28/01/2015

Cristandade: sacralidade da ordem temporal

“A ordem temporal é uma criatura de Deus, devendo dar mais glória ao Criador do que a lua e as estrelas. Por certo, pertencem à Igreja os meios próprios para promover a salvação das almas, mas a sociedade e o Estado possuem meios instrumentais para alcançar o mesmo fim”.
Julgamos útil analisar alguns aspectos de uma das teses fundamentais da doutrina católica quanto ao problema das relações entre [a ordem] espiritual e a temporal, que é a “ministerialidade” (*) desta última em relação àquela. (*) Nota da Redação: Minister, em latim, significa servo, servidor; ministerialidade significa pois aquele que serve; ou seja, a ordem temporal deve servir a desígnios de Deus e da verdadeira Igreja, a Igreja Católica, Apostólica, Romana, pois, esses desígjnios são mais altos do que a ordem temporal, que já se inserem na ordem sobrenatural. Em outros termos, a sociedade e o Estado devem ser, a seu modo, instrumentos de santificação das pessoas, ajudando-as a atingir seu fim último que é alcançar o Céu.

Parece-nos que o ambiente de nossos dias, de tal maneira inculca uma concepção materialista e puramente econômica da vida temporal, que exerce uma influência sensível no feitio de espírito, nos hábitos mentais e nas tendências ideológicas de pessoas que, em tese pelo menos, se presumem fiéis às grandes linhas do pensamento católico e até tomista. Tais pessoas teriam menos dificuldade em aceitar a posição da Igreja sobre a ministerialidade do temporal se se lembrassem bem exatamente de todo o conteúdo humano [ou seja, material e espiritual] da esfera temporal.
Para que esse conteúdo não apareça tão claramente a todos os olhos, têm concorrido — involuntariamente é claro, e por motivos explicáveis — excelentes escritores.
Verdade omitida: a sociedade humana deve satisfazer não só as necessidades do corpo mas também as da alma
 [Outros] autores sustentam a doutrina de que a sociedade humana não existe em conseqüência de um pacto arbitrário estabelecido por certo número de homens em eras que se perdem na noite dos tempos, mas é uma conseqüência espontânea, legítima e inelutável da própria ordem natural. [Eles] expõem detidamente, e com todo o esmero, os argumentos proporcionados à sua tese pela observação da vida quotidiana: necessidade da especialização e da colaboração para assegurar a subsistência material e o progresso; necessidade de uma autoridade para dirigir essa colaboração etc. É, pois, necessidade natural [e não apenas contratual, que exista] uma sociedade com todas as suas características essenciais.
Estabelecida nesta base [a da observação da vida quotidiana], a demonstração, além de irrepreensível, é altamente didática, pois versa sobre fatos claros, simples, palpáveis que se situam no âmbito da observação direta e pessoal de qualquer leitor. [Há, porém, outros argumentos a considerar].
Compreende-se que um autor, premido pela obsessão de resumir, que o corre-corre hodierno impõe, passe por alto sobre outros argumentos, ou silencie mesmo sobre eles. É o que acontece não raras vezes com o argumento baseado no fato de que o homem é social pela natureza de sua própria alma, abstração feita de qualquer necessidade do corpo. Em não poucos livros de toda espécie, feitio e tamanho, que põem ao alcance do público as linhas mestras do Direito Natural, esse argumento não é explorado em toda a sua riqueza.
Decorre daí, na formação da mentalidade do leitor, uma conseqüência importante. Grande número de estudiosos se habitua a ver na sociedade humana algo que existe única, ou pelo menos principalmente, para atender as necessidades físicas do homem.
Não que esta convicção decorra de uma afirmação expressa deste ou daquele tratadista; mas ela se forma no subconsciente à maneira de impressão geral que, se não é lógica, é pelo menos explicável. Pois se os argumentos mais insistentemente mencionados, mais largamente desenvolvidos, são os que se fundam nas necessidades materiais, econômicas, práticas, não é de surpreender que se forme a noção de que a sociedade existe sobretudo para atender a tais necessidades, e que aos poucos os fins da sociedade relativos à alma humana, passem do segundo plano para um olvido completo.
Como dissemos, a atmosfera contemporânea é de molde a favorecer poderosamente esse fenômeno. Vivemos em um ambiente saturado de materialismo, em que a todos os momentos ouvimos opiniões que só seriam verdadeiras…, presenciamos ações que só seriam legítimas…, somos postos em presença de instituições e costumes que só seriam razoáveis… se a alma humana não existisse. O materialismo está imanente e subentendido em quase tudo quanto se passa em torno de nós.
Não é, pois, de espantar que, tantas e tantas vezes, se veja este ou aquele católico — que estudou honestamente as linhas gerais da filosofia moral e que leu em Santo Tomás (De Regimine Principum, Cap. I) que a sociedade temporal tem por fim remediar a insuficiência não só física mas intelectual do homem de viver só — tomar diante dos problemas políticos, sociais e econômicos com que se defronta, uma atitude prática que pouco difere da posição do materialista ou agnóstico.
Conseqüências trágicas do esquecimento da supremacia da alma sobre o corpo
 Sendo o homem constituído por dois princípios distintos, corpo e alma, é claro que em tudo quanto lhe diz respeito, será muito mais importante o que concerne à alma do que ao corpo; pois o que é espiritual e imperecível, vale mais do que o que é material e mortal.
Toda a sociologia que procede dessa verdade deve dar o melhor de sua solicitude e atenção ao que diz respeito à alma humana, seu equilíbrio, seu bem-estar, seu desenvolvimento. Por mais interessantes e respeitáveis que sejam os problemas materiais, por maior que seja o talento, a diligência, o vigor que se devam empregar em os resolver, cumpre nunca esquecer tal verdade fundamental.
Evidentemente, não se trata de consagrar à vida material menos do que ela merece, pois o homem é homem e não um puro espírito angélico. Mas, ainda quando se dê largamente à matéria o que se lhe deve, é preciso não romper a hierarquia dos valores. [Não se pode] conceber os problemas materiais dissociando-os da realidade humana plena e total, isto é, de que temos também uma alma, e que ela vale mais, incomparavelmente mais que nosso corpo.
O mundo moderno desconheceu esses princípios, elevou o corpo à altura de um ídolo, e negou a primazia da alma, quando não a própria existência desta. Tudo ele organizou como se o homem tivesse apenas corpo.
O resultado está diante de nós: as neuroses, as psicoses, as perversões sexuais monstruosas, o existencialismo, a cacofonia da grande confusão de nossos dias. O livro de Alexis Carrel  [“L’homme, cet inconnu”, O homem, esse desconhecido] — ao qual haveria aliás restrições a fazer — já se vai tornando velho, mas pode ser relido com vantagem pelos que desejam informar-se sobre o que está custando ao homem essa subestimação ou negação da alma, no progresso técnico-material de nosso século.
Trata-se pois — e muitos o reconhecem — de restabelecer o primado do espiritual.
Mas para que tal intento não fique apenas no mundo das afirmações sonoras, e se transforme em uma ação palpável, de fins definidos, cumpre investigar no que consiste, bem exatamente, o papel do espiritual na vida que o homem leva em sociedade.
A sociedade dos homens deve espelhar-se na sociedade angélica
 Considerada a alma humana em sua natureza, suas potências, sua atividade, em que sentido pode ela ter uma vida social?
Um campo da vida social, compreendendo relações puramente espirituais de homem a homem, pode parecer situar-se em altura tão etérea, que nada de definido e de útil se possa dizer dele. Essa impressão dissipar-se-á caso recorramos ao que a Igreja nos ensina sobre os Anjos.
O Anjo é um ser puramente espiritual, criado para conhecer, amar, louvar e servir a Deus. Sendo esta a sua única razão de ser, é para tal fim que se ordenam todas as suas potências, todas as suas inclinações naturais. E é para esse fim que o ilumina e o sublima a graça, quando o eleva à ordem sobrenatural, dando-lhe a visão beatífica e o amor sobrenatural.
O Anjo tem, pois, necessidade de uma sociedade: a de Deus. E não poderia viver na ignorância do Criador. Mas esta sociedade lhe basta por dois motivos. Primeiramente, porque Deus é a própria perfeição, e quem O possui não tem necessidade de mais nada. Em segundo lugar, porque a natureza do Anjo se ordena para Deus e só para Ele.
Em rigor, é tal a natureza de um puro espírito, que Deus poderia ter criado só a ele, ou ter disposto que ele não conhecesse outro ser, senão o próprio Deus.
O Criador constituiu entretanto de outro modo a criação angélica. Quis Ele que os Anjos se conhecessem uns aos outros, estabelecendo, pois, entre si, uma vida social que, evidentemente, é toda espiritual.
Os Anjos enriquecem seu conhecimento de Deus ao contemplar o Universo criado
 Esta vida social, entretanto, tem Deus por objeto último. Pois nos conhecimentos que os Anjos comunicam uns aos outros, transmitem o que cada qual pode anunciar de Deus. De tal sorte que cada Anjo tem todas as operações de suas potências aplicadas em Deus de dois modos: um direto, na medida em que tem comércio imediato com Ele; e outro mediato [ou indireto], enquanto se comunica com Ele por meio de outros Anjos. Assim eram as coisas antes da criação de nosso universo [material].
Quando este foi criado, seu conhecimento foi patenteado aos Anjos. E como nosso universo à sua maneira também anuncia as grandezas de Deus, os Anjos adquiriram, em cada ser material criado, objetos de conhecimento que os conduzem, por suas vias próprias, a Deus, objeto único, constante, de todas as operações angélicas.
Por onde a consideração do sol, do chuvisco ou do trovão elevava a Deus o Salmista…, ou por onde uma flor ou um pássaro elevava a Deus um São Francisco de Assis…, ou ainda por onde as maravilhas do átomo podem elevar a Deus o homem moderno… o Anjo as conhece e as utiliza como vias para Deus.
Quem poderá jamais nesta vida terrena — senão a Santíssima Virgem — retraçar o que é a meditação e o amor de um Anjo, que conhece todo o nosso Universo, até o menor de seus segredos? Num só olhar [o Anjo] vê a pulsação simultânea da vida em todos os seres; e [também] o movimento incessante e misterioso da matéria nos espaços incalculavelmente grandes em que se movem os astros [ou] nos espaços incalculavelmente pequenos em que giram os universos e as constelações dos átomos. Em tudo [o Anjo] discerne a Sabedoria Eterna, o Poder absoluto e inabalável, a perfeição do Amor “que move o sol e as outras estrelas”.
O Anjo não é apenas contemplativo, mas, a seu modo, tem natureza ativa. Ele é um guerreiro de Deus 
 Falamos mais detidamente do conhecimento e do amor. Uma palavra sobre o louvor e o serviço de Deus.
Feito para louvar, o ser angélico é de uma natureza por assim dizer exclamativa. O conhecimento e o amor não se perdem sem ressonância nas augustas profundidades de seu próprio ser. Ele transmite, comunica, exprime o que lhe vai no íntimo, por um dever de justiça e de amor para com Deus, sem dúvida, mas também por um impulso de sua própria natureza. Daí o louvor angélico incessante, cuja magnificência a Escritura nos manifesta tantas vezes, com termos e símbolos tão diversos.
Feito para servir, o Anjo não é apenas contemplativo, mas more suo [a seu modo] tem natureza ativa. Ele comunica aos outros o que conhece de Deus — é um serviço docente. Ele é o agente da vontade de Deus na direção do Universo, pois é por meio dos Anjos que Deus governa a criação visível. E esta função executiva comporta um aspecto militante, pois ele é o guerreiro de Deus, que antes dos séculos abateu Satanás e os exércitos rebeldes, e hoje combate o inferno, protege os fiéis e a Igreja na luta contra o poder das trevas.
Eis, pois, o que o Anjo faz por sua própria natureza; o que ele faz como membro da sociedade angélica; e o que a sociedade angélica faz em seu conjunto, enquanto sociedade, segundo o impulso e o desígnio de Deus.
“A alma humana é tão sociável que realizará seu destino eterno numa vida social que terá objeto puramente espiritual” 
 Essas noções relativas à sociabilidade e à vida social dos Anjos são aplicáveis à alma humana, enquanto esta também é, em si mesma, inteiramente espiritual. Porém, incorreríamos em grave erro se, fazendo a transposição dessas noções do reino angélico para a sociedade terrena, não tomássemos em consideração que a alma humana foi criada para viver ligada a um corpo material, destinado a fazer com ela uma só pessoa; e que, pois, toda a natureza espiritual da alma humana se ordena a tal consórcio com a matéria, e só neste consórcio encontra seu modo de ser e de agir inteiramente normal.
Tão íntimo é tal consórcio que, no período em que [depois da morte do homem] a alma viver [no Céu] dissociada do corpo, à espera da ressurreição, encontrar-se-á num estado de anomalia, por assim dizer de violência, certamente indolor porque gozará da felicidade celeste, mas, em todo o caso, de violência autêntica que só a ressurreição fará cessar. Quando nossa alma reassumir o próprio corpo, não o fará como quem volta a um cárcere, mas como quem readquire jubilosamente a plenitude de si mesma.
Para considerarmos a parte do espírito e da matéria nas operações especificamente espirituais do homem, e pois na sociabilidade e na vida social de sua alma, lembremos antes de tudo que “non habemus hic civitatem” [nossa morada não é nesta Terra]. Fomos criados para o mesmo fim que o dos Anjos, como eles fomos elevados à ordem sobrenatural. E naquela eternidade diante da qual a vida terrena é um mero instante, deveremos participar da sociedade espiritual dos Anjos, contemplando, amando, louvando e servindo a Deus.
Tal é a afinidade entre a natureza e as operações de nossa alma e as dos espíritos angélicos. Nosso corpo participará, é certo, dessas operações mas no estado de corpo glorioso, isto é, de tal maneira embebido, por assim dizer, da espiritualidade de nossa alma, e da graça de Deus, que seu próprio modo de ser e de operar será como que sublimado para além do nível próprio à mera natureza humana e fixado na imortalidade.
Feitas estas reservas [quanto ao papel do corpo], vemos que a alma humana é tão sociável que realizará seu destino eterno numa vida social que terá objeto puramente espiritual.
Na Terra e no Céu o homem tem essencialmente a mesma finalidade: conhecer, amar, louvar e servir a Deus
 Isto nos pode ajudar talvez a compreender melhor como se realiza a vida, e mais especialmente a vida social das almas, na existência terrena. E como esta vida social autêntica tem por objeto valores inteiramente espirituais.
Se o nosso fim próprio é conhecer, amar, louvar e servir a Deus, nossa natureza, máxime enquanto elevada à ordem sobrenatural, deve tender inteiramente para tal fim. Ou seja, todas as nossas atividades mentais e físicas devem dirigir-se para o conhecimento da verdade e a prática do bem.
Isto é real quanto à nossa natureza no Céu, mas também na vida terrena, pois a natureza humana já é o que deve ser eternamente, e, pois, suas tendências fundamentais já são o que eternamente serão.
E como a vida terrena não pode ser contrária à nossa natureza, ela já é, de algum modo, em sua substância, no que ela tem de mais interno, essencial e íntimo — no plano natural como no plano sobrenatural — a mesma vida de contemplação, amor, louvor e serviço de Deus que teremos no Céu.
O homem prepara-se para o Céu contemplando os reflexos de Deus nas coisas criadas…
 Se é nisto que consiste o essencial de nossa vida terrena, cumpre lembrar entretanto que o modo pelo qual realizamos aqui tais operações diverge profundamente do modo pelo qual as realizaremos no Céu.
Teremos na eternidade a visão beatífica, sem véus nem obstáculos. Nosso amor terá atingido uma definitiva plenitude. Nosso louvor e nosso serviço serão sem jaça nem desfalecimento.
Na vida terrena, pelo contrário, estamos em condição de prova. Temos dons naturais e sobrenaturais a preservar e a desenvolver. Nossas ações — ainda as melhores — e, pois, também nosso louvor e nosso serviço, estão eivados de imperfeições. Nosso modo normal de ser nos sujeita muito mais à matéria, do que quando nossos corpos tiverem sido transfigurados pela glória. Tudo isto não obstante, é bem verdade que o homem, mesmo o mais dissipado, contempla ativamente. Para nos darmos conta disto, bastará que esclareçamos o que é concretamente, na vida terrena e no plano natural, uma contemplação.
 O que faz um homem quando se detém no caminho para ver passar um desfile militar ou uma procissão religiosa, para considerar um edifício ou um panorama, para observar uma cena particularmente grave ou pitoresca da vida quotidiana, para assistir uma peça de teatro? Contempla, isto é, fixa a atenção sobre determinado objeto, toma conhecimento do que nele há de verdadeiro ou de falso, de bom ou de mau; aceita, consente, como que assimila em sua própria alma a verdade e o bem; experimenta uma dissonância, rejeita, opera como que uma purgação em si mesmo, do que a coisa lhe possa ter comunicado de mau.
Tendo diante dos olhos seres relativos e contingentes, que têm em si o reflexo do Ser absoluto, o homem, pelos canais dos sentidos, considera nos seres contingentes algo que existe absolutamente em Deus; como que se apropria desse bem, no próprio ato em que o considera; configura-se a este bem. Em suma, faz um ato caracteristicamente contemplativo, embora marcado pelas condições inseparáveis desta vida terrena. Muitos homens, infelizmente, ao realizar tais atos de contemplação, não se elevam de nenhum modo até Deus, e se detêm na fruição egoística e circunscrita ao ser relativo que têm diante de si.
Muitas vezes, seu conhecimento é vicioso, e dá acolhida ao erro e não à verdade; a contemplação os leva a assimilar o mal e não o bem. É que, evidentemente, assim como há contemplações boas, há também contemplações más. São os triunfos do mundo, da carne e do demônio. Tudo isto não obstante, a ação que realizam é essencialmente contemplativa, embora possa ser meramente natural, e é uma afirmação de que há no homem uma insopitável veia de contemplação.
Essa contemplação traz necessariamente como conseqüência o louvor, ou sua antítese que é a blasfêmia, pois na Terra como no Céu, como no inferno, o homem é, como dissemos, exclamativo, isto é propenso a comunicar o que lhe vai na alma. E leva ao serviço, pois o homem naturalmente serve aquilo a que ama, a Cidade de Deus ou a Cidade do Demônio, a verdade ou o erro, o bem ou o mal.
É por esta forma que a alma humana realiza desde já, nesta Terra, para a sua salvação ou para a sua condenação, as grandes operações que é levada a realizar por toda a eternidade. Claro está que esta contemplação, na medida em que é feita à luz da Fé, é uma operação animada pela graça.
… recebendo o impulso para conhecer, admirar e se relacionar com outros homens
 Do que ficou dito, resulta a evidente necessidade que tem a alma humana de entrar em contato com objetos externos sobre os quais possa exercer sua atividade. A carência hipotética de tais objetos deixaria na atrofia suas potências, e reduziria sua vida ao simples fato de existir.
Assim como o corpo humano se pode alimentar a pão e água, mas adoecerá se passar longo tempo só com estes alimentos, assim também a alma humana não se pode alimentar na mera consideração de um objeto, ou de um número muito pequeno de objetos.
Suas operações em tal caso ultrapassariam, é claro, as fronteiras do simples existir, mas levariam a alma a um operar tão defeituoso que daí se lhe seguiria um desequilíbrio. É o caso de certos operários, forçados por sua profissão a permanecer horas inteiras com a atenção voltada sobre um mesmo fato simples, pobre, quase asfixiante: um sinal luminoso, por exemplo, cujo acender ou apagar mais ou menos irregular se trata de registrar de minuto em minuto sobre uma folha de papel, durante 10 ou 12 horas de trabalho quotidiano. Certas constituições mentais excepcionalmente bem dotadas poderiam, quiçá, refazer-se deste trabalho por uma dispersão da atenção em horas de lazer. Outras, porém, sucumbiriam por uma como que anemia. Nossa alma foi feita para a consideração do Universo, de todo o conjunto de seres sobre os quais nossos sentidos tendem normalmente a se aplicar.
Destes seres, o que ocupa o lugar central na cena, o que domina os outros, o que de certo modo os compendia a todos em si, é o próprio homem. A alma humana, naturalmente criada para considerar o Universo, é por isto mesmo propensa com a maior veemência, pelo impulso mais profundo e mais obstinado de todo o seu ser, à contemplação do que o Universo tem de mais essencial: os outros homens. Todo o Paraíso, com suas delícias, era inadequado ao homem antes da criação da mulher: “não era bom” que nele o homem ficasse só. Nesta propensão essencial do homem para realizar na Terra o que fará no Céu, está incluída a necessidade de conhecer e tomar contato com outros homens. E nisto está, do ponto de vista da alma — isto é do mais importante dos pontos de vista atinentes ao homem — a verdadeira necessidade da vida social.
As funções de conhecer, amar, louvar e servir a Deus no espelho da criação devem naturalmente ter nas condições da vida terrena, como objeto mais constante, mais rico, mais vivo, mais direto, aqueles cujas almas são a própria imagem e semelhança de Deus.
Contemplando, por exemplo, um belo cristal, pode-se compreender as excelências de Deus
Como se realizam essas operações? Conhecendo melhor o próximo, que é a semelhança de Deus, conhecemo-nos melhor a nós mesmos e ao próprio Deus. Assimilando em nós as virtudes do próximo, enriquecemos nossa alma com algo que lhe é de todo em todo conatural, e que com alto teor de realidade reflete a Deus. Assim, é certo que podemos ter alguma idéia do amor, considerando a proteção que a galinha dá a seus pintainhos, e com isto podemos crescer em virtude. Mas muito mais [perfeita] será nossa idéia, muito mais decisivo normalmente o estímulo, [se] considerarmos uma mãe protegendo seu filho. Isto, quer para formarmos uma idéia do amor humano, quer principalmente do amor divino.
A contemplação não é apenas conhecimento, mas amor. Uma das afirmações mais quentes e mais irresistíveis de nossa sociabilidade está nesta necessidade de amar e de ser amado, que é inseparável da natureza de cada homem.
Nosso amor se volta para as coisas do reino mineral, do reino vegetal, do reino animal com alguma adequação. Podemos amar um belo cristal que encontramos à flor da terra durante um passeio; mais adequadamente amamos uma planta, uma rosa por exemplo; a palavra amor se torna rica de um sentido maior quando ela tem por objeto um animal, por exemplo o cão, companheiro fiel nos bons e nos maus dias. Mas ele só é propriamente amor quando tem por objeto um ser de nossa espécie. Este último amor, incomparavelmente maiordo que os outros que acabamos de enumerar, nos dá uma idéia do amor que devemos Àquele que é o Ser absoluto, o Ser por excelência, o Ser que contém em Si substancialmente todas as perfeições.
A contemplação não é mero conhecimento, nem mero amor: ela é também assimilação. Pois o próprio do amor é produzir a assimilação entre dois seres. Por isto, nota-se no homem, como um dos traços mais essenciais de sua natureza, uma profunda influenciabilidade por outros homens, mas especialmente por aqueles a quem admira. Imitar é uma tendência própria a todos e está longe de ser, em si mesma, coisa degradante ou ridícula.
Pode haver imitações que têm por objeto pessoas indignas. Pode haver imitações que têm por objeto pessoas dignas [mas] cujas propriedades alguém procure assimilar de modo excessivamente exato, e, pois, naquilo que é inconfundível em uma pessoa e intransponível para outra. São os erros que existem na operação de imitar, como em qualquer outra operação humana. Mas, em si mesmo, imitar, assimilar, é uma função legítima, constante da mente humana, é uma satisfação às exigências mais profundas de nosso ser.
Se assimilamos o que devemos, se imitamos a quem devemos, aperfeiçoamo-nos e aumentamos nossa semelhança com Deus, refletido no espelho de suas criaturas. Imitar, servir de exemplo, são obrigações de cada homem, operações essenciais ao aperfeiçoamento da alma, inerentes profundamente à vida social das almas. São maneiras dispostas pela própria Providência, e dotadas por Ela de eficácia relevante, para o exercício das potências da alma, desenvolvimento do espírito, e conquista daquela perfeição que é a veste nupcial com a qual nos habilitamos para o perfeito festim da alma, que é a perpétua contemplação de Deus.
“Realizar dentro do mero campo natural uma como que transfiguração da matéria pela iluminação interior da alma”
 Como se dá este comércio entre as almas? Em outros termos, como vivem elas sua vida social?
Quando duas pessoas estão em contato entre si, por mais que sejam desiguais em inteligência, instrução ou força de persuasão, estão em condições de exercerem recíproca influência uma sobre a outra.
O corpo humano é um instrumento maravilhoso para a expressão da alma. Todas as nossas idéias, mesmo as mais abstratas, todas as nossas emoções, mesmo as mais sutis, são susceptíveis de uma expressão adequada pela ação primordial da palavra em si mesma, completada e enriquecida pela inflexão da voz, pela expressão do olhar, pelos gestos, pela atitude do corpo, pelo porte e até pelo modo de andar. Virgílio nos diz que pelo simples modo de andar, Dido se mostrava uma Deusa: “et incessu patuit Dea …”
O poder de expressão de seu corpo, o homem o acentua pelo traje e pelo ornato. Este poder chega a ser tão grande, que passa às vezes e, aliás, erroneamente, por irresistível.
Quando esta transparência da alma em todo o modo de agir e de ser do corpo se torna nítida, e sobretudo quando tal transparência revela uma alma firme, clara, lógica, reconhece-se estar em presença do que se chama uma personalidade. Ter personalidade, ser uma personalidade, é ter uma alma bastante desenvolvida para dirigir, influenciar, brilhar em todo o corpo material. É realizar dentro do mero campo natural uma como que transfiguração da matéria pela iluminação interior da alma, que é uma prefigura meramente natural, mas esplêndida em si mesma, da transfiguração sobrenatural, incomparavelmente mais radiosa e mais nobre, que os corpos gloriosos terão no Céu, e de que Nosso Senhor no Tabor, e também alguns Santos, nos têm dado uma visão sensível nesta Terra de exílio.
As disposições da alma não só se irradiam ao corpo, mas se comunicam aos objetos sobre os quais o homem exerce sua influência
 A alma não se exprime só através do corpo. As formas, as cores, os sons, os odores, os sabores têm uma analogia que não é meramente convencional com as disposições da alma humana. E por isto as palavras que servem para designar estados da alma humana são correntemente empregadas para designar, por analogia, propriedades de seres animais, vegetais ou minerais. Pode-se falar do cântico alegre de um pássaro, do aspecto risonho de um bouquet de flores, ou simplesmente de um panorama; e isto do mesmo modo por que se fala do riso alegre de uma jovem ou de uma criança. Pode-se falar da majestade de um Rei, como da águia ou do trovão. Os exemplos disto poderiam ser multiplicados quase ao infinito.
Dado este fato, pode o homem aplicar sua ação sobre os seres inferiores, comunicando-lhes uma certa expressão. Assim, é certo que as espécies animais domesticadas pelo homem recebem dele como que certa amenidade de comportamento, certa compostura, que os distingue dos congêneres selvagens por diferenças muito semelhantes àquelas que distinguem o homem civilizado do bárbaro.
Certos animais, gatos angorás ou lulus da Pomerânia por exemplo, tomam uma como que distinção evidentemente afim com os ambientes humanos em que vivem. Uma ação do mesmo gênero pode também ser desenvolvida pelos homens sobre certas plantas, nas quais se distinguem as espécies selvagens e as cultivadas, antes diríamos as culturadas. Certa expressão de alma, o homem pode até comunicá-la a seres perfeitamente inanimados: quando faz, por exemplo, um quadro que terá uma expressão que de nenhum modo preexistiu na tela, no pincel ou nas tintas.
E tal é a alma humana, que o próprio do homem é comunicar uma tal ou qual expressão a todos os objetos de que se cerca. Porque somos feitos de alma e corpo, queremos que os objetos que nos servem ao corpo falem também à alma. Um móvel cômodo é o que serve só ao corpo: um móvel elegante é o que serve também à alma. Um tecido resistente, agradável ao tato, adequado ao clima, satisfaz ao corpo. Mas a alma tem exigências próprias e pede que ele seja belo.
Ambiente: quando entramos numa sala, parece sentir-se a personalidade de quem a decorou
 As observações acima nos conduzem a uma noção essencial, que é a de ambiente.
Quando às vezes entramos numa sala, parece-nos sentir a personalidade de quem a decorou. Dizemos que tem ambiente. O que quer dizer aí ambiente? É a expressão de alma que, pelo jogo das formas e das cores, uma pessoa conseguiu comunicar a objetos materiais.
Nisto, como em tudo, o homem imita Deus. Quando contemplamos certos panoramas marítimos, quando à noite olhamos para o céu, sentimos uma expressão de alma que se desprende desse mundo: é o ambiente criado por Deus, e pelo qual Ele se exprime a nossos sentidos.
Muito mais fácil ainda nos seria exemplificar com os sons, os perfumes, os sabores. São Paulo escreveu que o vinho, bebido com moderação, alegra o coração do justo. A Igreja se serve da música para formar nossa piedade. O aroma austero do incenso lhe parece adequado a ser respirado por nós na oração. Pelo contrário, os seus moralistas sempre nos premuniram contra os perfumes voluptuosos e capazes de excitar a moleza e a luxúria.
Consideremos agora o ambiente em relação ao fim essencial da contemplação, que é conduzir-nos a Deus.
Se os estados de alma são susceptíveis de se exprimir assim, está implícito que as virtudes e os vícios também. Eles se manifestam com freqüência na face humana, na inflexão da voz, no gesto, no andar. Eles são susceptíveis de marcar com sua nota própria tudo quanto o homem faz ou produz.
Um ambiente não pode ser moralmente indiferente. Ou será bom, e favorecerá as almas, ou será mau, e agirá em sentido oposto
 A intemperança ou a temperança de um autor não se nota só no fato de explorar [ou não] o nudismo. O ritmo de uma música pode, em si mesmo, ser lascivo; como a combinação de certos perfumes, ou a complicação de certos sabores. A falta de siso não se exprime só pelo sentido das palavras, mas pelo desalinhado do gesto, pela extravagância das linhas ou das cores de um traje, de um móvel, de um edifício.
Neste ponto, como em outros, o homem é sujeito a erro e pode tachar de voluptuosas ou desatinadas coisas que só lhe parecem tais porque não está habituado a elas; não obstante, uma certa volúpia ou extravagância pode estar realmente na coisa produzida ou fabricada por um homem voluptuoso ou extravagante.
Sempre que estamos em presença de um “ambiente”, precisamente porque ele exprime um estado de alma, [devemos ter em conta que ele] não pode ser moralmente indiferente: ou será bom, e favorecerá as almas na consideração e assimilação de Deus; ou será mau e agirá em sentido oposto.
Isto é o que se poderá dizer da honestidade ou desonestidade natural dos ambientes. Será lícito caminhar mais um passo, e falar em ambientes especificamente cristãos? Parece-nos que sim.
A alma humana, tocada pela graça, adquire uma perfeição sobrenatural que por vezes se espelha na face. A hagiografia pulula de testemunhos disto. A Transfiguração, o que foi senão isto? Ora, a pintura e a escultura podemexprimir algo disto. E certos edifícios, em que estas esculturas e vitrais se encontram, têm com estes uma tal harmonia, que parecem à sua maneira exprimir a mesma irradiação da alma humana misticamente incorporada a Nosso Senhor Jesus Cristo. O heroísmo dos cruzados foi tipicamente cristão e, pois, diverso do heroísmo meramente natural de um legionário romano. É possível considerar o ambiente formado numa paisagem por um possante castelo medieval, sem ter a impressão de que algo de tipicamente cristão nos toca a alma?
O ambiente exprime o estado de espírito dominante
 Quando a vida social das almas é regular e intensa num determinado grupo humano — uma família digamos, ou uma sociedade —, constitui-se nele uma como que alma coletiva, ou seja, um conjunto de convicções, algumas das quais prezadas como particularmente importantes. Conseqüentemente, uma mentalidade coletiva, um estado de espírito comum exercendo uma influência especialmente forte sobre todos os membros. [Nesse grupo] o vocabulário se define pelo uso mais insistente de certas palavras ou expressões que tomam por vezes até, dentro do grupo, uma tonalidade específica. Não raras vezes, aparecem até neologismos.
De outro lado, o modo de trajar, de falar, de comportar-se, todas as preferências pessoais tendem a receber a marca dos princípios comumente aceitos, e especialmente dos que são dominantes. Por fim, o ambiente material se satura desta influência e aos poucos o quadro físico — casa de família, sede social etc. — vai sendo transformado de maneira a exprimir ele próprio o espírito dominante.
Várias sociedades menores, formando entre si como que uma sociedade de sociedades — um conjunto de famílias numa cidade, digamos —, podem manter um como que comércio espiritual comum, que forma o ambiente mais genérico, porém não menos afirmativo, da vida da cidade. O florescimento de um conjunto de vocábulos, de trajes, de hábitos locais, a produção de obras de artesanato marcadas pelo estado de espírito local e até de influências artísticas nitidamente locais, tudo isto é o resultante de uma sociedade espiritual harmônica, definida e ativa. Evidentemente, poderíamos subir assim da cidade à região, desta ao país, e deste por sua vez às grandes zonas de cultura e de civilização.
Sem entrar no debate inesgotável sobre o sentido de civilização, de cultura, de estilo artístico, chamemos aqui cultura social o estado de espírito coletivo, a alma coletiva, pelo menos enquanto fecundado e ordenado pelo trabalho intelectual e enquanto existente como nota caraterística que marca também o trabalho intelectual. Chamemos civilização o conjunto das instituições, leis, costumes, enfim todo o modo de ser coletivo, enquanto marcado pela cultura. E [chamemos] estilo às manifestações da arte, enquanto marcadas pela cultura, e, pois, necessariamente afins com a civilização. Chamemos ambiente social à impressão de conjunto exercida sobre o observador pela ação harmônica da civilização, da cultura e do estilo, a transparência definida, forte, inequívoca do estado de alma e dos princípios doutrinários que são o que aquela sociedade de almas tem de mais intrínseco.
A função contemplativa do homem nesta Terra normalmente se exerce apoiada no ambiente, na cultura, no estilo e na civilização gerados pelo inter-relacionamento espiritual das almas na ordem temporal 
Neste sentido, podemos e devemos dizer que o ambiente, a cultura, o estilo, a civilização, isto é, os bens intrinsecamente mais altos da sociedade humana, são o produto da vida social enquanto sociedade de almas. Estes bens são indispensáveis ao modo de ser habitual das almas, e justificam por si mesmos, independente de outros argumentos — todos legítimos aliás — a existência da sociedade. Pois ninguém pode conceber um convívio humano que não tenda, por seu dinamismo próprio, a produzir estes bens. Nem [pode conceber] condições normais de vida para a alma fora de tudo quanto se possa chamar ambiente, cultura, estilo e civilização.
No mesmo sentido, devemos ainda dizer que a função contemplativa do homem nesta Terra — aprendizado, prova e prenúncio de sua função eterna no Céu — normalmente se exerce com apoio no ambiente, na cultura, no estilo e na civilização. Pois é com o auxílio de tudo isto que o homem melhor e mais adequadamente assimila ou rejeita os diversos aspectos do meio que o cerca.
Ainda nesta ordem de idéias, devemos acrescentar que a formação do ambiente, da cultura, do estilo, da civilização, constituem, embora produtos tipicamente espirituais, objetos próprios da sociedade temporal. Pois é esta ultima noção que nos permitirá prosseguir em nossas reflexões, chegando a uma perspectiva muito ampla, das relações entre a Igreja e a sociedade civil.
As características da mentalidade humana se entranham harmoniosamente no ambiente, como a alma no corpo
  Mas antes de chegar a este ponto, consideremos em suas mútuas relações os aspectos espirituais e materiais da vida temporal. De que maneira se relacionam as atividades atinentes à formação do ambiente, da cultura, do estilo, da civilização com as demais atividades cuja contextura forma a vida quotidiana dos homens e das sociedades?
Consideremos o assunto na esfera limitada de uma família.
Por mais ambiente que ela tenha, por mais que sua vida social-espiritual seja intensa, haveria um erro em imaginar que cada uma das suas atividades é dirigida pela preocupação inteiramente consciente, definida, intencional de formar um estado de espírito e de o definir. Muito disto é feito com a naturalidade e a despreocupação com que o corpo respira ou o sangue circula nas veias. No construir um móvel, fazer uma cortina ou escolher um quadro, as preocupações conscientes de ordem absolutamente prática, de caráter inteiramente circunstancial, podem até ter um papel preponderante.
Tudo isto não obstante, as forças mais profundas da alma cooperarão também, e deixarão sua marca no ato, sem que, muitas vezes, a própria pessoa que faz o móvel, que escolhe a cortina ou o quadro, o perceba. [São] afinidades naturais vigorosas e entretanto tão discretas, entre as várias coisas adquiridas sucessivamente pelas diversas gerações de uma família. E que coexistem numa mesma casa, cujas características, entretanto reais e palpitantes da atmosfera doméstica, por vezes só as pessoas estranhas ao lar são capazes de notar.
É o que explica a formação dos estilos. Nenhum deles é uma produção de gabinete, mas é obra de uma sociedade inteira. Os artistas não são propriamente os criadores do estilo em uso em uma sociedade, mas seus intérpretes, seus propulsores na linha em que se vai desenvolvendo a própria mentalidade social.
E é o que explica também que nos estilos verdadeiramente produzidos por uma sociedade, o prático e o belo, os elementos de utilidade física e as características de expressão mental se fundam tão harmonicamente.
A vida propriamente mental se entrelaça tão intimamente, se embebe tão profundamente, se entranha tão indissociavelmente na vida material, como a alma no corpo. E é nesta interpenetração que está a garantia da sanidade e da autenticidade de uma e de outra.
A sociedade temporal deve criar condições para o progresso tanto espiritual quanto material 
Qual destas atividades [a utilitária ou a mental] é a mais importante na vida temporal? Concretamente, isto equivaleria a perguntar, quando numa família se adquire um objeto — um armário, digamos —, o que é mais importante: que sirva para guardar roupas, ou que por seu aspecto acentue o poder de expressão do ambiente material do lar. Ou, em um país, ao fazer um Palácio da Justiça, o que mais importa, é sua utilidade prática para o funcionamento dos órgãos da judicatura, ou a majestade e gravidade com que deve penetrar o ambiente judiciário e exprimir a natureza mais íntima da função de julgar.
Quando um objeto deve ter, por sua natureza, dois atributos, ambos essenciais, se um lhe falta, não vale nada. Em vez de escolher entre o armário materialmente útil e o “espiritualmente” útil; ou em vez de escolher entre o Palácio só materialmente adequado e o Palácio só espiritualmente adequado, seria o caso de começar por rejeitar um e outro.
O homem tem o direito e o dever de ser suficientemente exigente, para não se contentar com um objeto que preste maus serviços à sua alma ou ao seu corpo.
Não queremos, porém, fugir à questão que há pouco havíamos formulado. O fim imediato, próprio, natural de um armário não consiste em ser como que uma condensação de doutrina ou de mentalidade. Neste sentido, mais lhe importa guardar convenientemente roupas. Mas, como o serviço prestado à alma vale mais do que o que se presta ao corpo, em certo sentido é mais importante a função educativa de um mobiliário do que seu aspecto prático.
O mesmo se deve dizer da sociedade temporal, considerada como um todo. Sua situação não pode ser tida por normal, senão quando fornece condições de existência e de progresso satisfatórias tanto para a alma quanto para o corpo. A recíproca influência entre as duas esferas levará mesmo os progressos obtidos em cada uma a repercutir favoravelmente no dinamismo próprio à outra. Qualitativamente, entretanto, é bem verdade que os benefícios do espírito importam mais que os da matéria. E por isto, em que pese a certa mentalidade moderna, importa mais a um país ter uma cultura própria, um estilo próprio, costumes, instituições, leis em consonância com o ambiente nacional, do que uma perfeita canalização de águas e esgotos.
A Atenas do tempo de Péricles brilhará para sempre no firmamento da História. A Atenas de hoje, incomparavelmente superior à outra como comodidade material de vida, que lembrança deixará de si no futuro?
A sociedade temporal exerce função ministerial a serviço da ordem sobrenatural, constituindo tal função instrumento útil e poderoso para a salvação das almas 
Trata-se, agora, de definir as relações entre as funções da sociedade temporal, que acabamos de descrever, e a Religião.
A Igreja ensina que a vida terrena deve ser comparada a um noviciado. O noviço deve adquirir os conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para a vida religiosa. O homem deve adquirir na vida terrena os conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para o Céu.
Por virtude se entende o hábito de operar segundo a reta razão. O que supõe um conhecimento dos ditames da reta razão. As operações a que se referem estes ditames não são apenas as exteriores, mas as interiores. Qualquer ato meramente interior do homem, desde que tenha o consentimento da vontade, é susceptível de ser virtuoso ou não, conforme esteja em acordo, ou em desacordo, com a reta razão. A sociedade temporal-espiritual é dotada de uma ação poderosa sobre o homem para o levar a pôr atos interiores ou exteriores conformes à razão. Ela pode, pois, ser meio útil para salvar ou para perder.
As mais altas manifestações da vida temporal se inserem, por sua própria natureza, no âmago do problema da salvação e a ele não podem ficar de nenhum modo alheias. Não é só pelo concurso das leis com que favorece a Igreja verdadeira e reprime o erro, que a sociedade temporal pode servir à salvação. É pelas mil atividades espirituais que constituem o que ela tem de melhor, isto é, o fato de ser uma sociedade de almas, sem o que nem sequer ela seria sociedade.
Dá-se pois com a sociedade temporal — mutatis mutandis — o mesmo que com a família, sociedade também ela natural, temporal, mas destinada pelo que ela tem de mais visceral, a atividades que coincidem com as da Igreja.
Dada esta interpenetração profunda de campos, desejada pela Providência, seria absurdo supor que Deus não quisesse uma cooperação entre a sociedade temporal e a Igreja. E, mais, que nessa cooperação entre duas sociedades intrinsecamente desiguais, o temporal, natural, perecível não estivesse em posição ministerial em relação ao espiritual, sobrenatural, eterno; o fim próximo em relação ao fim último.
Há nestas considerações base suficiente para se ir mais longe, sustentando que a sociedade temporal, máxime enquanto sociedade de almas, não alcança a sua perfeição senão mediante o Magistério e a graça de que a Igreja é depositária. Mas isto nos levaria longe do nosso tema.
A Igreja alcança grandes frutos em sua atuação quando instituições, leis, estilos etc. constituem um ambiente católico
  A sociedade temporal tem, pois, tanto quanto a família, embora a seu modo próprio, uma função de apostolado a exercer na própria esfera temporal, sob a inspiração e o magistério da Igreja.
Qual a importância real de sua contribuição, na obra da salvação? Trata-se, é claro, de uma contribuição de caráter meramente natural, pois só a Igreja é uma sociedade sobrenatural. Isto posto, pode-se entretanto sustentar que tal importância é imensa. A Providência quis que o ambiente de uma família, de uma sociedade cultural, profissional, recreativa ou qualquer outra, o ambiente de uma cidade, de uma província, de um país exercessem sobre o homem uma influência natural profunda, da qual, é certo, ele pode libertar-se com o auxilio da graça, caso tal influência seja má, mas que em todo o caso atua em seu íntimo poderosamente. A prova disto está na evidência dos fatos. Onde as leis, as instituições, os costumes, a cultura, o estilo, a civilização constituem um ambiente profundamente católico, a ação específica da Hierarquia Eclesiástica logra habitualmente grandes frutos, e a ação dos Sacramentos, da pregação, a irradiação da santidade dos Ministros de Deus move as multidões. Onde pelo contrário tudo se lhe opõe, as dificuldades para a ação da Hierarquia se tornam imensas. São vencíveis, é certo, pois para Deus nada é impossível. Mas atuam em si mesmas de modo desfavorável.
É o que explica que países inteiros tenham caído repentinamente na heresia, como a Inglaterra, ou as nações escandinavas: todo o ambiente tinha uma nota apenas aparente de catolicidade. O que era verdadeiramente dominante, era a indiferença, a tibieza.
Em sentido contrário, poder-se-ia argumentar com a expansão da Igreja sob as perseguições e seu afrouxamento depois de Constantino. O argumento é intrinsecamente tão fraco, que faz sorrir. Quem pode admitir que a Esposa Mística de Cristo só seja fecunda quando tratada a chibatadas…, que seus verdadeiros benfeitores sejam os Neros, e os Dioclecianos, e seus verdadeiros perseguidores São Luís, São Fernando, ou Santo Henrique?
Noção de sociedade temporal sacral
A sociedade temporal, querida por Deus, ordenada por Ele, realizando em si mesma uma obra que é de santificação, é uma sociedade santa, que tem uma função sagrada. [Ela permanece] sociedade inteiramente natural como a família, mas como ela [é] trabalhada a fundo pela vida sobrenatural que borbulha em seus membros. Sociedade santa e sagrada como o é a família cristã, à qual convém tão bem a designação de santa, que até o seu vínculo constitutivo é um Sacramento instituído pelo próprio Jesus Cristo.
Santo Império, Santa Rússia, Santa França eram antigamente designações correntes e perfeitamente legítimas. E ninguém estranhava que o óleo sagrado servisse como um Sacramental para ungir os Reis, que a sua investidura no poder temporal supremo se desse durante a Missa, numa função essencialmente religiosa, com a participação do Clero; que a Cruz de Cristo brilhasse no alto do símbolo do poder temporal, que era a coroa; ou que o título mais honroso do detentor supremo do poder temporal fosse um título religioso: Sacra Majestas, Rex Apostolicus, Rex Christianissimus, Rex Catholicus, Rex Fidelissimus, Defensor Fidei [Majestade Sagrada, Rei Apostólico, Rei Cristianíssimo, Rei Católico, Rei Fidelíssimo, Defensor da Fé]. [E ninguém estranhava também] que os duques da Lorena — que se presumiam reis de Jerusalém — cingissem uma coroa cujo diadema era feito de espinhos, ou que o Rei da Lombardia tivesse em sua Coroa de Ferro um Cravo da Paixão de Cristo. Todos estes fatos atestavam a sacralidade da sociedade temporal e portanto do poder temporal, embora este fosse distinto da Hierarquia Eclesiástica.
Chegamos assim à noção da sociedade temporal ministra da Igreja, que abre amplas perspectivas para a noção da sociedade temporal sacral.
Parece-nos que — se todos os que se interessam pelo problema das relações entre a sociedade temporal e a Igreja tivessem bem claro no espírito que a palavra temporal inclui a título capital imensos valores espirituais, e quais sejam eles — mais fácil lhes seria compreender a ministerialidade do temporal.
Nota da Redação – Esses títulos tão significativos correspondiam aos principais monarcas da Europa de então: Majestade Sagrada, título que correspondia ao imperador do Sacro Império Romano-Alemão; Rei Apostólico,  ao Rei da Hungria; Rei Cristianíssimo,  ao Rei da França;  Rei Católico,  ao Rei da Espanha;  Rei Fidelíssimo,  ao Rei de Portugal;  Defensor da Fé, Rei da Inglaterra.

Obs: O título, subtítulo e intertítulos do presente ensaio são da redação. Igualmente são da redação os pequenos esclarecimentos colocados entre colchetes […] para mais fácil intelecção do texto.

Extraído da Revista Catolicismo de Outubro de 1998


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