilusão dos que ainda vivem nos amorosos torpores.
É
claro que, se chamamos de Razão essa mesquinha faculdade de passar
pitos ou de achar sorrisos de gélido escárnio, haverá uma absoluta
incompatibilidade entre a Razão e o Amor. Se a Razão é apenas
cálculo e mesquinharia, já está implícita nesta definição a
incompatibilidade e a cegueira do amor. Neste caso, a moça que se
casa com um rapaz padrão O para ter um caso de peles, estará
fazendo um casamento de razão. o moço que se casa com uma velha
rica também estará fazendo um casamento de razão.
Ora,
no meu vocabulário, esses dois estão consumando os menos razoáveis,
os mais insensatos casamentos. Estão, inclusive, fazendo um cálculo
errado. Estão cegos.
No
meu vocabulário, isto é, no vocabulário do bom-senso e da reta
filosofia, o único casamento razoável é o casamento de amor. A
razão é intrinsecamente generosa, e é vivificada e dilatada pelo
amor. Procurarei explicar-me melhor, apelando para as mais profundas
ressonâncias das almas. E começo por perguntar: Quem quererá ser
amado sem ser compreendido?
Realmente,
os mais humildes, os menos filosóficos namorados sabem que
a compreensão é uma nota essencial do verdadeiro
amor. Nos seus delírios, nos seus românticos arroubos, o
mal-atendido namorado se queixa de serincompreendido. Vai
nessa queixa, evidentemente, muita estultice, porque às vezes a
amada se afasta do seu suplicante por lucidez. Seja como for, usada
com justiça ou com insensatez, o fato é que a nota de compreensão
é inseparável do conceito que todo o mundo tem do amor. De onde se
conclui que no unânime consenso, e de acordo com os mais profundos
instintos do homem, o amor não pode ser cego.
Ao
contrário, o amor é lúcido. O amor, o verdadeiro amor é
ardentemente compreensivo. Só quem ama verdadeiramente, conhece
verdadeiramente. Se é verdade que o conhecimento precede o amor, é
verdade também que o amor precede a dilatação do conhecimento.
O
amor, o verdadeiro amor tem um conhecimento penetrante, candente,
fino, lúcido; tem um conhecimento de ressonância profunda, de
identificação, de conaturalidade.
O
amor, o verdadeiro amor advinha, penetra, descobre, simpatiza, faz
suas as aflições do outro, dá ao outro suas próprias alegrias.
É compreensivo. Mas não é compreensivo no sentido que
se dá a esse vocábulo, quando quer significar uma tolerância que
fecha os olhos. Não. O amor verdadeiro é compreensivo num sentido
maior, que não fecha os olhos, mas que também não fecha o coração.
Vê as falhas do outro, vê as misérias do outro, com uma generosa
inquietação, com uma piedosa solicitude. Mas vê. Vê com amor. Mas
vê. E é nessa visão que ele encontra as forças de paciência para
os dias difíceis, e que se defende das amargas decepções. A
miséria, o defeito, a falha, apresentados pelo amor, conservam
sempre a dignidade do contexto em que foram apreendidos, sem
sacrifício da veracidade. Porque o amor é veraz; é verídico; é
essencialmente amigo da verdade. E como compete à razão guiar a
alma nos caminhos da verdade, segue-se com lógica irresistível que
a razão é o piloto do amor.
Mas
há um amor que é efetivamente cego; um amor que não é verídico;
um amor que não é compreensivo; um amor que não é transformante,
e que não ressoa, que não simpatiza, que não advinha, que é
inimigo da verdade. É o amor-próprio. Cegueira voluntária, o
amor-próprio se compraz nas mentiras que agradam as paixões.
Princípio de divisão interna, o amor-próprio divide o homem de si
mesmo.
A
maioria dos dramas consiste no equívoco com que se rotula de amor a
triste pantomima do amor-próprio. Esses romances de amor são
comédias de erros em que cada um engana o outro, e a si mesmo se
engana, com o jogo gracioso que se convencionou ser próprio da
juventude e da esgrimagem dos sexos. O centro de todos os disparates
é o amor-próprio, a divisão do eu, o divórcio interno entre a
vontade e a inteligência, em torno do qual se forma a constelação
de tendências que Karen Horney chamou de pride system.
O
rapaz que descobre, um ano depois do casamento, que foi pescado por
causa do padrão O, e que sua mulher casou-se efetivamente com o
casado de pele, dificilmente poderá alegar a obnubilação produzida
pelos encantamentos do noivado. Sua decepção é injusta. Não viu
porque não quis ver. Cegou-se por amor-próprio. Enganou-se a si
mesmo, e por conseguinte faltou com a devida veracidade, isto é, com
o verdadeiro amor. Estenda pois a si mesmo a decepção, e procure
dar-lhe os nomes de humildade e paciência. E sobretudo procure,
agora em bases mais autênticas, recuperar a lealdade ferida pela
comédia do amor.
Conceder
plenos direitos à amarga decepção da vaidade ferida, equivale a
conceder direitos ao egoísmo, e a negar as verdadeiras
possibilidades de recuperação na base da verídica humildade. Este
é o ponto de soberana importância. Por mais generalizado que esteja
o disparate, o equívoco, o mal-entendido, não é possível
estruturar a sociedade na base de um irracionalismo que proscreve a
razão, e que anula todas as oportunidades de restauração dos
valores genuínos.
Daquele
pobre casal de ludibriados, eu diria que a verdadeira oportunidade de
amor começa nessa ferida, justamente nessa hora magoada em que a
humildade pode vencer o egoísmo. E é nessa oportunidade única que
lhes pretendem roubar, para que recomecem indefinidamente, sem
progresso, sem lucro, sem dor, a insípida comédia de erros.
Torno
a dizer que o amor é lúcido, que a razão é o piloto do amor, e
que o casamento exige de cada um a exata tomada de consciência, que
de modo algum significa uma ducha gelada na incandescência do amor.
E volto a asseverar que a causa principal da crescente instabilidade
conjugal está na leviandade e na falta de preparação.
A
preparação para o casamento pode ser considerada em três partes:
1o.
— Conhecimento da natureza do ato, e do novo estado. O que é o
matrimônio? O que é a família? Qual é o fim principal do
casamento?
2o.
— Conhecimento mútuo no amor.
3o.
— Conhecimento de si mesmo, preparação material e moral de cada
um, tendo em vista as exigências do novo estado.
Vou
aqui abordar somente a primeira parte, que poderíamos chamar de
preparação remota, porque deve ser anterior, para ser mais eficaz,
ao encontro de amor. É claro que essa tomada de consciência da
natureza do matrimônio será benéfica em qualquer momento da vida
conjugal; mas é claro também que sua anterioridade trará um
acréscimo considerável de garantia para a felicidade conjugal.
Não
é demais insistir na importância dessa tomada de consciência. A
sociedade inteira, com seus múltiplos problemas depende da concepção
de casamento e família, que se respira. A sorte do mundo depende, em
primeira linha, da compatibilidade entre as instituições e o amor.
Se o amor for banido das estruturas; se o amor ficar reduzido a uma
entidade vadia e desclassificada; ou se o amor só tiver um lugar de
repouso fora das categorias sociais, ainda que seja um trono
romanticamente instalado acima das vicissitudes da vida comum — a
sociedade humana conhecerá uma espantosa degradação.
O
amor precisa casa. O amor quer morar nas casas dos homens, nas
instituições dos homens. E é esse o principal objetivo de nosso
estudo: traçar a planta baixa e os cortes principais da Instituição
conjugal, isto é, da Casa do Amor.
As
pessoas que se casam levam escondidos no enxoval os seus múltiplos
defeitos. Se fosse preciso ser perfeito para casar-se o casamento só
conviria aos santos. Ou então, como desejam os defensores do
individualismo divorcista, só conviria para os poucos felizardos que
encontrassem um perfeito encaixe das recíprocas imperfeições. O
casamento, nesse caso, não teria nenhuma eficácia sobre os
cônjuges, podendo até servir para os confirmar no satisfeito
egoísmo.
Ao
contrário, em sã doutrina, nós afirmamos que as instituições bem
fundadas na natureza das coisas, exercem uma influência benéfica,
que reverte sobre as pessoas, em analogia com o que se chama "graça
de estado", no plano da vida sobrenatural. A casa ajuda os
casais. As imperfeições das pessoas são socorridas, e de certo
modo compensadas, desde que exista uma boa compreensão da estrutura
em que estão engajadas. E no casamento isto é de capital
importância. Saber o que é o casamento, o que é uma família, é a
meu ver o primeiro e imprescindível fator da felicidade conjugal.
Faltando essa clara consciência do ato e do estado, ainda que haja
amor, igualdade de fortuna, paridade de gosto, de educação e de
temperamento, o casal dificilmente se equilibrará nos dias de
tormenta. A firmeza da casa está na tomada de consciência do casal,
na exata compreensão da natureza da instituição e do novo estado.
É
desse aspecto do problema que trata o presente estudo, e cumpre
advertir que aqui nos colocamos na perspectiva da razão, e não na
luz da fé. O casamento é aqui considerado na sua natureza como
instituição humana; e a crítica que fizermos ao divórcio tem a
mesma perspectiva do direito natural.
(A
Ordem, Fevereiro de 1952)
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