10/03/2016

A Providência Divina e o dever do momento presente


“Omne quadcumque facietis in verbo aut in opere, omnia in nomine Domini facite” 

Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obras, (fazei) tudo em nome do Senhor” (Cl 3, 17).

Para melhor compreender como devemos viver o dia a dia, com confiança em Deus, com abandono, é preciso estarmos atentos ao dever do momento presente e à graça que nos é oferecida para realiza-la. Falaremos primeiramente do dever que se apresenta a cada minuto, tal como os santos o compreenderam, e esclareceremos depois a conduta destes santos pelo ensinamento da Escritura e da teologia, ensino que se dirige a todos nós.
O DEVER DO MOMENTO PRESENTE TAL COMO OS SANTOS O COMPREENDERAM E A LUZ QUE ELE ENCERRA.
O dever de cada instante, debaixo de aparências muitas vezes insignificantes, é expressão da vontade de Deus a nosso respeito e a respeito de nossa vida individual. A Virgem Maria viveu assim na união divina, realizando no dia a dia a vontade de Deus pelo dever quotidiano de sua vida muito simples que, na aparência, era como a vida de todas as pessoas de sua condição. Assim viveram todos os santos, fazendo a vontade de Deus tal como se manifesta a cada hora, sem se deixar desconcertar por contrariedades imprevistas. O segredo dos santos era o de tornar-se, a cada instante, aquilo que a ação divina queria fazer deles. Viam tudo o que tinham para fazer e para sofrer, todos os seus deveres e todas as suas cruzes na vontade de Deus. Estavam persuadidos de que os acontecimentos do presente são sinais da vontade ou da permissão de Deus, para o bem daqueles que O procuram. A própria visão do mal, exercitando a sua paciência, lhes mostrava, por contraste, o que deviam fazer para evitar o pecado e suas funestas conseqüências. Os santos viam assim na seqüência de acontecimentos, um ensinamento providencial e acreditavam que ao lado e acima da continuidade de fatos exteriores de nossa vida, há como que uma seqüência paralela de graças atuais, que nos são constantemente oferecidas para fazer-nos tirar destes acontecimentos, agradáveis ou penosos, o melhor proveito espiritual. A continuidade dos acontecimentos, se soubermos bem considerá-la, contém lições de coisas de Deus, são como que um prolongamento da revelação ou o Evangelho aplicado, até o fim dos tempos.
Em quase todos os domínios distingue-se o ensinamento teórico e abstrato do ensinamento aplicado e prático; O mesmo acontece na ordem das coisas espirituais. O Senhor aí nos dá, a seu modo, esses dois ensinamentos: um no Evangelho, o outro no curso da vida.
Esta grande verdade vital, é geralmente desprezada. Quando chegam as contrariedades e revezes, somos todos queixas e murmúrios. Tal doença aparece logo quando mais tínhamos o que fazer; tal coisa nos falta; tiram-nos os meios necessários, botam obstáculos intransponíveis ao bem que devíamos realizar, ao apostolado que devíamos exercer.
Os santos em tais circunstâncias, e mesmo em outras bem mais penosas, dizem: Fazer cada dia a vontade de Deus é, no fundo, a única coisa necessária. O Senhor não ordena jamais o impossível, mas há um dever que, a cada momento, ele torna realmente possível para cada um de nós, para cuja realização ele pede nosso amor e nossa generosidade.
Se tal acontecimento doloroso é conseqüência de nossas faltas será uma lição providencial, que devemos receber com humildade para dela tirar proveito. Se, sem falta de nossa parte, o Senhor permite que sejamos privados de certos bens, é porque não são verdadeiramente necessários à nossa santificação e à nossa salvação. Os santos acham que, em certo sentido, nada lhes falta a não ser um maior amor de Deus. Se soubéssemos o que são os acontecimentos que chamamos obstáculos, contrariedades, revezes, contratempos, infortúnios, fracassos, lastimaríamos a desordem que pode existir em tais coisas (e os santos a lastimaram mais do que nós e por causa dela sofreriam mais do que nós) mas nos repreenderíamos a nós mesmos por nossos murmúrios, e seríamos mais atentos ao bem superior que Deus busca em tudo o que ele quer e até em suas permissões divinas1.
A Escritura diz em diversos lugares: O Senhor é quem tira a vida e a dá, leva à habitação dos mortos e trás de volta2.
Quanto mais a ação divina faz morrer para o pecado e suas conseqüências, mais separa de tudo o que não é Deus, mais ela vivifica. Alguém disse que a graça é, às vezes, um carrasco, e no entanto, na obra que perfaz em nós, longe de destruir a natureza naquilo que ela tem de bom, a aperfeiçoa, a restaura e a eleva. Dela pode-se dizer o que se diz de Deus: mortifica e vivifica.
Como diz o Padre de Caussade3, explicando essas vias de Providência: “Quanto mais obscuro é o mistério mais luz contém” pois sua obscuridade vem de uma luz intensa demais para nossos olhos.
Além disso, o que melhor nos ensina é o que acontece conosco em particular a cada momento, segundo o que quis ou permitiu a Providência divina. É aí que encontramos a manifestação da vontade divina que nos diz respeito, para o momento presente. E é aí que se forma em nós o conhecimento experimental da conduta de Deus em relação a nós, conhecimento sem o qual não saberemos nos dirigir nas coisas espirituais, nem fazer aos outros um bem profundo4.
Na ordem das coisas espirituais, sobretudo, só sabemos bem aquilo que a experiência nos ensina pelo sofrimento ou pela ação. Nosso Senhor, que tinha sua santa alma, desde o primeiro instante de sua vinda a este mundo, a visão beatífica e a ciência infusa, quis ter também o conhecimento experimental que se adquire no dia a dia, e que faz ver as coisas, mesmo as infalivelmente previstas, sob um aspecto especial, dado pelo contato com o real. Prevemos que um amigo querido, muito doente, vai morrer, mas sua morte contém, se soubermos abrir os olhos, um ensinamento novo para nós, pelo qual Deus nos fala de algum modo à medida que o tempo passa. Esta é a escola do Espírito Santo, estas são suas lições de coisas, que nada tem de livrescas; e elas variam para cada alma; o que é útil para esta não o será para outra. Sem querer ver, supersticiosamente, um sentido lógico em puras coincidências sem importância, escutemos com simplicidade o que a Providência nos diz em particular, nas lições de coisas que nos dá. É preciso não materializar ou mecanizar esta doutrina; trata-se de um espírito sobrenatural a ser levado em conta na consideração de todas as coisas, sem constrangimento, sem tola presunção.
Como diz o autor que acabamos de citar: “A revelação do momento presente é uma fonte de santidade, sempre a jorrar... Vós que tendes sede, sabei que não é preciso buscar longe a fonte da água viva: ela jorra perto de vós, no momento presente, apressai-vos a chegar lá.
Porque tendo a fonte tão próxima, vos fatigais a correr atrás dos riachos?... O amor desconhecido! Parece que vossas maravilhas se acabaram e que só se pode copiar vossas obras antigas, citar vossos discursos passados. Não se percebe que vossa ação inesgotável, é uma fonte infinita de novos pensamentos, de novos sofrimentos, de novas ações... de novos santos...” O Coração de Jesus é uma “fornalha de graças sempre novas”.
Os santos de cada época não têm necessidade de copiar a vida nem os escritos daqueles que os precederam, mas sim de viver em perpétuo abandono aos segredos e inspirações de Deus; nisto é que imitam todos os que os antecederam, apesar da diversidade das circunstâncias de cada época e de cada vida individual.
O momento presente, se soubéssemos ver nele a luz divina que contém, nos lembraria de que tudo pode ser meio, instrumento ou ao menos ocasião de progresso espiritual no amor de Deus a modo de provação ou de contraste. O momento presente, segundo a ordem querida pela Providência divina, tem relação com nosso fim último, com o único necessário: assim, cada instante do tempo que se escoa tem relação com o instante único da imobilidade eterna.
Se soubéssemos ver, não seria apenas a hora da missa, a hora da oração ou da visita ao Santíssimo Sacramento que seria santificadora para nós, mas todas as horas do dia ganhariam seu sentido sobrenatural e nos lembrariam que estamos a caminho da eternidade. Daí a boa prática de abençoar a hora que começa, ou pedir para ela a benção divina. Devemos estar, a cada instante, na situação disposta por Deus: não há momento do dia em que não tenhamos algum dever a cumprir, dever em relação a Deus ou em relação ao próximo, dever ao menos de paciência, quando a ação exterior não é possível. A cada minuto devemos santificar o nome de Deus, como se não tivéssemos outra coisa a esperar no tempo; como se, no instante seguinte, devêssemos entrar na eternidade.
Assim viveram os verdadeiros cristãos entre aqueles que, durante a última guerra, estavam expostos aos tiros de artilharia, que recomeçava a intervalos de três minutos; “Em um instante pode ser a morte” diziam, e viviam o minuto presente em sua relação com a eternidade.
Assim viveram os santos. Não apenas nas circunstâncias excepcionais mas no curso normal de suas vidas, não perdiam, por assim dizer, a presença de Deus. Ora, sua conduta se torna compreensível em razão dos princípios do Evangelho, que se dirigem tanto a eles como a nós.
O ENSINAMENTO DAS ESCRITURAS E DA TEOLOGIA SOBRE O DEVER DO MOMENTO PRESENTE.
São Paulo escreveu na I Epístola aos Coríntios, X, 31: “Ou comais ou bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus”. — Também em Colossenses, III, 17: “Tudo o que fizerdes, em palavras ou por obras, (fazei) tudo em nome do Senhor Jesus Cristo, dando por ele graças a Deus Pai”.
Nosso Senhor disse, como conta São Mateus, XII, 34: “A boca fala da abundância do coração. O homem bom tira boas coisas do bom tesouro do seu coração; e o mau tira coisas más do mau tesouro. Ora, eu digo-vos que, de qualquer palavra ociosa que disseram, os homens darão conta no dia do Juízo”.
Santo Tomás mostra todo o sentido e o alcance desta doutrina quando ensina (Ia IIae, q. 18, a. 9) que não há ato deliberado que, concretamente considerado, “hic e nunc”, seja moralmente indiferente; cada um de nossos atos deliberados é ou bom ou mau. Por quê? Porque todo ato deliberado de um ser inteligente deve ser racional ou ordenado a um fim bom, bom em si mesmo; e todo ato deliberado de um cristão deve ser ordenado, ao menos virtualmente, a Deus. Se for assim, será um ato bom; se não for assim, será um ato mau. Não há meio termo. Mesmo nossas recreações, nossos divertimentos, nossos passeios devem ter um fim bom em si. É verdade que ir passear, considerado abstratamente, é indiferente. Também pode ser indiferente ir passear aqui ou ali, mas o passeio deve ter um fim racional, como por exemplo, o de reparar nossas forças, para retomarmos depois o trabalho que devemos realizar. Por isso mesmo, os divertimentos têm um sentido moral e um valor próprio na vida do ser racional.
Como diria de modo simbólico um bom pregador, todos os nossos atos deliberados são como as gotas de chuva que caem do alto da montanha, na linha divisória das águas; destas gotas de chuva, algumas irão para um rio e um oceano; as outras, para outro rio e outro mar, oposto e distante. Assim também nossos atos vão para o bem, isto é para Deus ou para o mal. Nenhum desses atos, tomados na realidade concreta da vida, é indiferente.
À primeira vista, esta doutrina parece muito rígida. Mas não é: basta uma intenção virtual ou implícita, renovada pela manhã no momento da oração, e também cada vez que o Espírito Santo nos faz elevar nossos corações para Deus.
Esta é, muito pelo contrário, uma doutrina consoladora, pois, segue-se daí, que na vida do justo, todo ato deliberado é bom e meritório, seja fácil ou difícil, pequeno ou grande.
Esta doutrina é também santificante se a entendermos bem e a vivemos, pois nos leva a pensar que o que Deus faz a cada momento é bem feito e cada acontecimento é um sinal de sua vontade. Assim Jó, privado de tudo, via nessa privação uma vontade de Deus que o provava para o santificar e em vez de maldizer aquele minuto tão penoso, bendizia o nome do Senhor. Aprendamos pois a reconhecer, no que acontece a cada momento, seja uma vontade positiva de Deus, seja uma permissão divina, sempre ordenada a um bem superior. Assim, aconteça o que acontecer, sempre guardaremos a paz.
São Francisco de Sales resumiu toda esta doutrina nestas poucas palavras: “Cada momento que chega até nós encerra em si uma ordem de Deus, e irá mergulhar na eternidade, permanecendo para sempre aquilo que dele fizemos”.
Este reconhecimento quase constante da vontade divina, discernida do dever do momento presente, decorre sobretudo do dom da Sabedoria que faz ver em Deus, causa primeira e fim último, todos os acontecimentos, tanto os penosos quanto os agradáveis. É por isto que Santo Agostinho diz que a esse dom corresponde a bem-aventurança dos pacíficos, quer dizer, daqueles que conservam a paz onde os outros se perturbam e que muitas vezes levam a paz aos mais perturbados: “Beati pacifici, quia filii Dei vocabuntur”.
  
  (extr. de "La Providence et la Confiance en Dieu", ed. Desclée, Paris, 1932. Permanência, Set-out. de 79. Trad.: Júlio Fleichman) 

  1. 1. Como se lê no Livro II dos Reis, 16, 6: “Semei, parente de Saul, ultraja o profeta David, jogando-lhe pedras e o maldizendo. Um oficial de David quer matar o insultante. David responde: “Deixe-o amaldiçoar! Pois se o senhor lhe disse: Amaldiçoa David quem lhe dirá: por que ages assim?... Deixe-o maldizer... talvez o Senhor olhe para minha aflição e me dê bens pelas maldições desse dia”. Esta palavra faz pensar naquela de Nosso Senhor quando, durante a Paixão, recomendando calma a Pedro, se deixa prender pelos homens armados conduzidos por Judas e cura o soldado Malco que Pedro tinha ferido com sua espada. Quantos fatos semelhantes a estes, na vida dos santos se realizaram, quando ocasiões imprevistas se apresentaram.
  2. 2. Dt 32, 39; 1 RS 2, 6; Tb 13, 2; Sb 16, 13.
  3. 3. O Abandono à Providência, ed. abreviada, 1. II, cap. VII.
  4. 4. Assim se explica o bem sobrenatural feito às almas por santos como o Cura d’Ars, que sem grande cultura teologal, tinha o sentido da conduta de Deus em relação às almas mais diversas. Era assim que o santo Cura dava no mesmo dia, sem tempo para refletir, a centenas de pessoas, o conselho certo, imediatamente aplicável, que lhes era necessário.

Um comentário:

  1. Que faria Garrigou Lagrange se tivesse algum dia sonhado que um ateu libertino galhofeiro e totalmente imerso na CARNE DO MUNDO,usurparia algum dia a Cátedra de São Pedro?
    Alberto Carlos Rosa Ferreira das Neves Cabral -Lisboa

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