O Saque de Roma, Francisco Javier Amérigo (séc. XIX), Museu do Prado, Madrid |
"Os guardas suíços se reuniram em torno do Obelisco do Vaticano, decididos a permanecer fiel ao seu juramento até a morte. Os últimos deles se imolaram próximo ao altar da Basílica de São Pedro."
Por Roberto
De Mattei em 7 de dezembro de 2015
A Igreja
vive uma época de desvio doutrinário e moral. O cisma é deflagrado na Alemanha,
mas o Papa não parece dar-se conta do alcance do drama. Um grupo de cardeais e
de bispos propugna a necessidade de um acordo com os hereges. Como sempre
acontece nas horas mais graves da História, os eventos se sucedem com extrema
rapidez.
A Igreja vive uma época de
desvio doutrinário e moral. O cisma é deflagrado na Alemanha, mas o Papa não
parece dar-se conta do alcance do drama. Um grupo de cardeais e de bispos
propugna a necessidade de um acordo com os hereges. Como sempre acontece nas
horas mais graves da História, os eventos se sucedem com extrema rapidez.
No domingo, 5 de maio de 1527, um
exército descido da Lombardia entra no Gianicolo [uma das sete colinas de Roma].
O Imperador Carlos V, irado pela aliança política do Papa Clemente VII com o
seu adversário, o rei francês Francisco I, tinha feito avançar um exército
contra a capital da Cristandade. Naquela noite, o sol esvaneceu-se pela última
vez sobre a beleza deslumbrante da Roma renascentista. Cerca de 20.000 homens,
italianos, espanhóis e alemães, entre os quais os mercenários Landskchnechte,
de fé luterana, estavam se preparando para atacar a Cidade Eterna. Seu
comandante lhes tinha dado licença para saquear. Durante toda a noite o sino
tocou a repique no Capitólio, a fim de convocar os romanos às armas, mas já era
tarde demais para improvisar uma defesa eficaz.
Na madrugada de 6 de maio,
favorecidos por uma névoa espessa, os Landsknechte empreenderam
o assalto aos muros, entre Santo Onofre e Espírito Santo. Os guardas suíços se
reuniram em torno do Obelisco do Vaticano, decididos a permanecer fiel ao seu
juramento até a morte. Os últimos deles se imolaram próximo ao altar da
Basílica de São Pedro. A sua resistência permitiu ao Papa pôr-se em fuga com
alguns cardeais. Através do Passetto del Borgo, via de ligação entre o Vaticano
e o Castel Sant’Angelo, Clemente VII chegou à fortaleza, único baluarte que
restou contra o inimigo. Do alto das arquibancadas, o Papa assistiu à terrível
chacina,que começou com o massacre daqueles que correram para as portas do
castelo para encontrar abrigo, enquanto os pacientes do hospital do Espírito
Santo em Saxia eram trucidados com golpes de lança e espada.
A licença ilimitada para roubar e
matar durou oito dias, e a ocupação da cidade, nove meses. “O
inferno não é nada comparado ao aspecto que Roma tem agora”, lê-se numa
narrativa de 10 de maio de 1527, relatada por Ludwig von Pastor (História
dos Papas, Desclée, Roma, 1942, vol. IV, 2, p. 261). Os religiosos foram as
principais vítimas da fúria dos Landsknechte. Os palácios dos
cardeais foram depredados, as igrejas profanadas, padres e monges mortos ou
escravizados, as freiras estupradas e vendidas nos mercados. Viram-se paródias
obscenas de cerimônias religiosas, cálices de Missa usados para embriagar-se
entre as maldições, hóstias sagradas assadas em panelas e dadas como
alimentação aos animais, túmulos de santos violados, cabeças dos apóstolos,
como a de Santo André, utilizadas para jogar bola nas ruas. Um burro foi
revestido de paramentos eclesiásticos e levado ao altar de uma igreja. O
sacerdote que se recusou a dar-lhe a comunhão foi feito em pedaços. A cidade
foi ultrajada em seus símbolos religiosos e nas suas memórias mais sagradas
(ver também André Chastel, Il Sacco di Roma, Einaudi, Torino 1983;
Umberto Roberto, Roma capta. Il Sacco della città dai Galli ai
Lanzichenecchi, Laterza, Bari 2012).
Clemente VII, da família dos
Medici, não tinha correspondido ao apelo de seu antecessor Adriano VI para uma
reforma radical da Igreja. Martin Lutero espalhava havia dez anos as
suas heresias, mas a Roma dos Papas continuava imersa no relativismo e
no hedonismo. No entanto, nem todos os romanos eram corruptos e efeminados,
como insinua o historiador Gregorovius. Não o eram aqueles nobres, como Julius
Vallati, Giambattista Savelli e Pierpaolo Tebaldi, que levantando um estandarte
com o lema “Pro Fide et Patria”, opuseram a última resistência
heroica na Ponte Sisto, nem tampouco o eram os alunos do Colégio Capranica, que
acorreram e morreram no bairro do Espírito Santo para defender o Papa em perigo.
Àquela hecatombe a instituição eclesiástica romana deve o título de “Almo”.
Clemente VII escapou e governou a Igreja até 1534, enfrentando, depois do cisma
luterano, o anglicano, mas assistir ao saque da cidade sem nada poder fazer,
foi para ele mais duro do que a morte.
Em 17 outubro de 1528, as tropas
imperiais abandonaram uma cidade em ruínas. Um espanhol, testemunha ocular, nos
dá um quadro terrificante da cidade um mês após o Saque: “Em Roma,
capital da cristandade, não se toca nenhum sino, não se abrem as igrejas, não
se reza uma Missa, não há domingo nem dia de festa. As ricas lojas dos
mercadores servem de estábulo aos cavalos, os mais esplêndidos palácios estão
devastados, muitas casas incendiadas, outras quebradas e levadas as portas e as
janelas, as ruas transformadas em esterco. É horrível o cheiro fétido dos
cadáveres: homens e animais têm a mesma sepultura; vi nas igrejas cadáveres
roídos pelos cães. Não sei com que outra coisa comparar isso, exceto com a
destruição de Jerusalém. Agora reconheço a justiça de Deus, que não falha ainda
que venha tarde. Em Roma se cometiam o mais abertamente possível todos os
pecados: sodomia, simonia, idolatria, hipocrisia, engano; para que não possamos
acreditar que isso aconteceu por acaso, mas por julgamento divino” (L.
von Pastor,História dos Papas, cit., p. 278).
O Papa Clemente VII encomendou a
Michelangelo o Juízo Universal na Capela Sistina quase para
imortalizar o drama que a Igreja de Roma sofreu naqueles anos. Todos
compreenderam que se tratava de um castigo do Céu. Não
faltaram avisos premonitórios, como um raio que caiu no Vaticano e
o aparecimento de um eremita, Brandano da Petroio, venerado pelo povo
como “o louco de Cristo”, que na manhã da Quinta-feira Santa de
1527, enquanto Clemente VII abençoava a multidão em São Pedro,
gritou: “Bastardo sodomita, pelos teus pecados Roma será
destruída. Confessa-te e converte-te, porque dentro de 14 dias a ira de Deus se
abaterá sobre ti e sobre a cidade”.
No ano anterior, no final de
agosto, os exércitos cristãos tinham sido derrotados pelos otomanos no campo de
Mohacs. O rei húngaro Luís II Jagiello morreu em batalha e o exército de
Solimão o Magnífico ocupou Buda. A onda islâmica parecia irrefreável na
Europa.
No entanto, a hora do castigo
foi, como sempre, a hora da misericórdia. Os clérigos perceberam quão
estultamente tinham procurado as atrações dos prazeres e do poder. Depois do
terrível Saque, a vida mudou profundamente. A Roma alegre do Renascimento se
transformou na Roma austera e penitente da Contra-Reforma.
Entre os que sofreram no Saque de
Roma estava Gian Matteo Giberti, bispo de Verona, mas que residia então em
Roma. Aprisionado pelos sitiantes, jurou que jamais abandonaria a sua
residência episcopal caso fosse libertado. Ele manteve a sua palavra, voltou a
Verona e dedicou-se com todas as energias à reforma de sua diocese, até sua
morte em 1543. São Carlos Borromeo, que será o modelo dos bispos da Reforma
Católica, se inspirará no seu exemplo.
Em Roma também estavam Carlo Carafa e São Caetano de Thiene, que fundaram em 1524 Ordem dos Teatinos, um instituto religioso ridicularizado por sua posição doutrinária intransigente e pelo abandono à Divina Providência, a ponto de esperar pelas esmolas e nunca pedi-las. Os dois co-fundadores da Ordem foram presos e torturados pelosLandsknechte e escaparam milagrosamente da morte. Quando Carafa se tornou cardeal e presidente do primeiro tribunal da Santa Inquisição romana e universal, queria ter ao seu lado outro santo, o padre dominicano Michele Ghislieri. Os dois homens, Carafa e Ghislieri, com os nomes de Paulo IV e São Pio V [quadro ao lado], serão os dois Papas por excelência da Contra-Reforma católica do século XVI. O Concílio de Trento (1545-1563) e a vitória de Lepanto contra os turcos (1571) demonstraram que, mesmo nas horas mais sombrias da História, com a ajuda de Deus é possível o renascimento. Mas, na origem desse renascimento, esteve o castigo purificador do Saque de Roma.
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Texto traduzido do original italiano por Hélio Dias
Viana.
Em italiano pode ser visto aqui: http://espelhodejustica.blogspot.com.br/2015/12/il-sacco-di-roma-un-castigo.html
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