23/08/2016

A Conferência entre Lutero e o Diabo


“Assim era sua fé, tu não tinhas outra quando recebeste a unção do bispo; e, todos aqueles que dão a unção, como aqueles que a recebem, pensam assim, e não de outro modo, sobre Jesus Cristo”.

* * *
Publicamos aqui a tradução francesa da conferência entre Lutero e o diabo, tal como foi publicada, em 1875, por Isidore Lisieux (Paris), publicado na revista "Sei de la Terre", n°4.

Trata-se de uma reedição da obra publicada, no final do século XVII, pelo padre de Cordemoy (Paris, 1681, 1684, 1701, in - 12) e reimpressa por Lenglet-Dufresnoy, em 1715, no seu “Recueil de Dissertations sur les Apparitions, les Visions et les Songes”. (Paris, 4 vol. in - 12). Esta última edição foi acompanhada de notas de Lenglet-Dufresnoy e comentários do padre de Cordemoy que confirmaram a veracidade deste relato e responderam à argumentação que os luteranos tentaram opor a fim de refutar o texto. Pareceu-nos que nesta época de ecumenismo e “Missa Nova”, extensamente inspirada nas idéias de Lutero,esta peça deva ser juntada ao respectivo dossiê.

A Conferência entre Lutero e o Diabo

Narrada pelo próprio Lutero, no seu livro “Da missa privada e da piedade dos padres.

Aconteceu-me certa vez, acordar-me em sobressalto no meio da noite: Satanás ali estava e, sem perder tempo, abriu uma discussão.

“Escute-me Lutero, doutor sapientíssimo, disse-me ele. Tu sabes que, durante quinze anos, celebraste missas privadas; que dirias, se soubesses que essas missas privadas eram uma horrível idolatria? Que dirias, se o corpo e o sangue de Cristo não estivessem ali presentes, e, que, não tivesses adorado, e feito adorar, nada mais do que pão e vinho?”

Eu lhe respondi “Fui ordenado padre, recebi a unção e a consagração das mãos do bispo, e fiz tudo isso em obediência às ordens dos meus superiores. Por que não teria consagrado, posto que pronunciei seriamente as palavras de Cristo, e, tenho celebrado essas missas com grande seriedade? Tu bem o sabes”.

“Tudo isso é verdade, disse-me, porém os turcos, e os pagãos, também fazem essas coisas nos seus templos, por obediência; eles realizam com muita seriedade suas cerimônias. Os padres de Jereboão também fizeram todas as coisas com um grande zelo e conscienciosamente, ao contrário dos verdadeiros padres de Jerusalém. Que dirias, se tua ordenação e consagração fossem tão falsas quanto as dos padres turcos e samaritanos, por ser seu culto falso e ímpio?”

“Primeiramente, deves saber – prossegue - que não tinhas, então, nem conhecimento de Cristo, nem fé verdadeira, e, naquilo que se refere à fé, não valias mais que um turco. Porque o turco, e até mesmo todos os diabos, crêem em aquilo que se conta sobre Cristo: que ele nasceu, foi crucificado, morreu, etc. Mas, nem o turco, nem nós outros espíritos reprovados, temos confiança na sua misericórdia, não o reconhecemos como nosso Mediador ou Salvador; ao contrário, temos horror dele, como de um juiz cruel”.

“Assim era sua fé, tu não tinhas outra quando recebeste a unção do bispo; e, todos aqueles que dão a unção, como aqueles que a recebem, pensam assim, e não de outro modo, sobre Jesus Cristo”.

“É porque, vos afastando de Cristo, como de um juiz cruel, tendes recorrido à Virgem Maria e aos Santos; estes eram vossos mediadores entre Cristo e vós. Eis como arrancaram a glória de Jesus Cristo. É isto que nem tu, nem qualquer outro papista poderá negar. Então, vós fostesungidos, consagrados e tonsurados, e sacrificastes na missa como pagãos, e não como cristãos. Como. portanto, pudestes consagrar numa tal missa, ou celebrar verdadeiramente a missa? Não havia ali nenhuma pessoa com poder consecratório, e isto não é, segundo vossa própria doutrina, um vício essencial?”

“Em segundo lugar, foste ordenado padre, e abusaste da missa contra sua instituição, contra o pensamento e o desejo do Cristo que a instituiu. Porque Cristo quis que o sacramento fosse distribuído entre os fiéis que comungam, e, que ele fosse dado à Igreja para ser comido e bebido. O verdadeiro padre, de fato, é constituído ministro da Igreja para pregar o verbo e conferir sacramentos, como disseram Cristo na ceia, e, São Paulo, na sua primeira Epístola aos coríntios (cap. II), onde trata da ceia do senhor. Vem daí que os antigos a chamaram comunhão, porque, de acordo com a instituição de Cristo, não é somente o padre que deve usar o sacramento, mas todos os outros cristãos seus irmãos, com ele. E tu, durante quinze longos anos, sempre, ao dizer a missa,guardaste o sacramento para ti somente, não o comunicaste aos outros. Ainda mais, era-te proibido dá-lo completo. Que sacerdócio havia então? Que missa e qual consagração? Que tipo de padre és, que não foste ordenado pela Igreja, mas por ti mesmo? Eis, na verdade, uma unção da qual Cristo nada sabe, e que ele não reconhece”.

“Em terceiro lugar, o pensamento e o desejo de Cristo, suas palavras os indicam suficientemente, são no sentido de que se fazendo uso do sacramento, anunciamos sua morte. “Fazei isto”, disse, em memória de mim, e, como acrescenta São Paulo, até que ele venha. E tu, dizedor de missas privadas, em todas as tuas missas, tu não pregaste ou confessaste, uma só vez, o Cristo; reservaste só para ti o sacramento, e, as palavras da ceia, as resmungaste só para ti, entre dentes, como se as assobiasse. Foi isto que Cristo instituiu? Seriam estes os atos que fariam ver em ti o padre de Cristo? E isto se comportar como um padre cristão e piedoso?

Foi para isto que foste ordenado?”

“Em quarto lugar, está claro que o pensamento e o desejo, a instituição, de Cristo, consistem na participação dos demais cristãos no sacramento. Mas tu, tu recebeste a unção, não para distribuir o sacramento, mas para sacrificar, e, contra a instituição de Cristo, fizeste da missa um sacrifício. É isto mesmo, aliás, o que significam, claramente, as palavras do ordenador, visto que, segundo o rito tradicional, quando ele põe o cálice entre as mãos do novo padre, declara: “Recebe, diz ele, o poder de consagrar e sacrificar para os vivos e mortos'. Que perversidade, ó infelicidade! Quanta infâmia nessa unção, nessa ordenação! Eis uma carne, eis uma bebida que Cristo instituiu para toda a Igreja, para todos aqueles que o comungam com o padre, e tu realizas, tu, um sacrifício propiciatório diante de Deus? Ó abominação que ultrapassa todas asabominações!”

“Em quinto lugar, o pensamento e o desejo de Cristo, já o dissemos, são que o sacramento seja distribuído na Igreja, e aos comungantes, para levantar e reforçar sua fé contra as diversas tentações do pecado, do diabo, etc, e, também, para renovar e pregar os benefícios de Cristo. Mas tu o consideraste como uma coisa muito pessoal, que poderias fazer sem os outros, ou comunicar-lhes tua fantasia, seja gratuitamente, seja por dinheiro. Eu te pergunto, o que podes negar de tudo isto? Assim, aí está o padre que foste, sem Cristo, não a fim de conferir o sacramento aos outros, mas a fim de sacrificar para os vivos e para os mortos! Não, tu não pregaste o Cristo na tua missa, não fizeste, em suma, aquilo que Cristo instituiu. Ora! Não vês que foste ungido e ordenado pelo bispo contra Cristo, não te é evidente que tua unção e tua ordenação são ímpias, falsas e anticristãs? Eu sustento, pois, que tu, simplesmente, ofereceu, adorou, e fez adorar pelos outros, pão e vinho.

“Vês agora que, na tua missa falta, primeiro que tudo, uma pessoa que tenha poder de consagrar, isto é, um homem cristão. Em segundo lugar, que falta uma pessoa para quem se consagre e a quem se deva conferir o sacramento, isto é, a Igreja, o resto dos fiéis e o povo. Porém, tu, ímpio, tu, ignorante do Cristo, estás lá de pé, sozinho, e imaginas que é por ti que o Cristo instituiu o sacramento e que te basta dizer uma palavra na missa para produzir, incontinente, o corpo e o sangue do Senhor; quando em lugar de seres um membro de Cristo, és seu inimigo. Em terceiro lugar, falta nela o espírito, a intenção, o fruto e a prática do sacramento, todas as coisas em vista das quais Cristo a instituiu. Porque Cristo instituiu o sacramento em proveito da Igreja para ser comido e bebido, para fortalecer a fé dos fiéis, para pregar e exaltar, na missa, os benefícios de Cristo. Agora, dá tua missa para ti. ninguém, no resto da Igreja, nada conhece; tu não dizes nada, não dás nada a ninguém]; sozinho no teu canto, silencioso e mudo, tu comes só, bebes só, ignorante da palavra de Cristo, incrédulo, indigno, não fazes comungar ninguém contigo, e, segundo o costume que vos é caro, a vendes por dinheiro, como se fosse um bom trabalho.

“Portanto, se não és a pessoa que pode e deve consagrar; se, do mesmo modo, não há ninguém em tua missa, para receber o sacramento; se, ainda mais, confundes, destróis ou desnaturas completamente a instituição de Cristo, o que são, então, a tua unção, tua missa e tua consagração, senão blasfêmias e tentações a Deus? Donde se deduz que não és padre de verdade, nem o pão é verdadeiramente o corpo de Cristo”.

“Farei uma comparação: suponhamos que se administre lá onde não haja ninguém parabatizar; que um bispo, por exemplo (segundo o costume ridículo que ocorre entre os papistas), ache por bem batizar um sino ou uma campainha, isto é, coisas que não podem e nem devem serbatizadas: dize-me, te peço, seria isso um batismo verdadeiro? Forçosamente hás de convir que não. Porque, quem poderia batizar aquele que não existe, ou quando não existe alguma pessoa apta a ser batizada? Que espécie de batismo seria se, vertendo a água, eu pronunciasse aos ares estas palavras: Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo? Quem, pois, neste caso, receberia a remissão dos pecados, ou o Espírito Santo? O ar ou o sino? Não há, pois, batismo, é evidente, ainda que as palavras do batismo sejam pronunciadas, ou a água seja vertida, porque faltou uma pessoa que pudesse receber o batismo. Pois bem, que dirias se na missa ocorresse o mesmo, se pronunciasses palavras, crendo receber o sacramento, e que, no entanto, não recebesses senão pão e vinho? Porque, a pessoa que deve receber, a Igreja, está ausente; e tu, ímpio, tu, incrédulo, não és mais capaz de receber o sacramento quanto o sino o é de receber o batismo;enfim, tu não és nada quanto ao sacramento".

“Dirás, provavelmente: é verdade, não confiro o sacramento aos outros membros da Igreja, mas eu próprio o tomo, eu mesmo me confiro. E há muitos entre os outros que, quão incrédulos que sejam, recebem o sacramento ou o batismo; e, no entanto, é um verdadeiro batismo, um verdadeiro sacramento que eles recebem. Por que, então, não haveria na minha missa um verdadeiro sacramento? Mas, isto não é a mesma coisa: no batismo, de fato (mesmo quando é conferido em caso de urgência), há, pelo menos duas pessoas: a que batiza e a que deve serbatizada, e, freqüentemente, muitos outros membros da Igreja. E a função daquela que batiza é tal que ela comunica algo às outras pessoas da Igreja, em vez de tomá-la por ela somente, em detrimento das demais, como tu fazes, tu, na tua missa. Enfim, todos os acessórios da obra principal estão aqui, segundo a ordem e a regra da instituição de Cristo; tua missa, ao contrário, é oposta à instituição de Cristo"

“Em segundo lugar, por que não ensinais que se pode batizar a si mesmo? Por que condenais um batismo dessa espécie? Por que rejeitais a confirmação que, segundo vossos ritos, não se daria a si mesmo? Por que a ordenação não valeria nada, se qualquer um se ordenasse padre ele próprio? Por que não haveria absolvição, se se absolvesse a si mesmo? Por que não haveria unção, se um doente terminal se desse a si mesmo, de acordo com as formas utilizadas por vós? Por que não haveria matrimônio, se alguém se desposasse a si mesmo, ou quisesse forçar uma moça, e pretendesse que isso seria um casamento, apesar da moça? Porque, eis aí, com a eucaristia estão os vossos sete sacramentos. Ora, se ninguém pode produzir nenhum dos vossos sacramentos, nem usá-los para si mesmo, como explicas que queiras fazer por si só esse sacramento supremo, a eucaristia?”

“É verdade, sem dúvida, que o Cristo se encontra, ele próprio, no sacramento, e, que, qualquer ministro que seja, ao conferi-lo aos outros, se toma por ele. Mas, não o consagra por ele só: toma-o em comunhão com os assistentes e com a Igreja, e tudo se passa conforme o verbo de Deus, segundo a ordem e o mandamento de Cristo. Quando falo de consagração, é para perguntar se um padre pode consagrar e realizar o sacramento por si só, porque sei muito bem que, uma vez a consagração feita, ele pode usá-la com os demais: é uma comunhão, e a mesa do Senhor está aberta a todos. Do mesmo modo, quando perguntei se se poderia dar a unção e chamar-se a si mesmo, eu sabia, de resto, que uma vez ungido e chamado, poderia, em seguida, usar da sua vocação. Do mesmo modo, falando de alguém que violasse uma moça, perguntei se bastava ao ímpio chamar de casamento essa conjunção; mas, sei muito bem que se a moça consentir antes em casar-se, a conjunção que se seguir é um casamento”.

Nessa angústia, nesse debate contra o diabo, eu queria resistir ao inimigo com as armas que me eram familiares sob o papado; eu lhe objetei com a intenção e a fé da Igreja, fé e intenção às quais eu me tinha conformado, celebrando missas privadas. Admitindo, disse, que eu estivesse enganado na minha fé, e no meu pensamento, assim ele estaria certo de que a fé da Igreja, o pensamento da Igreja têm sido o que deveriam ser.

Porém, Satanás, com mais força e veemência:

“Ah, é isto, disse-me, faça-me, então, ver onde está escrito que um ímpio, um incrédulo, pudesse oficiar no altar de Cristo e consagrar, realizar o sacramento na fé da Igreja? Onde foi que Deus prescreveu ou ordenou isso? Como provarás que a Igreja te comunica sua intenção para que digas tua missa privada? E se, agora, não possuis o verbo de Deus, se tua doutrina toda não passa de mentira. Que impudência a vossa! Fizestes tudo isto nas trevas, abusastes do nome da Igreja; e, depois, quereis defender todas essas abominações pretextando a intenção da Igreja: a Igreja não crê nada, não pensa nada fora do verbo e da instituição de Cristo, com muito mais razão ainda contra seu espírito e sua instituição; é o que tenho dito, e São Paulo disse antes de mim, na sua primeira Epístola aos Coríntios (cap. II), comovendo a Igreja e a assembléia dos fiéis: “Nós possuímos o espírito de Cristo”.

“Ora, de quem aprenderás que tal ou qual coisa é segundo o espírito e a intenção de Cristo e da Igreja, senão do verbo de Jesus Cristo, da doutrina e da confissão da Igreja? Como sabes que, segundo a intenção, e o espírito da Igreja, o homicídio, o adultério, a incredulidade, são pecados mortais, como sabes isto e outras coisas do mesmo gênero, senão pelo verbo de Deus?”

“Agora, se para conhecer a intenção da Igreja, a respeito das boas ou das más ações, é preciso referir-se ao verbo e ao mandamento de Deus, quanto maior não será a necessidade de perguntar ao verbo de Deus o que ele pensa da doutrina! Por que, então, tua missa privada, ó blasfemador! Contrarias as ordens e as palavras precisas de Cristo? Por que buscar, em seguida, cobrir tua mentira, tua impiedade, com o nome e a intenção da Igreja? É com essas miseráveis cores que enfeitas tuas ficções, como se a intenção da Igreja pudessem ser contrárias às palavras precisas e à instituição de Cristo? Donde te vem essa prodigiosa audácia de profanar o nome da Igreja com uma mentira tão impudente?”

“Em suma, és dizedor de missas, e tu não fostes consagrado assim, pelo bispo, senão para agir na missa privada contra as palavras precisas e a instituição de Cristo, contra o espírito, a fé e a confissão da Igreja: então, tua unção é tudo o que existe de mais profano; nada tem de santa nem de sagrada. Além do mais, ela é mais vã, mais inútil, e também mais ridícula do que seria obatismo de uma pedra, de um sino, etc.”.

E, para terminar, acrescentou Satanás:

“Fica provado que tu não consagraste, mas somente ofereceste pão e vinho, como os pagãos; e, que, num tráfico infame, insultante para a divindade, vendeste tua obra aos cristãos, não servindo, assim, nem Deus, nem Cristo, mas teu ventre”.

“Qual é, pois, essa abominação, inaudita no Céu e na terra?”
Este é, mais ou menos, o resumo dessa discussão.

Diálogo Ecumênico
entre Martinho Lutero,
Doutor do Pecado Triunfante,
e Satanás,
Príncipe das Trevas
e Pai da Mentira

Texto editado originalmente pela
Revista Sel de La Terre
Avrillé/França

Tradução: Euro Barbosa de Barros

Ia. Edição - Novembro 2005 - 3000 exemplares

Editor: Francisco Almeida Araújo


Obs: O título para este livro foi dado pelo editor.

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