São Tomás de Aquino - Qual o modo possível de se manifestar a verdade
Suma contra os gentios – Cap III; Livro I
1.
Não há um só modo de se manifestar toda a verdade. Boécio cita-o,
qualificando como muito bem dito
(Sobre a Trindade 2; PL 64, 125OA), o seguinte texto do filósofo: É
próprio daquele que tem a razão bem ordenada, tentar apreender a
realidade de cada coisa, enquanto o permitir a natureza desta (I
Ética 1, 109ab; Cmt 3, 36). Assim sendo, é necessário, em primeiro
lugar, mostrar qual o modo possível de se manifestar a verdade
proposta.
2.
Há, com efeito, duas ordens de verdades que afirmamos de Deus.
Alguns são verdades referentes a Deus e que exercem toda capacidade
da razão humana, como, por exemplo, Deus ser trino e uno. Outras são
aquelas as quais a razão pode admitir, como, por exemplo, Deus ser,
Deus ser uno, e outras semelhantes. Estas os filósofos, conduzidos
pela luz da razão natural, provaram, por via demonstrativa, poderem
ser realmente atribuídas a Deus.
3.
É evidentíssimo, que existem verdades referentes a Deus e que
exercem totalmente a capacidade da razão humana. Ora, o princípio
de todo conhecimento que a razão apreende em alguma coisa é a
intelecção da sua substância. Aliás, segundo ensinamento do
filósofo, o princípio da demonstração é o que a coisa
é (II Analíticos Posteriores
3, 90b. Cmt 2, 427). Daí ser conveniente que, segundo o modo pelo
qual a inteligência conhece a substância da coisa, seja também o
modo de se conhecer tudo que pertence a esta coisa. Por conseguinte,
se o intelecto humano compreende a subsistência de uma coisa, seja
uma pedra ou de um triângulo, nenhuma das realidades inteligíveis
desta coisa excede a capacidade da razão humana.
Porém,
com relação a Deus, tal não acontece. Isto porque
o intelecto humano não pode chegar a apreender a substância divina
pela sua capacidade natural. Como nosso intelecto, no estado da
presente vida, tem o conhecimento iniciado nos sentidos, aquelas
coisas que não caem nos sentidos não podem ser apreendidas por ele,
a não ser enquanto o conhecimento delas tenha sido deduzido das
coisas sensíveis. Ora, as coisas sensíveis não podem levar o nosso
intelecto a ver nelas o que é substância divina, porque elas são
efeitos não equivalentes à virtude da causa.
Contudo,
partindo das coisas sensíveis, o nosso intelecto é levado ao
conhecimento divino de modo a conhecer que Deus é, e ao conhecimento
de outras realidades que possam ser atribuídas ao primeiro
princípio. Há, portanto, alguns atributos inteligíveis de Deus
acessíveis à razão humana; outros, porém, que totalmente excedem
a capacidade desta mesma razão.
4.
A mesma doutrina pode ser facilmente inferida considerando-se a
gradação dos diversos intelectos existentes. De dois indivíduos
dos quais um penetra, pela inteligência, mais sutilmente em alguma
coisa do que o outro, o de intelecto mais agudo tem intelecção de
muitas coisas que o outro absolutamente não apreende.
Assim
é que, por exemplo, acontece com o místico, que de modo algum pode
apreender as sutis considerações da filosofia.
Ora,
o intelecto do anjo está mais distante do intelecto humano que o
intelecto de um excelente filósofo está de um rude ignorante, pois
a distância existente entre os dois últimos está ainda contida
dentro dos limites da espécie humana, limites ultrapassados pelo
intelecto angélico. O anjo, na verdade, conhece Deus por efeitos
mais nobres que os conhecidos pelo homem, pois a substância
angélica, pela qual o anjo é conduzido ao usar da razão natural,
para o conhecimento de Deus, é mais digna que as coisas sensíveis e
até que a própria alma, pela qual o intelecto humano eleva-se ao
conhecimento de Deus.
O
intelecto divino, finalmente, excede em muito o mais o intelecto
angélico que este ao humano. O intelecto divino está adequado à
capacidade da sua substância e, por este motivo, tem perfeita
intelecção do que é Deus e conhece tudo o que tem em Deus é
inteligível. O intelecto angélico, porém, não conhece
naturalmente o que Deus é, porque a própria substância angélica –
que leva ao conhecimento de Deus – é efeito não equivalente
à virtude da sua causa. Por isso, o anjo não pode, por conhecimento
natural, apreender tudo aquilo de que Deus tem intelecção em si
mesmo. Do mesmo modo, a razão humana não é suficiente para
apreender tudo aquilo de que o intelecto angélico por virtude
natural pode ter intelecção.
Com
seria imensa estupidez que um idiota, por não poder atingi-las,
afirmasse serem falsas as teses de um filósofo, assim também, e
muito mais, seria demasiada estultícia suspeitar um homem serem
falsas – visto que a razão nelas não pode penetrar – as
revelações divinas feitas pelo ministério dos anjos.
5.
Evidencia-se também esta argumentação pela consideração do
defeito que diariamente experimentamos no conhecimento das coisas.
Ora, desconhecemos muitas das propriedades das coisas sensíveis, e
até não podemos perfeitamente apreender em muitas delas as razões
daquelas propriedades apreendidas pelos sentidos. Ora, não é
suficiente em muito mais a razão humana para investigar todas as
coisas inteligíveis na substância suprema.
6.
Com estes ensinamentos estão de acordo as palavras do Filósofo: O
nosso intelecto está para as primeiras noções dos seres, que em si
mesmas são evidentíssima, como os olhos do morcego para o sol (II
Metafísica 1, 993b; Cmt 279-286).
Também
a Sagrada Escritura oferece um testemunho para esta verdade na
leitura do livro de Jó: Por acaso compreendes os vestígios
de Deus e perfeitamente descobres o onipotente?
(Jó 11, 7); Eis o grande Deus que está acima do nosso
entendimento (Jó 36, 26).
Afirma também Paulo: Conhecemos em parte (1
Cor 13, 9).
7.
Por conseguinte, não se pode rejeitar logo como falso, tal qual
pensaram os maniqueus e muitos infiéis, tudo o que afirma de Deus,
muito embora a razão não o possa penetrar.
Tradução:
D. Odilão Moura O.S.B. e D. Ludgero Jaspers O.S.B.
Revisão:
Luis Alberto de Boni
Escola
Superior de Teologia São lourenço de Brindes
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