31/08/2012

CÂNON DE MURATORI


O Cânon de Muratori é o documento mais antigo que se tem a respeito do cânon bíblico do Novo Testamento, por ter sido escrito por volta do ano 150, uma vez que cita o nome de Pio, bispo de Roma de 143 à 155, irmão de Hermas, autor de "O Pastor".

Tal documento trata-se de um manuscrito do séc. VIII, cópia do original, descoberto pelo sacerdote italiano Ludovico Antonio Muratori no séc. XVIII.
O manuscrito encontra-se mutilado no início e no fim, mas permite distingüir quatro espécies de livros:
1. Os que são lidos publicamente na Igreja.
2. Os que algumas pessoas querem que sejam lidos publicamente na Igreja.
3. Os que são lidos particularmente.
4. Os que devem ser desprezados
.

...aos quais esteve presente e assim o fez1.
O terceiro livro do Evangelho é o de Lucas. Este Lucas - médico que depois da ascensão de Cristo foi levado por Paulo em suas viagens - escreveu sob seu nome as coisas que ouviu, uma vez que não chegou a conhecer o Senhor pessoalmente, e assim, a medida que tomava conhecimento, começou sua narrativa a partir do nascimento de João.
O quarto Evangelho e o de João, um dos discípulos. Questionado por seus condiscípulos e bispos, disse: "Andai comigo durante três dias a partir de hoje e que cada um de nós conte aos demais aquilo que lhe for revelado". Naquela mesma noite foi revelado a André, um dos apóstolos, que, de conformidade com todos, João escrevera em seu nome.
Assim, ainda que pareça que ensinem coisas distintas nestes distintos Evangelhos, a fé dos fiéis não difere, já que o mesmo Espírito inspira para que todos se contentem sobre o nascimento, paixão e ressurreição [de Cristo], assim como sua permanência com os discípulos e sobre suas duas vindas - depreciada e humilde na primeira (que já ocorreu) e gloriosa, com magnífico poder, na segunda (que ainda ocorrerá). Portanto, o que há de estranho que João frequentemente afirme cada coisa em suas epístolas dizendo: "O que vimos com nossos olhos e ouvimos com nossos ouvidos e nossas mãos tocaram, isto o escrevemos"? Com isso, professa ser testemunha, não apenas do que viu e ouviu, mas também escritor de todas as maravilhas do Senhor.
Os Atos foram escritos em um só livro. Lucas narra ao bom Teófilo aquilo que se sucedeu em sua presença, ainda que fale bem por alto2 da paixão de Pedro e da viagem que Paulo realizou de Roma até a Espanha.
Quanto às epístolas de Paulo, por causa do lugar ou pela ocasião em que foram escritas elas mesmas o dizem àqueles que querem entender: em primeiro lugar, a dos Coríntios, proibindo a heresia do cisma; depois, a dos Gálatas, que trata da circuncisão; aos Romanos escreveu mais extensamente, demonstrando que as Escrituras têm como princípio o próprio Cristo.
Não precisamos discutir sobre cada uma delas, já que o mesmo bem-aventurado apóstolo Paulo escreveu somente a sete igrejas, como fizera o seu predecessor João, nesta ordem: a primeira, aos Coríntios; a segunda, aos Efésios; a terceira, aos Filipenses; a quarta, aos Colossenses; a quinta, aos Gálatas; a sexta, aos Tessalonicenses; e a sétima, aos Romanos. E, ainda que escreva duas vezes aos Coríntios e aos Tessalonicenses, para sua correção, reconhece-se que existe apenas uma Igreja difundida por toda a terra, pois da mesma forma João, no Apocalipse, ainda que escreva a sete igrejas, está falando para todas.
Além disso, são tidas como sagradas uma [epístola] a Filemon, uma a Tito e duas a Timóteo; ainda que sejam filhas de um afeto e amor pessoal, servem à honra da Igreja católica e à ordenação da disciplina eclesiástica.
Correm também uma carta aos Laodicenses e outra aos Alexandrinos, atribuídas [falsamente] a Paulo, mas que servem para favorecer a heresia de Marcião, e muitos outros escritos que não podem ser recebidos pela Igreja católica porque não convém misturar o fel com o mel.
Entre os escritos católicos, se contam uma epístola de Judas e duas do referido João, além da Sabedoria escrita por amigos de Salomão em honra do mesmo.
Quanto aos apocalipses, recebemos dois: o de João e o de Pedro; mas, quanto a este último, alguns dos nossos não querem que seja lido na Igreja.
Recentemente, em nossos dias, Hermas escreveu em Roma "O Pastor", sendo que o seu irmão, Pio, ocupa a cátedra de bispo da Igreja de Roma. É, então, conveniente que seja lido, ainda que não publicamente ao povo da Igreja, nem aos Profetas - cujo número já está completo -, nem aos Apóstolos - por ter terminado o seu tempo.
De Arsênio, Valentino e Melcíades não recebemos absolutamente nada; estes também escreveram um novo livro de Salmos para Marcião, juntamente com Basíledes da Ásia...


1Certamente, estas palavras finais se referem ao evangelho de Marcos, que não foi testemunha ocular dos acontecimentos, mas que conhecia muito bem os sermões de Pedro por ter sido seu discípulo.
2Ao usar a expressão "por alto" o autor deste escrito está querendo afirmar que Lucas omitiu esses atos por não os ter presenciado ou por não terem ainda ocorrido durante a redação dos Atos dos Apóstolos. No entanto, reconhece tais atos como fidedignos.

 

FONTE: http://agnusdei.50webs.com

O PASTOR DE HERMAS - I PARTE

O PASTOR DE HERMAS

O PASTOR - I PARTE

O PASTOR
Autor: Hermas
Tradução: Ivo Storniolo/Euclides M. Balancim
Fonte: Site “Ictis”

Esta obra foi escrita em meados do segundo século por Hermas, entre 142 e 155 d.C.

Foi um dos escritos mais considerados da antiguidade cristã; por muito tempo, tida como inspirada, inclusive alguns a colocavam no Cânon do NT. As frequentes referências que se encontram dela em várias obras do período patrístico, demonstram a alta estima em que era tida. A obra era muito usada no cristianismo primitivo para instruir aqueles que acabavam de entrar na Igreja e queriam ser instruídos na piedade, como podemos comprovar no início do século IV no testemunho de Eusébio (HE, III,3:6).

Após larga difusão, especialmente, no Oriente, nas Igrejas gregas, inspirado para uns, apenas útil para todos e até mesmo recusado por outros, o Pastor foi, definitivamente, colocado entre os apócrifos após o Concílio Ecumênico de Hipona em 393, onde a Igreja definiu o catálogo bíblico.

Trata-se de uma obra longa, com 114 capítulos dispostos em 3 partes: 5 visões, 12 mandamentos e 10 Parábolas.

A preocupação central de Hermas não é doutrinário-dogmática, mas moral. Seu argumento principal é a necessidade de penitência indo ao encontro da misericórida divina. O leitor notará que o conceito de penitência, isto é, meios de santificação do homem, corresponde aos Sacramentos da Igreja. A Eclesiologia em Hermas, domina a idéia de que a Igreja é uma instituição necessária para a salvação. Quanto a Cristo, Hermas não emprega nenhuma vez, ao longo de sua obra, os termos Jesus Cristo, ou Logos. Chama-o de Salvador, Filho de Deus e Senhor. A Cristologia de Hermas suscitou dificuldades, pois segundo sua obra, há duas pessoas em Deus: Deus Pai e Deus-Espírito-Filho.


O PASTOR DE HERMAS

VISÕES

PRIMEIRA VISÃO
CAPÍTULO 1
Meu senhor me havia levado a Roma para me vender a uma certa Rosa. Vários anos depois, a revi e comecei a amá-la como irmã. Algum tempo depois, eu a vi tomando banho no Tibre, lhe estendi a mão e ajudei a sair do rio. Olhando sua beleza, pensava comigo mesmo: Eu seria muito feliz se tivesse mulher com essa beleza e caráter. Era a única coisa que eu pensava, sem ir além disso. Passado algum tempo, dirigindo-me para Cumas, refletia como são grandes, marcantes e poderosas as obras de Deus. Durante a viagem dormi. Então o espírito me arrebatou e me conduziu através de um caminho impraticável, por onde ninguém podia andar. O lugar era escarpado, todo cortado por águas. Atravessei o rio que aí havia e, chegando à planície, me ajoelhei e comecei a rezar a Deus, confessando-lhe meus pecados. Durante minha oração, o céu se abriu e vi aquela mulher que havia desejado. Do céu, ela me saudou: Bom dia, Hermas. Olhei para ela e falei: Senhora, que fazes aí? Ela me respondeu: Fui transportada para denunciar ao Senhor os teus pecados . Eu disse: Então, agora és a minha acusadora? Ela respondeu: Não! Ouve as palavras que te vou dizer: Deus, que habita nos céus, que do nada criou os seres, que os multiplicou e os fez crescer em vista da sua santa Igreja, está irritado contigo, porque cometeste falta contra mim . Então eu lhe respondi nestes termos: Cometi falta contra ti? Em que lugar e quando, alguma vez te dirigi palavra desonrosa? Por acaso, não te considerei sempre como deusa? Por acaso, não te tratei sempre como irmã? Mulher, por que me acusas falsamente de maldade e impureza? Sorrindo, ela me disse: O desejo da maldade entrou no teu coração. Não te parece que, para um homem justo, é prejudicial ter no coração o desejo da maldade? É falta, e grande, porque o homem justo tem pensamentos justos. E mediante esses pensamentos justos que ele aumenta sua glória nos céus e faz que o Senhor lhe seja indulgente para com todos os seus atos. Aqueles, porém, que são maus no coração, só atraem para si morte, e prisão, sobretudo aqueles que passam esta vida se vangloriando de suas riquezas e não se interessam pelos bens futuros. As almas deles se arrependerão, daqueles que, não tendo esperança, se desesperaram de si mesmos e da própria vida. Quanto a ti, reza a Deus. Ele curará teus pecados e os pecados de toda a tua família e de todos os santos.


CAPÍTULO 2
Quando ela terminou de dizer essas palavras, os céus se fecharam e eu fiquei tremendo e triste. Dizia a mim mesmo: Se o pecado está escrito contra mim, como poderei alcançar a salvação? Como aplacarei a Deus pelos meus pecados realmente cometidos? Com que palavras pedirei ao Senhor que me seja favorável? Essas eram minhas reflexões e hesitações, quando vi diante de mim uma poltrona forrada de lã branca como a neve, e grande. Então surgiu uma senhora idosa, com vestes resplandecentes, e um livro nas mãos. Ela sentou-se e me saudou: Bom dia, Hermas. Triste, respondi chorando; Bom dia, senhora. Ela então me disse: Por que essa de tristeza, Hermas? Tu, que és paciente, calmo e sempre sorridente, por que estás abatido dessa maneira e sem alegria? Eu respondi: É porque uma excelente mulher diz que cometi contra ela uma falta. Então ela continuou: Para um servo de Deus não se trata do ato em si mesmo. Mas certamente o desejo a respeito dela entrou no teu coração. Para os servos de Deus, intenção desse tipo conduz ao pecado. Para o espírito muito santo e já provado, intenção má, desejar má ação é de se espantar, sobretudo tratando-se do casto Hermas, que se abstém de todo mau desejo, que é pleno de perfeita simplicidade e grande inocência.


CAPÍTULO 3
Entretanto, não é por isso que Deus está irritado contigo, mas porque teus filhos agem mal diante do Senhor e de vós, seus pais, que os mantendes. De fato, amas teus filhos e não os corriges. Ao contrário, deixas que eles se corrompam terrivelmente. É por isso que o Senhor está irritado contigo. Mas ele vai curar todos os males que atingiram tua família, pois é por causa dos pecados e faltas deles que estás arruinado em teus negócios temporais. A grande misericórdia do Senhor teve compaixão de ti e de tua família; ele te fortalecerá e te estabelecerá na sua glória. Quanto a ti, apenas não desanimes: tem coragem e fortalece a tua família. O ferreiro, com o martelo, consegue o objeto que ele quer; da mesma forma, a palavra justa de cada dia consegue superar qualquer iniqüidade. Portanto, não cesses de corrigir teus filhos. Eu sei que, se eles fizerem penitência do fundo do coração, serão inscritos nos livros da vida com os santos. Quando terminou de falar, ela ainda me perguntou: Queres ouvir a leitura? Respondi: Quero sim, senhora. Ela continuou: Presta atenção e escuta os louvores de Deus. Eu ouvi coisas sublimes e admiráveis, que não consegui guardar. Todas essas palavras causam arrepios e o homem não é capaz de alcançar. Entretanto, lembro-me das últimas palavras, pois eram do nosso alcance e doces: Vê! O Deus das Potestades, aquele que com seu poder invisível e superior e grande inteligência criou o mundo; que por sua gloriosa vontade revestiu de graças as suas criaturas; que por sua palavra poderosa fixou o céu e assentou a terra sobre as águas; que por sua sabedoria e previdência criou a santa Igreja e também a abençoou; esse mesmo Deus desloca os céus e as montanhas, as colinas e os mares, que se tornam uma coisa única para os eleitos dele. Assim, ele cumpre na sua glória e a alegria, a promessa que fez para eles, se ao menos observarem os mandamentos do Senhor, que receberam com grande fé.


CAPÍTULO 4
Quando ela terminou de ler e se levantou da poltrona, chegaram quatro jovens que, levando a poltrona, foram embora, em direção ao Oriente. Então ela me chamou, tocou no meu peito e disse: Gostou da minha leitura? Respondi: Senhora, as últimas palavras me agradam, mas as anteriores são penosas e duras. Ela ainda falava comigo, quando apareceram dois homens, a tomaram pelos braços e se foram, na mesma direção da poltrona, para o lado do Oriente. Quando estava para partir, o ar dela era alegre e, ao se retirar, me disse: Sê homem, Hermas.


SEGUNDA VISÃO
CAPÍTULO 5
Eu me dirigia para Cumas, na mesma época do ano anterior. Enquanto caminhava, lembrei-me da visão que tivera no ano anterior, e novamente um espírito me arrebatou e me transportou para o mesmo lugar do ano precedente. Chegando aí, ajoelhei, comecei a rezar ao Senhor e a glorificar o seu nome, por me ter considerado digno e meter dado a conhecer os meus pecados passados. Ao me levantar da oração, vi diante de mim a senhora idosa que eu vira no ano anterior. Ela caminhava e lia um pequeno livro. Então me disse: Podes anunciar isto aos eleitos de Deus? Eu lhe respondi: Senhora, não consigo guardar na memória tantas coisas. Dá-me o livrinho, para que eu faça uma cópia. Ela disse: Toma e depois me devolve. Eu o tomei e, afastando-me para um lugar do campo, copiei tudo, letra por letra, porque não conseguia reconhecer as sílabas. Quando terminei de copiar as letras do livrinho, repentinamente me foi tirado da mão, sem eu ver quem o tomou.


CAPÍTULO 6
Depois de quinze dias de jejum e muitas orações ao Senhor, foi-me revelado o sentido do texto. Estava escrito o seguinte: Hermas, teus filhos se revoltaram contra Deus, blasfemaram o Senhor, traíram seus pais com muita maldade e tiveram de ouvir o nome de traidores de seus pais. Sua traição de nada lhes aproveitou e ainda continuaram acrescentando aos seus pecados a impureza e as contaminações da maldade e, desse modo, suas iniqüidades chegaram ao máximo. Transmite essas palavras a todos os teus filhos e à tua esposa, que doravante deve ser como tua irmã. Ela não domina a língua com a qual pratica o mal, porém, ouvindo essas palavras ela a dominará e alcançará misericórdia. Depois que tiveres dado a conhecer essas palavras que o Senhor me ordenou revelar-te, todos os pecados passados serão perdoados a eles, bem como a todos os santos que pecaram até hoje, se fizerem penitência de todo o coração e se afastarem de seus corações as dúvidas. O Senhor jurou por sua glória e respeito de seus eleitos: se depois deste dia, fixado como limite, ainda se cometer um só pecado, eles não obterão a salvação, pois a penitência para os justos tem limite. Terminaram os dias de penitência para todos os santos. Contudo para os pagãos, a penitência pode ser feita até o último dia. Dize, portanto, aos chefes da Igreja que endireitem seus caminhos na justiça, a fim de receberem plenamente, com grande glória, o que lhes foi prometido. Perseverai portanto, vós que praticais a justiça, e não duvideis, para que o vosso caminho esteja com os santos anjos. Felizes sois vós que suportais a grande tribulação que se aproxima, e todos os que não renegarem a sua própria vida. Porque o Senhor jurou por seu Filho: aqueles que renegarem o seu Senhor, perderão sua própria vida, como também aqueles que estão dispostos a renegá-lo nos dias futuros. Quanto àqueles que o renegaram antes, o Senhor, em sua grande misericórdia, tornou-se propício para eles.


CAPÍTULO 7
Quanto a ti, Hermas, não tenhas rancor contra teus filhos, nem abandones tua irmã. E assim, eles serão purificados dos pecados que cometeram. Se tu não lhes guardares rancor, eles receberão educação correta. O rancor provoca a morte. Quanto a ti, Hermas, sofreste grandes tribulações pessoais por causa das faltas de tua família, porque não cuidavas dela. Tu a negligenciaste, envolvendo-se ela em teus maus negócios. O que te salva, porém, é não teres abandonado o Deus vivo, assim como a tua simplicidade e a tua grande continência. Isso te salva, contanto que perseveres, e salva também todos aqueles que agem assim e andam no caminho da inocência e da simplicidade. Esses dominarão todo o mal e permanecerão firmes até a vida eterna. Felizes todos aqueles que praticam a justiça; jamais perecerão. 'Dize a Máximo: Eis que chega a tribulação. Se te parece bem, renega de novo. O Senhor está próximo daqueles que fazem penitência, como está escrito no livro de Eldad e Medat, que profetizaram para o povo no deserto.'


CAPÍTULO 8
Irmãos, quando eu dormia, tive uma revelação. Foi-me feita por um jovem encantador, que me disse: Quem achas que é a mulher idosa de quem recebeste o livrinho? Eu respondi: A Sibila. Ele disse: Estás enganado. Não é ela. Eu lhe perguntei: Quem é então? Ele me respondeu: É a Igreja. Eu lhe perguntei: Então, por que era tão idosa? Ele respondeu: Porque foi criada antes de todas as coisas. Por isso, ela é idosa. Foi por meio dela que o mundo foi ordenado. Depois disso, tive uma visão em minha casa. A mulher idosa apareceu e me perguntou se eu já havia entregue o livrinho aos presbíteros. Eu respondi que não. Ela continuou: Fizeste bem, porque tenho algumas palavras para acrescentar. Quando eu tiver terminado tudo o que tenho a dizer, tu o darás a conhecer a todos os eleitos. Farás duas cópias do livrinho e as mandarás, uma a Clemente e outra a Grapta. Clemente, por sua vez, mandará a cópia às outras cidades, porque essa missão é dele. Grapta exortará as viúvas e os órfãos. Tu o lerás para esta cidade, na presença dos presbíteros que dirigem a Igreja.


TERCEIRA VISÃO
CAPÍTULO 9
Irmãos, esta é a terceira visão que eu tive. Eu tinha jejuado freqüentemente e pedido ao Senhor que me concedesse a revelação que ele tinha prometido fazer-me por meio da mulher idosa. Nessa mesma noite, ela me apareceu e disse: Já que tens tanto desejo de conhecer tudo, vai ao campo onde cultivas a espelta, e pela quinta hora eu aparecerei a ti e te mostrarei o que precisas ver. Eu lhe perguntei: Senhora, em que lugar do campo? Ela respondeu: Onde quiseres. Escolhi um lugar belo e afastado. Contudo, antes que eu lhe falasse e dissesse o lugar, ela me disse: Irei aonde quiseres. Irmãos, eu caminhava, então, pelo campo, cantando as Horas. Cheguei ao lugar onde lhe havia dito que iria e vi um banco de marfim e em cima dele uma almofada de linho e, estendido sobre ela um véu de linho finíssimo. Ao ver esses objetos, sem que houvesse ninguém no lugar, fiquei espantado. Fui tomado de tremor e meus cabelos ficaram em pé. Ao verme sozinho ali, tive calafrios. Contudo, caí em mim, lembrei-me da glória de Deus e recobrei a coragem. Ajoelhei-me e confessei novamente ao Senhor os meus pecados, como já fizera antes. Então ela apareceu com seis jovens que eu já vira antes, aproximou-se de mim, ouviu-me rezando e confessando meus pecados ao Senhor. Ela me tocou e disse: Hermas, pára de suplicar somente por teus pecados. Suplica também pela justiça, a fim de obter um tanto dela para a tua família. Então ela me levantou pela mão, levou-me até junto ao banco e disse aos jovens: Ide construir. Então os jovens se retiraram, deixando-nos sozinhos. Ela me disse: Senta aqui. Eu lhe respondi: Senhora, deixa que os presbíteros sentem primeiro. Ela replicou: Faze o que te digo: senta. Quis então sentar-me à direita; ela porém não me permitiu, e me faz sinal com a mão para sentar à esquerda. Eu estava pensativo e triste, porque ela não me permitira sentar à direita. Então ela me disse: "Estás triste, Hermas?" O lugar da direita está reservado para outros, para os que já agradaram ao Senhor e sofreram por causa do Nome. Ainda te falta muito para poderes sentar-te com eles. Contudo, persevera na tua simplicidade, como fizeste até agora e sentarás ao lado deles e também com todos aqueles que farão o que eles fizeram e sofrerão o que eles sofreram.


CAPÍTULO 10
Eu lhe perguntei. O que é que sofreram? Ela me respondeu: Ouve: açoites, prisões, grandes tribulações, cruzes, feras, tudo por causa do Nome. E por isso que está reservado para eles o lado direito do santuário, a eles e a todo aquele que sofre por causa do Nome. Os outros ficam do lado esquerdo. Mas uns e outros, os que estiverem sentados à direita e os que estiverem à esquerda, gozam dos mesmos dons e das mesmas promessas. Os que estão sentados à direita, porém, têm glória particular. Tu desejas sentar à direita com eles, mas teus defeitos são numerosos. Deverás ser purificado de teus defeitos, e todos aqueles que não tiverem duvidado serão purificados de todos os seus pecados cometidos até hoje. Depois de dizer isso, ela fez menção de ir embora. Lancei-me a seus pés, suplicando-lhe, pelo Senhor, que me concedesse a visão que ela me prometera. Ela, tomou de novo a minha mão, levantou-me e me fez sentar no banco à esquerda. Ela também sentou, à direita. Depois, levantou um bastão brilhante, e me disse: Estás vendo uma coisa grande? Eu lhe respondi: Senhora, não estou vendo nada . Ela continuou: Não estás vendo diante de ti uma grande torre que está sendo construída sobre as águas, com pedras quadradas e brilhantes? Com efeito, ela estava sendo construída em forma quadrada pelos seis jovens que tinham vindo com ela. Outros milhares e milhares de homens carregavam as pedras, uns do fundo da água, outros da terra, e as entregavam aos seis jovens, que as recebiam e construíam. Eles colocavam as pedras tiradas do fundo da água pois já eram lavradas e se ajustavam imediatamente na construção perfeitamente às outras pedras; ajustavam-se tão bem umas com as outras, que não se via nenhuma juntura, e a torre parecia construída como um só bloco. Das pedras trazidas da terra, umas eram rejeitadas e outras utilizadas; outras ainda eram quebradas e jogadas longe da torre. Muitas outras pedras estavam no chão, ao redor do edifício. Não as utilizavam na construção, porque algumas estavam carcomidas, outras rachadas, outras mutiladas; outras ainda eram brancas e redondas e não se encaixavam na construção. Eu via também outras pedras jogadas longe da torre, caindo no caminho e, sem parar, rolando para lugares inacessíveis; outras caíam no fogo e queimavam, e outras ainda caíam perto da água mas não conseguiam rolar para dentro da água, embora desejassem rolar e entrar na água.


CAPÍTULO 11
Depois de me ter mostrado tudo isso, ela quis ir embora. Eu lhe disse: Senhora, que me serve ver essas coisas, se não sei o que significam? Ela me respondeu: Es curioso para conhecer o que se refere à torre! Eu lhe disse: Sim, senhora, quero conhecer para anunciar aos irmãos e alegrá-los, para que, ouvindo isso, conheçam a Deus em toda a sua glória.Ela então me disse: Muitos ouvirão. Contudo, depois de ouvirem, uns se alegrarão e outros chorarão. Todavia, também estes últimos, se ouvi­rem e fizerem penitência, se alegrarão. Ouve, portanto, as parábolas da torre, pois eu vou te revelar tudo. Não me incomodes mais, pedindo-me revelação, pois essas revelações podem acabar. Tu, porém, não pararás de pedir revelações, pois és insaciável. A torre que viste em construção, sou eu mesma, a Igreja, que viste agora e antes. Pergunta o que desejas a respeito da torre: eu te revelarei, para que te alegres com os santos. Eu lhe pedi: Senhora, agora que me julgaste digno de todas as revelações, revela-me. Ela me disse: O que convém te revelar, será revelado. Basta que teu coração esteja voltado para Deus e não duvides de nada do que vires. Eu lhe perguntei: Senhora, por que a torre está construída sobre as águas? Ela respondeu: Já te disse que és curioso a respeito das Escrituras e pesquisas com cuidado. Pesquisando, encontras a verdade. Ouve porque a torre foi construída sobre as águas: é porque vossa vida foi salva pela água e ainda o será. A torre foi construída pela palavra do Nome todo-poderoso e glorioso, e é sustentada pela força invisível do Senhor.


CAPÍTULO 12
Então continuei: Senhora, que coisa grande e admirável! Senhora, quem são os seis jovens que constroem? (Ela respondeu:) São os santos anjos de Deus, criados em primeiro lugar. O Senhor confiou-lhes toda a sua criação, para desenvolvê-la, construí-la e governá-la. É por meio deles que a construção da torre será terminada. (Perguntei:) E quem são os que carregam as pedras? (Ela respondeu): Também eles são anjos de Deus, mas os seis primeiros são superiores a eles. Quando a construção da torre estiver terminada, eles se alegrarão todos juntos ao redor dela, e glorificarão o Ser, por ela ter sido terminada. Eu lhe perguntei: Senhora, eu gostaria de conhecer o destino das pedras e qual o significado de cada uma delas. Ela me respondeu: Tu não és mais digno que os outros para que isso te seja revelado. Outros estão antes de ti e são melhores. É a eles que essas visões deveriam ser reveladas. Contudo, para que o nome do Senhor seja glorificado, tu recebeste e receberás ainda essas revelações, por causa dos que vacilam, dos que ficam se perguntando se tudo isso é real. Dize-lhes que tudo isso é ou não é verdadeiro e que nada disso está fora da verdade. Tudo é firme, sólido e bem alicerçado.


CAPÍTULO 13
Ouve agora o que se refere às pedras que entram na construção. As pedras quadradas e brancas, que se ajustam bem entre si, são os apóstolos, os bispos, os doutores e os diáconos. Todos esses, caminhando segundo a santidade de Deus, desempenharam com pureza a santidade seu ministério de bispos, doutores e diáconos a serviço dos eleitos de Deus. Uns já morreram e outros ainda vivem. Estes são os que estiveram sempre de mútuo acordo, conservaram a paz entre si e se ouviram reciprocamente. É por isso que na construção da torre suas junturas se ajustavam bem. (Eu perguntei:) E quem são as pedras tiradas do fundo da água, que se colocam na construção e pelas suas junturas se ajustam bem às outras já colocadas? (Ela respondeu): São os que sofreram por causa do nome de Deus. (Eu continuei:) Senhora, quero saber também quem são as outras pedras tiradas da terra. Ela respondeu: As que entram na construção sem ser talhadas são os que o Senhor aprovou, porque andaram no caminho reto do Senhor e respeitaram perfeitamente seus mandamentos. (Continuei:) E quem são aquelas que eram levadas e postas na construção? (Ela respondeu): São os novatos na fé, porém fiéis. Os anjos os exortam a praticar o bem, e não se encontrou neles nenhum mal. (Perguntei ainda): E quem são aquelas que eram rejeitadas e jogadas fora? (Ela respondeu:) São aqueles que pecaram e que desejam fazer penitência. Por isso não foram jogados muito longe da torre. Se fizerem penitência, serão úteis para a construção. Aqueles que têm intenção de fazer penitência, caso façam penitência, ficarão firmes na fé, contanto que façam penitência agora, enquanto a torre ainda está em construção. Quando ela estiver terminada, não haverá mais lugar para eles: serão rejeitados, e só poderão permanecer perto da torre.


CAPÍTULO 14
Queres conhecer as pedras que são cortadas e jogadas para bem longe da torre? São os filhos da iniqüidade: têm fé hipócrita e nenhuma forma de maldade se afastou deles. É por isso que não alcançam a salvação. São inúteis para a construção, por causa de suas maldades. Foram, portanto, feitos em pedaços e jogados para longe pela ira do Senhor, pois eles o irritaram. Entre as outras que viste jogadas em grande número pelo chão, e que não entravam na construção, as carcomidas são aqueles que conheceram a verdade, mas não perseveraram nela, nem aderiram aos santos. Por isso, são inúteis. (Perguntei:) E quem são as pedras com rachaduras? (Ela respondeu:) São aqueles que nutrem rancor mútuo no coração, e não conservam a paz entre si. Assumem aparência de paz, mas, quando se separam, suas maldades persistem em seus corações: são essas as rachaduras dessas pedras. As pedras mutiladas são aqueles que têm fé e, no essencial, permanecem ligados à justiça, mas neles subsistem restos de iniqüidade. É por isso que elas estão mutiladas e não inteiras. (Eu perguntei:) Senhora e quem são as pedras brancas e redondas, que não se adaptam à construção? Ela me respondeu: Até quando serás ignorante e sem bom senso? Perguntarás tudo sem nada compreenderes por ti mesmo? São aqueles que têm fé, mas também conservam as riquezas deste mundo. Quando chega a tribulação, por causa de suas riquezas e negócios, eles renegam seu Senhor. Eu então lhe replico: Senhora, quando é que eles serão úteis para a construção? Ela me diz: Quando for aparada a riqueza que os domina, então serão úteis para Deus. A pedra redonda não pode se tornar quadrada se não for cortada e não perder algo de si. Do mesmo modo, os ricos deste mundo não poderão ser úteis ao Senhor, se suas riquezas não forem aparadas. Aprende contigo mesmo: enquanto eras rico, eras inútil; agora, porém, és útil e frutuoso para a vida. Tornai-vos úteis para Deus! Tu mesmo foste uma dessas pedras.


CAPÍTULO 15
As outras pedras que viste jogadas longe da torre, caindo no caminho e rolando daí para lugares inacessíveis, são aqueles que tiveram a fé, mas que, devido às suas dúvidas, abandonam o seu verdadeiro caminho. Eles acham que podem encontrar caminho melhor, se extraviam e se enveredam lamentavelmente, andando por lugares inacessíveis. As que caem no fogo e queimam são aqueles que se afastaram para sempre do Deus vivo, e não lhes acudiu à inteligência a idéia de fazerem penitência das paixões e das obras perversas que praticam. Queres saber quem são aquelas que caem junto da água, mas não conseguem rolar para dentro dela? São aqueles que ouviram a palavra de Deus e querem ser batizados em nome do Senhor. Contudo, quando tomam consciência da pureza que a verdade exige, mudam de opinião e voltam novamente para seus desejos perversos. E assim ela terminou a explicação da torre. Sem escrúpulos, eu lhe perguntei se todas essas pedras rejeitadas e impróprias para a construção podiam fazer penitência e encontrar lugar na torre. Ela me respondeu: Elas podem fazer penitência, mas não podem se encaixar nessa torre. Elas se encaixarão em outro lugar muito menor e só depois que tiverem passado pelas provações da penitência e cumprido os dias necessários para expiar os seus pecados. São transportadas para outro lugar, porque participaram da palavra de justiça. Se refletirem sobre as obras perversas que cometeram, serão transportados das provações; se não refletirem, não serão salvos, e isso devido à dureza de seus corações.


CAPÍTULO 16
Quando terminei de a interrogar sobre todas essas coisas, ela me disse: Queres ver mais alguma coisa? Eu estava muito desejoso de ver, e fiquei deveras contente. Ela me olhou sorridente e perguntou: Vês sete mulheres ao redor da construção? Eu respondi: Sim, senhora. (Ela continuou:) A torre é sustentada por elas, por ordem do Senhor. Ouve agora as funções que elas desempenham. A primeira, de mãos fortes, se chama Fé. É por meio dela que os eleitos do Senhor são salvos. A segunda, que tem cinto e aspecto viril, chama-se Continência, e é filha da Fé. Todo aquele que a segue é feliz durante a vida, porque se abstém de toda má ação, crendo que, por se abster de todo desejo perverso, herdará a vida eterna. (Eu então perguntei:) Senhora, e quem são as outras? (Ela continuou:) Elas são filhas uma da outra e se chamam Simplicidade, Ciência, Inocência, Santidade e Caridade. Portanto, se realizares todas as obras da mãe delas, viverás. Perguntei: Senhora, eu desejaria saber qual é o poder de cada uma delas. Ela respondeu: Ouve quais são os poderes delas. Elas estão subordinadas umas às outras e seguem-se mutuamente, conforme são geradas. Da Fé nasce a Continência; da Continência, a Simplicidade; da Simplicidade, a Inocência; da Inocência, a Santidade; da Santidade, a Ciência; da Ciência, a Caridade. Suas obras são puras, santas e divinas. Quem quer que se torne seu servidor e tenha força para perseverar em suas obras, habitará na torre, junto com os santos de Deus. Perguntei-lhe ainda sobre os tempos, para saber se já havia chegado o fim. Ela, então, gritou em voz alta: Insensato, não vês que a torre ainda está em construção? Quando estiver terminada, então chegará o fim. E ela será terminada logo. Não me perguntes mais nada. Basta a ti e aos santos lembrar-vos disso e renovar vossos espíritos. Mas não é somente para ti que tudo isso foi revelado: deves torná-lo conhecido de todos, em três dias. Em primeiro lugar, és tu que deves refletir. Hermas, eu te ordeno repetir literalmente aos santos todas as palavras que te vou dizer, para que, depois de tê-las ouvido e observado, eles sejam purificados de seus pecados, e tu com eles.


CAPÍTULO 17
Filhos, escutai-me. Eu vos criei com toda a simplicidade, inocência e santidade, pela misericórdia do Senhor, o qual, gota a gota, fez cair sobre vós a justiça, para vos justificar e vos santificar de toda maldade e perversidade. Vós, porém, não quereis corrigir-vos de vossa maldade. Agora, portanto, escutai-me. Vivei em paz uns com os outros, cuidai uns dos outros e socorrei-vos mutuamente. Não vos aposseis, somente para vós, dos bens que Deus criou em abundância, mas reparti também com os necessitados. Alguns, de fato, pelo excesso no comer, acabam por enfraquecer o corpo e minar a saúde. Outros, que não têm o que comer, vêem a saúde arruinada pela insuficiência de alimentos e o corpo se arruína. Essa intemperança é danosa para vós, para vós que possuís e não repartis com os necessitados. Vede o julgamento que está para vir. Vós que tendes muito, procurai os que têm fome, enquanto a torre não estiver terminada, porque, depois de terminada, ainda que quisésseis fazer o bem, não teríeis mais ocasião. Atenção, portanto, vós que vos orgulhais de vossas riquezas, para que os necessitados não gemam e o gemido deles chegue até o Senhor, e sejais excluídos, junto com vossos bens, fora da porta da torre. Eu me dirijo agora aos chefes da Igreja e àqueles que ocupam os primeiros lugares. Não vos torneis semelhantes aos envenenadores. Eles levam seus venenos em frascos. Vós tendes vossa poção e veneno no coração. Estais endurecidos, recusais purificar vossos corações para temperar, com o coração puro, vosso pensamento na unidade, a fim de obter a misericórdia do grande Rei. Atenção, portanto, meus filhos, para que essas divisões não tirem a vossa vida. Como pretendeis instruir os eleitos do Senhor, se vós mesmos não tendes instrução? Instruí-vos, portanto, uns aos outros, e conservai a paz mútua, a fim de que também eu, apresentando-me alegre diante do Pai, possa falar favoravelmente a respeito de todos ao vosso Senhor.


CAPÍTULO 18
Quando ela terminou de falar comigo, chegaram os seis jovens encarregados da construção e a levaram para a torre. Outros quatro tomaram o banco e também o levaram para a torre. Não vi o rosto deles, pois estavam de costas. No momento em que ela se retirava, eu lhe pedi que me explicasse as três formas sob as quais ela me aparecera. E ela me respondeu: É necessário que o perguntes a outro para que o revele a ti. Irmãos, eu a tinha visto, na primeira visão do ano anterior, muito idosa e sentada na poltrona. Na visão seguinte, ela estava com aspecto mais jovem, porém o corpo e os cabelos eram de idosa; ela me falava de pé e estava mais alegre do que antes. Por ocasião da terceira visão, ela era inteiramente jovem e muito bela; só os cabelos eram de idosa. Estava muito alegre e sentada num banco. Eu estava muito intrigado para compreender a revelação prometida sobre essas coisas. De noite, numa visão, vi a mulher idosa, que me disse: Toda pergunta exige humildade. Jejua, portanto, e obterás o que pedes ao Senhor. Jejuei então um dia e, nessa noite, me apareceu um jovem que me disse: Por que pedes continuamente revelações na oração? Atenção! Pedindo muito, podes prejudicar teu corpo. Bastam para ti essas revelações. Es capaz de suportar revelações mais fortes do que aquelas que já tiveste? Eu lhe respondi: Senhor, peço apenas a respeito das três formas da mulher idosa, para que a revelação fique completa. Ele me respondeu: Até quando sereis insensatos? O que vos torna insensatos é duvidar e não voltar o vosso coração para o Senhor. Eu lhe respondi novamente: É justamente por teu meio, Senhor, que conhecemos essas coisas.


CAPÍTULO 19
Ele me disse: Escuta o que estás procurando sobre as formas. Por que na primeira vez ela te apareceu idosa e sentada numa poltrona? Porque vosso espírito estava envelhecido, murcho e sem força, por causa de vossa fraqueza e dúvidas. Os velhos, por não terem mais esperança de rejuvenescer, não esperam outra coisa senão a morte. Da mesma forma, enfraquecidos pelos negócios do mundo, vos tendes deixado levar pelo abatimento e não entregastes ao Senhor as vossas preocupações. Vosso coração se despedaçou e envelhecestes em meio às tristezas. (Eu disse:) Senhor, eu desejaria saber por que ela estava sentada numa poltrona. (Ele respondeu:) Porque toda pessoa fraca, por causa da fraqueza, é obrigada a sentar para reconfortar seu corpo débil. Esse é o sentido geral da primeira visão.


CAPÍTULO 20
Na segunda visão, tu a viste de pé, com aspecto mais jovem e mais alegre do que antes, mas com o corpo e os cabelos de idosa. Escuta a seguinte comparação: um idoso desesperançado por causa de sua fraqueza, e miséria, não espera mais nada, senão o último dia da sua vida. Caso, imprevistamente, lhe seja deixada uma herança, ao saber disso, ele levanta, alegra-se e recobra as forças. Ele não permanece deitado, mas põe-se de pé, e seu espírito, que estava consumido por seus sofrimentos anteriores, rejuvenesce; não fica sempre sentado, mas age virilmente. Igualmente acontece convosco, depois de ouvir a revelação que o Senhor vos fez. Ele teve compaixão de vós, vosso espírito rejuvenesceu e vós deixastes a fraqueza. A força voltou para vós e vos fortalecestes na fé. Vendo vossa força, o Senhor se alegrou e, por isso, vos mostrou a construção da torre. Ele ainda vos fará outras revelações, se de todo o coração estabelecerdes a paz entre vós.


CAPÍTULO 21
Na terceira visão, tu a viste mais jovem, bela, alegre, de aspecto encantador. E como pessoa triste que recebe boa notícia: imediatamente esquece suas tristezas anteriores. Ela só pensa nessa notícia que ouviu, retoma forças para o bem e, pela alegria que experimenta, seu espírito rejuvenesce. O mesmo acontece convosco: ao ver esses bens, vosso espírito rejuvenesceu. Tu a viste sentada no banco, em posição estável, pois o banco tem quatro pés e se mantém firme. O mundo também é sustentado por quatro elementos. Aqueles que fizerem penitência serão completamente rejuvenescidos e firmes, ao menos aqueles que tiverem feito penitência de todo o coração. Tu recebeste, assim, toda a revelação. Doravante, não peças mais nenhuma revelação. Se tiveres necessidade, a receberás.


QUARTA VISÃO
CAPÍTULO 22
Irmãos, esta é a visão que tive vinte dias depois da última, prefigurando a tribulação que se aproxima. Eu caminhava pela Via Campana para o meu campo, situado a uns dez estádios da via pública. O lugar é de fácil acesso. Caminhando sozinho, pedi ao Senhor que completasse as revelações e as visões que me enviou por meio de sua santa Igreja, a fim de me fortalecer e conceder a conversão aos seus servos que tropeçaram. Desse modo, seu nome sublime e glorioso será glorificado, pois ele julgou-me digno de me mostrar suas maravilhas. Eu o glorificava e lhe dava graças, quando um ruído de vozes me respondeu: Não duvides, Hermas. Comecei então a refletir e disse a mim mesmo: Que razões teria eu para duvidar, eu que sou assim sustentado pelo Senhor e que vi essas maravilhas? Avancei um pouco, irmãos, e então vi uma nuvem de poeira que se levantava até o céu, e perguntei: Será algum rebanho que se aproxima e levanta a poeira? A nuvem estava mais ou menos a um estádio de mim. Mas ela aumentava cada vez mais e eu suspeitei que fosse algo divino. Nesse momento, o sol brilhou um pouco, e então pude ver uma fera enorme, parecida com a baleia. E da sua boca saíam gafanhotos de fogo. A fera tinha cerca de cem pés de comprimento, e sua cabeça era do tamanho de um barril. Comecei a chorar e a pedir ao Senhor que me livrasse do monstro. Lembrei-me da palavra que tinha ouvido: Não duvides, Hermas. Então, irmãos, revesti-me da fé em Deus, lembrei-me de seu ensinamento sublime e, num arroubo de coragem, me expus diante da fera. Ela avançava com grande estrépito, capaz de destruir uma cidade. Aproximei-me, e a enorme baleia se estendeu pelo chão, apenas pondo para fora a língua. Ela não fez nenhum outro movimento, até que passei por ela. A fera tinha quatro cores na cabeça: preto, avermelhado de fogo e sangue, dourado e branco.


CAPÍTULO 23
Eu ultrapassara a fera, e continuei uns trinta pés, quando veio ao meu encontro uma jovem adornada, como se estivesse saindo do quarto nupcial, toda vestida de branco, com sandálias brancas, coberta até a fronte, com mitra cobrindo a cabeça. Seus cabelos eram brancos. Pelas visões anteriores, reconheci que era a Igreja, e fiquei muito contente. Ela me saudou, dizendo: Bom dia, homem. Eu lhe respondi com a mesma saudação: Bom dia, senhora. Ela me perguntou: Não encontraste nada? Eu lhe respondi: Senhora, encontrei uma fera tão grande, que seria capaz de aniquilar povos. Mas, pelo poder e misericórdia do Senhor, consegui escapar dela. Então me disse: Tiveste a felicidade de escapar, porque entregaste tua preocupação a Deus, abriste teu coração ao Senhor, acreditando que não poderias ser salvo de outro modo, senão pelo seu Nome grande e glorioso. Por isso, o Senhor enviou o seu anjo, aquele que está à frente das feras selvagens, cujo nome é Tegri: ele fechou a boca da fera, a fim de evitar que ela te devorasse. Por tua fé, escapaste de grande tribulação, pois a visão de tão grande fera não te fez duvidar. Portanto, agora vai, e explica as grandezas do Senhor aos seus eleitos. Dize-lhes que essa fera é a prefiguração da grande tribulação que está para chegar. Se vos preparardes e de todo coração fizerdes penitência diante do Senhor, podereis escapar da tribulação. É preciso, porém, que vosso coração se tome puro e irrepreensível, e que sirvais irrepreensivelmente ao Senhor pelo resto de vossos dias. Entregai ao Senhor as vossas preocupações, e ele as resolverá. Crede no Senhor que tudo pode, vós que duvidais. Ele desvia sua ira de vós e envia flagelos para vós que duvidais Ai daqueles que ouvirem essas palavras e não as aceitarem. Seria melhor para eles não ter nascido.


CAPÍTULO 24
Perguntei-lhe então sobre as quatro cores que a fera tinha na cabeça. Ela me respondeu: Estás novamente curioso a respeito dessas coisas. Eu lhe disse: Sim, senhora. Dá-me a conhecer o que significa isso. Ela disse: Escuta. A cor negra é este mundo em que habitais; o avermelhado de fogo e sangue quer dizer que este mundo deverá perecer pelo fogo e pelo sangue. A parte dourada sois vós, que fugistes deste mundo. Com efeito, o ouro é provado pelo fogo e se torna útil. Da mesma forma, vós que habitais no mundo sois provados. Vós que perseverais e resistis à prova do fogo, sereis purificados. Assim como o ouro deixa sua escória, vós também deixareis toda tristeza e angústia, e sereis purificados e úteis para a construção da torre. A parte branca é o mundo que se aproxima, onde habitarão os eleitos de Deus, pois os eleitos de Deus para a vida eterna serão puros e sem mancha. Quanto a ti, não cesses de falar aos santos. Tendes a prefiguração da grande tribulação que se aproxima. Se quiserdes, porém, ela não será nada. Lembrai­ vos do que foi escrito antes. Tendo dito isso, ela foi embora, e eu não vi por onde se foi. Apareceu uma nuvem e eu, apavorado, voltei-me para olhar para trás, com a impressão de que a fera estivesse voltando.


QUINTA VISÃO
CAPÍTULO 25
Eu estava rezando em casa, sentado na cama, quando vi entrar um homem de aparência gloriosa, vestido com roupas de pastor, coberto com pele branca de cabra, com o bornal nas costas e o cajado na mão. Saudou-me e respondi à saudação. Imediatamente ele sentou ao meu lado, e me disse: Fui enviado pelo anjo mais venerável, para morar contigo pelo resto da tua vida. Pareceu-me que ele estava ali para me provar. Eu lhe perguntei: Quem és tu? Eu sei muito bem a quem fui confiado. Ele me disse: Não me reconheces? Eu respondi: Não. Ele continuou: Eu sou o Pastor, a quem foste confiado. Ele ainda falava, quando seu aspecto mudou, e então o reconheci: era justamente aquele a quem eu fora confiado. Logo a seguir, cheio de confusão, fui tomado pelo medo e completamente arrasado pela tristeza. Será que eu o tinha tratado de forma desconsiderada e insensata? Ele, porém, me respondeu: Não te perturbes. Ao contrário, fortalece-te com os mandamentos que te darei, pois fui enviado para te mostrar, ainda uma vez, tudo o que viste antes, os principais pontos úteis para vós. Quanto a ti, anota tudo sobre os mandamentos e as parábolas. Escreverás as outras coisas, conforme eu te indicar. Ordeno que escrevas primeiro os mandamentos e as parábolas, para que possas lê-los e observá-los imediatamente. Então escrevi os mandamentos e as parábolas, conforme ele me ordenara. Se vós os escutardes e observardes, se caminhardes neste caminho e os puserdes em prática com o coração puro, recebereis do Senhor tudo o que vos prometeu. Todavia, se depois de escutardes, não vos converterdes, se continuardes a pecar, recebereis do Senhor o contrário. Eis aqui tudo o que o Pastor, o anjo da penitência, me ordenou que escrevesse.


CONCÍLIO DE TRENTO: Cédula de Felipe II, em que manda a observância do Concílio


Cédula de Felipe II, em que manda a observância do Concílio:

Dom Felipe, pela graça de Deus Rei de Castela, de León, de Aragão, das duas Sicílias, de Jerusalém, de Navarra, de Granada, de Toledo, de Valência, de Galícia, de Mallorca, de Sevilla, de Cerdeña, de Córdoba, de Córsega, de Murcia, de Jaén, dos Algarves, de Algeciras, de Gibraltar, das ilhas Canárias, das Índias, Ilhas e terra firme do mar Oceano, Conde de Flandes, e de Tirol, etc.
Ao Sereníssimo Príncipe dom Carlos, nosso mui caro e mui amado filho, e aos Prelados, Cardeais, Arcebispos e Bispos; aos Duques, Marqueses, Condes, Ricos-homens, Priores das ordens, comendadores e subcomendadores; aos Alcaides dos castelos, casas fortes e chãs; aos do nosso Conselho, presidentes e ouvidores das nossas audiências, alcaides, algalies da nossa casa e corte; chancelarias e a todos os corregedores, assistentes, governadores, alcaides maiores e ordinários, e outros juízes e justiças quaisquer de todas as cidades, vilas e lugares dos nossos reinos e senhorios; e a cada um e quaisquer de vós em vossa jurisdição, a quem esta nossa carta for mostrada, saúde e graça:
Sabei que certa e notória é a obrigação que os Reis e Príncipes cristãos tem a obedecer, guardar e cumprir, e que em seus reinos, estados e senhorios se obedeçam, guardem e cumpram os decretos e mandamentos da santa mãe Igreja, a assistir, ajudar e favorecer com efeito e execução, e à conservação deles, como filhos obedientes e protetores e defensores dela.

"Havendo enfim se congregado este Santo e Ecumênico concílio pretendido há tantos anos por todo o rebanho cristão, e procurando às expensas de tantos trabalhos na cidade de Trento, com a finalidade de extirpar as heresias, dissipar os cismas, reformar os costumes e conciliar a paz entre os príncipes cristãos, e ainda não estando satisfeitos, depois de sua convocação, os objetivos acima descritos, nem ao menos a um deles completamente, e em especial à reforma necessária dos abusos dos quais nasceram e se fomentaram os males que afligem à Igreja, nós, os abaixo assinados, arcebispos e bispos, impelidos pelos remorsos de nossas próprias consciências, resolvemos contradizer ao enunciado decreto de suspensão do Concílio, e a todas as circunstâncias e condições contidas nele, tanto na substância como no modo. Então, contradizemos e repugnamos:
Primeiro porque as causas alegadas no referido decreto para a suspensão do concílio são as guerras e alvoroços na Alemanha (que no próprio decreto se diz que existem esperanças que logo cessarão), não parecem tão urgentes que por elas se deixe de prosseguir o Concílio, ao menos nas matérias pertencentes à reforma que na convocação deste Concílio se classificou de oportuníssima para tranqüilizar e apaziguar as discórdias dos príncipes, e consequentemente sua presunção.
Em segundo lugar, porque a dita suspensão mais parece dissolução, que justa, moderada e necessária suspensão, pois, ainda que faltassem todos os demais obstáculos que nos ensinou a temer tão repetida experiência, não será fácil que se voltem a congregar os Prelados de tão diversas e remotas províncias, nem faltarão aos inimigos da Igreja Católica ocasiões e motivos para suscitar e fomentar guerras e distinções, para que estorvem e frustem a reconvocação deste Concílio, cujo nome é tão odioso entre eles, o que é exatamente o que vemos agora, quando procuram com grande empenho por diferentes modos, e o procurarão com muito maiores esforços, se percebem que estes tem o próspero efeito que desejam, e que nos fizeram desistir da obra começada.
Além disso, nos amedronta o gravíssimo escândalo e a confirmação quase certa das heresias que manifestamente há de se seguir a esta suspensão, tão grande, não apenas entre os próprios inimigos da Igreja como entre a maior parte dos católicos, pois julgarão que abandonamos a causa de Deus e a pública, não por outra razão que o medo das pressões, falta de tolerância nos trabalhos, e o que é pior, por desconfiar de nossa própria causa e da proteção divina.
Sendo assim, e como todos sabem, estamos bastante seguros e distantes de todos os perigos da guerra, na mesma cidade onde em outra ocasião que havia guerras não menos perigosas, preservou-se mesmo assim, com resolução e confiança o mesmo Concílio nesta obra divina feito por certo que nem nós mesmos podemos negar.
Com estas razões, e tendo em nossas próprias mãos as almas que deverão perecer por serem privadas deste salutar e único remédio, e tendo também outras causas que nos obrigam a consciência, não podemos de deixar de contradizer expressamente o referido decreto, ou melhor dizendo, o contradizemos e repugnamos absolutamente, por tudo que está em nossa parte.
E para que se veja que buscamos por todos os meios, arbítrios de concórdia, e não se creia que recusamos todo o temperamento suave e proporcionado às presentes circunstâncias, pois não condenamos que se tenha consideração às dificuldades do tempo e à ausência de quase todos os prelados da nação Alemã, pedimos que insistindo este santo Concílio no método que até aqui foi seguido e observado, prorrogue a sessão indicada para primeiro de maio a outro termo moderado, e determine-se um dia fixo que por si mesmo chame os Prelados ao Concílio, de modo que não devam aguardar outra convocação para se reunir ao lugar do Concílio.
Acrescentando, todavia, que se os inconvenientes referidos cessassem antes do tempo que se há de determinar, cuide Sua Santidade, de que voltem a prosseguir o concílio todos os Prelados que puderem voltar, se lhes parecer bem e às suas igrejas.
Em relação às últimas palavras do decreto, em que se recomenda a observância de tudo que foi estabelecido até então por este santo Concílio, as aprovamos sem dúvida, e se fosse publicado sem esta cláusula, sem dúvida também aprovaríamos em tudo que toca de direito aos bispos, pois parece que dão ocasião e serão manancial de pleitos.
Pedimos então, que tudo isto seja feito assim e não de outro modo, e protestamos que se forem executados em outros termos, nem nós, nem este Santo Concílio seremos responsáveis em tempo algum pelos prejuízos que se seguirão, tanto pela publicação do decreto de suspensão, como por qualquer outro ato feito, ou que se faça, empreendido ou que se empreenda por qualquer pessoa que seja, contra a autoridade e poder deste Concílio Geral, e de todos os concílios gerais.

Pedimos finalmente ao notário do concílio que insira nas cartas, juntamente com o decreto, estas nossas páginas de contradição, atestado e protesto, e que o mesmo ou outros nos dêem, se for necessário, um ou muitos instrumentos autênticos copiados delas".


30/08/2012

O século da ignorância


Jornal do Brasil

Roberto Muñoz*

O Hades proposto pelas duas guerras mundiais referendou a burrice laica, enquanto os assassinatos em massa levados a cabo pela arquitetura comunista – Rússia, China, Cuba – promoveram o diabólico a nobre cargo influente na diretriz intelectual no mundo pós-laico. O resumo do horror no século 20 brota violentamente na frase “O Estado é a organização especial de um poder: é a organização da violência”, de Lênin, que também proferiu em seu Decálogo: “Corrompa a juventude e dê-lhe liberdade sexual”. 
Eis o Estado dominado por um só partido, com a juventude usada como escudo e capataz, após ser comprada por elogios e paparicações. Pra quê mais? Todos os Estados violentos do século passado angariaram a juventude para suas hostes. De modo que a natural exuberância juvenil foi canalizada pra fins menores – ao invés de aprofundar a própria alma no belo lirismo da descoberta deste intermezzo existencial. Mas não, Hölderlin, Rilke, Cruz e Sousa, entre outros, foram inapelavelmente preteridos pela retórica política. E o desastre adveio em tórridas distorções pessoais por meio do embrutecimento da sensibilidade. 
O patético de tal século também perambulou por meio de sinuosas infiltrações no mundo espiritual, com bobagens sincréticas fortemente atuantes como a dita Nova Era – repleta de incensos, pedras energizadas, velas e gurus dissonantes da verdadeira tradição ocidental consolidada na Patrística e revigorada no Medievo. Os adeptos de Gramsci – invasão do partido na esfera da elite intelectual de uma nação – lambuzaram-se efusivamente, tamanho o deleite advindo da terrível atuação política esquerdista no Concílio Vaticano II, de modo que a Missa Tridentina de São Pio V foi solenemente substituída por pseudomissas porque formatadas na purpurina e no confete. 
A derrocada da coerência espiritual baseada na Unidade Transcendental dá espaço, no mundo pós-moderno, não mais ao dualismo proveniente dos subterrâneos da Revolução Francesa mas à inversão de valores, onde o assassinato do próprio filho dentro do ventre materno obtém respaldo internacional a ponto de virar lei em diversas partes do mundo. O homem que pretendia “varrer o cristianismo da face da terra” cooptou admiradores em vários cantos do planeta, sendo que o lema da foice, do martelo e da estrela vermelha inspirou-lhe a fomentação de  uma das maiores catástrofes já existentes na Humanidade. E quem recordará que outro discípulo da violência comunista, o senhor Ernesto “Che” Guevara, usava uma boina onde cravada estava a estrela invertida de cinco pontas? 
De fato, a incursão comunista do momento, sob o ponto de vista de atuação conjuntural no mundo, passa forçosamente por um Estado com economia liberal para fortalecer a burocracia e o controle estatal, principalmente como forma de interferir diretamente na vida privada dos nativos — o que pode acontecer sutilmente através da voz da “opinião pública”, também atuante através de redes sociais internéticas cheias da razão no que concerne a boníssimos discursos opinativos. O problema surge quando assuntos meramente opinativos são substituídos por questões referentes a juízos de valor como pauta diária. É justamente a politização integral do ser humano que impossibilita a sua ascensão espiritual. 

* Roberto Muñoz é escritor

EXPLICAÇÃO DA SANTA MISSA – PARTES XVIII; XIX; XX E XXI

EXPLICAÇÃO DA SANTA MISSA
Autor: pe. Martinho de Cochem (1630-1712)
Fonte: Lista "Tradição Católica"
Digitalização: Carlos Melo

XVIII. A SANTA MISSA É A MAIS DOCE ALEGRIA DA MÃE DE DEUS E DOS SANTOS
Nosso Senhor disse, uma vez, ao Bem-aventurado Alano: "Da mesma maneira que a divina Sabedoria escolheu uma virgem, entre todas, para ser a Mãe do Salvador, assim instituiu o sacerdócio para distribuir ao mundo, em todo o tempo, os tesouros da redenção pelo santo Sacrifício da Missa e pelos santos Sacramentos. Eis a maior alegria da minha Mãe, as delícias dos Bem-aventurados, o socorro mais seguro dos vivos e a melhor consolação das almas do purgatório" (Alanus rediv. part. E, c. 27).
A Mãe de Deus e todos os Santos gozam duma felicidade dupla: da bem-aventurança essencial e da bem-aventurança acidental. A primeira consiste na vida e na posse de Deus, conforme o grau de glória, em que foram confirmados, no momento de sua entrada no céu. Esta bem-aventurança essencial não pode aumentar nem diminuir. A bem-aventurança acidental consiste nas horas particulares que Deus, os outros Santos ou os homens rendem aos felizes habitantes do céu. Podemos acreditar, por exemplo, que, quando lhes celebramos a festa aqui na terra, eles recebam, no céu, honras particulares e todas as nossas orações e boas obras feitas em sua honra lhes sejam apresentadas por nossos Anjos, como um ramalhete de perfume delicioso.
O Evangelho indica esta crença claramente, por estas palavras de Nosso Senhor: "Assim vos digo que haverá júbilo entre os Anjos de Deus por um pecador que faz penitência" (Lc. 15, 10). Esta alegria renova-se pelo bom Pastor, pelos Anjos e pelos Santos a cada volta de uma ovelha desgarrada, porém, cessa logo que o pecador deixa de novo o aprisco por uma recaída no pecado.
Este curto esclarecimento fará compreender em que sentido a santa Missa é a maior alegria de Maria Santíssima.: é a maior alegria acidental e ultrapassa todas as outras felicidades desta ordem.
Se, em honra da Rainha do Céu, recitasse o terço, o ofício, as ladainhas, ou entoasse cânticos, enquanto um outro assistisse, piedosamente, à santa Missa, este cumpriria um ato de religião muito superior e causaria um prazer, infinitamente maior, à Santíssima Virgem.
O que torna ainda a santa Missa muito cara à Mãe de Deus, é o zelo que tem pela glória de Deus, que a divina Majestade faz consistir, sobretudo, na salvação das almas. Pelo santo Sacrifício do Altar, prestamos à augusta Trindade a única homenagem digna dela e lhe oferecemos, ao mesmo tempo, o preço da redenção do gênero humano. Ainda uma vez, que prazer agradável, suave, perfeito para Maria Santíssima ver-nos cercar o altar, onde seu amado Filho é adorado, onde choramos os pecados, onde contemplamos a dolorosa Paixão e onde o precioso Sangue é derramado sobre nossas almas!
Daí ainda expor a vantagem da santa Missa para os outros Santos.
Devemos homenagem aos Santos. São amigos de Deus que os honra; seguem a Cristo vestido de branco, "porque disso são dignos" (Apoc. 3, 4) e é deles que Nosso Senhor diz: "Quem vos glorifica, a mim glorifica" (II Reis, 2, 35). Durante a vida fugiram das honras, desprezaram-se a si próprios, sofreram, com paciência, as injúrias, os insultos, as perseguições dos maus. Por essa razão, Deus manifesta-lhes a inocência e a virtude e quer que sejam reverenciados por toda a cristandade.
Sob a inspiração do Espírito Santo, a Igreja exprime a admiração pelos filhos vitoriosos com os ofícios próprios do breviário, com cânticos, prédicas, procissões, peregrinações, mas, principalmente, pelo Sacrifício da Missa. - "Assim será honrado a quem o Rei dos Céus quiser honrar".
Na verdade, a honra mais excelente é prestada aos Santos pelo santo Sacrifício do Altar, se mandamos celebrá-lo, ou se o assistimos com a intenção de aumentar-lhes a honra acidental. - Para honrar a um príncipe, dá-se, às vezes, uma representação teatral, e, ainda que, na peça, não se faça menção dele, o príncipe não deixa de experimentar prazer. Da mesma maneira, apesar de, na santa Missa, representar-se apenas a vida e a paixão do divino Salvador, os Santos sentem grande alegria e delícias singulares, quando este espetáculo se realiza em sua honra, e todo o céu se regozija.
Quando o sacerdote pronuncia o nome dos Santos, o coração se lhes enternece, porque, observa São João Cirsóstomo, tendo o rei alcançado a vitória, o povo, querendo exaltar-lhe os feitos, nomeará também os companheiros d'armas do herói que, valentemente, destroçou o inimigo. Da mesma forma, é grande honra para os Santos serem nomeados, em presença de seu divino Mestre, do qual se celebram, como em triunfo, a paixão e morte, ouvindo louvar as vitórias alcançadas sobre o inimigo infernal. O escritor Molina diz sobre este assunto: "Não podemos ser mais agradáveis aos Santos do que oferecendo o santo Sacrifício em seu nome à Santíssima Trindade, em reconhecimento das graças que receberam, em lembrança dos méritos adquiridos" (Tract. 4, c. 10).
Observa que não se oferece o santo Sacrifício a São Miguel nem aos outros Anjos, mas a Deus Pai. Não encontrarás, em nenhum lugar, que o Santo Sacrifício possa ser oferecido à Maria Santíssima, aos Anjos ou aos Bem-aventurados. É sempre oferecido em honra da Santíssima Trindade; apenas se menciona o nome dos felizes habitantes do céu, porque, diz Santo Agostinho, "não é aos Mártires que erigimos altares, mas unicamente a sua memória". Qual o sacerdote que disse jamais no altar em que se acham as relíquias dos Santos: "A vós, São Paulo, a vós, São Pedro, oferecemos o Sacrifício?". Nunca. Jamais.
O Concílio de Trento usa quase dos mesmos termos: "Se bem que a Igreja tenha o costume de celebrar a santa Missa em hora dos Santos, não pretende oferecê-la aos Santos, porém a Deus, que os coroou". Também o sacerdote não diz: "Ofereço-vos este sacrifício, oh! São Pedro, São Paulo", mas agradecendo a Deus a vitória concedida a tal Santo pede àqueles de quem celebramos a festa na terra que intercedam por nós no céu.
Aproveita, pois, caro leitor, do excelente poder de aumentar a felicidade acidental dos habitantes do céu, oferecendo o santo Sacrifício em honra da Santíssima Trindade e, na elevação da Sagrada Hóstia, dize a Deus: "Ofereço-Vos Vosso querido Filho para maior glória e alegria do Bem-aventurado N. ...".
Para este fim, antes de ir à igreja, tem cuidado de consultar o calendário sem jamais esquecer teu padroeiro, e, na hora da morte, bendirás o dia em que abraçaste esta prática.

XIX. A SANTA MISSA É O MAIOR BEM DOS FIÉIS
Os Santos Padres e os autores de obras religiosas falam, tantas vezes e com tanta abundância, sobre a utilidade da santa Missa, que é impossível resumi-los; não citaremos, pois, senão alguns textos.
São Lourenço Justiniano diz: "Nenhuma língua humana poderá exprimir os frutos de graças e bênçãos que atrai o oferecimento do santo Sacrifício da Missa. O pecador aí acha a reconciliação com Deus, o justo uma justificação mais ampla; as virtudes aumentam, os pecados são perdoados, os vícios extirpados, os méritos multiplicados, os embustes do demônio descobertos" (Lib. de obedientia).
O Padre Antônio Molina, religioso cartucho, deixou-nos em seus escritos expressões muito próprias para inflamar o coração de um grande amor pela santa Missa. "Nada, diz ele, é tão vantajoso ao homem nem tão útil às almas do purgatório quanto o santo Sacrifício da Missa. Sua excelência é tal, que todas as outras obras e a prática das melhores virtudes não têm o menor valor, comparadamente" (Tratado sobre a dignidade do sacerdote).
O sábio Fornero, Bispo de Hebron, exprime-se do modo seguinte: "Aquele que, com a alma isenta do pecado mortal, assiste à santa Missa com devoção, adquire maior número de méritos do que se cumprisse, pelo amor de Deus, as obras mais peníveis, as peregrinações mais longínquas. Isto é evidente, visto que as obras pias tiram todo o valor e dignidade de seu objeto; ora, que haverá de mais nobre, mais precioso e mais divino do que o santo Sacrifício da Missa?" (Sermão 23).
Marchand assinala a dignidade de nosso Sacrifício nestes termos: "A Igreja católica não possui homenagem mais perfeita para oferecer a Deus, nada tem de mais agradável para apresentar a Maria Santíssima, aos Anjos e aos Santos; nada mais salutar para os justos e para os pecadores do que o santo Sacrifício da Missa".
No prefácio do missal, a Igreja exorta o sacerdote "a ter uma alta idéia da excelência da santa Missa, e a ficar convencido de que, por uma única oblação, rendemos a Deus onipotente uma homenagem mais agradável do que praticando toda a sorte de virtudes e suportando todos os sofrimentos". - Sabes por quê, caro leitor? - É porque, na santa Missa, Jesus Cristo pratica todas as virtudes e as oferece a seu Pai com a soma dos méritos da paixão, e estes atos de louvor, de amor, de adoração, de reconhecimento que do Coração de Jesus se elevam ao céu, durante sua imolação sobre o altar, ultrapassam, infinitamente, o culto dos Anjos e dos Santos.
Enfim, a prova mais evidente é o testemunho da Igreja que diz: "Reconhecemos que os cristãos não podem fazer cousa mais santa e mais divina do que este estupendo mistério, no qual a Vítima vivificadora, que nos reconcilia com Deus Pai, é oferecida, diariamente, pelas mãos do sacerdote sobre o altar" (Concílio de Trento, sess. 22).
A santa Igreja quer dizer com isto que o ato mais divino que os sacerdotes possam efetuar, é a celebração da santa Missa, e para os fiéis o ato mais santo é ouví-la, ajudá-la, mandá-la celebrar e unir-se, intimamente, às intenções do sacerdote.
Caro leitor, abre os olhos e vê, abre os ouvidos e ouve, abre, sobretudo, o coração e goza da consoladora doutrina de tua Mãe, a santa Igreja. Podes fazer grande número de boas e excelentes obras, nenhuma, porém, será tão salutar, útil e meritória para tua alma quanto a piedosa assistência à santa Missa. Como o sol ultrapassa em brilho e em força, todos os planetas, e é mais útil à terra que todos os outros astros, da mesma maneira, a audição da santa Missa sobrepuja, em dignidade e em méritos, todas as outras ações do dia. E depois de tudo isto considerado, como terás ainda a coragem de assistir ao santo Sacrifício com tantas distrações ou perdê-lo sob ligeiro pretexto?
Se, não obstante, tua preferência fosse pela meditação da Paixão e Morte de Nosso Senhor, exortar-te-íamos a fazê-la durante a santa Missa, pois, estes mistérios aí são renovados. Desejas entreter-te com Jesus Cristo? Ei-lo presente sobre o altar, Homem e Deus. Não julgues que as cerimônias da santa Missa possam perturbar-te a oração; não é distração, mas antes verdadeira atenção, seguir os movimentos do celebrante e lembrar-se da significação das cerimônias.

XX. A SANTA MISSA AUMENTA EM NÓS A DIVINA GRAÇA E A GLÓRIA CELESTE
É uso, nas cidades e nos arrabaldes, haver mercados e feiras, onde se vendem toda a espécie de objetos úteis.
A própria Igreja, e o céu também, têm, diariamente, um mercado. Que oferecem? A graça divina e a glória celeste. Mas são cousas preciosas; onde achar bastantes meios para comprá-las? Não tenhas nenhum receio pois podem-se adquirir gratuitamente. O profeta Isaías no-lo afirma: "Vós que não tendes dinheiro, vinde, aproximai-vos, comprai sem troca" (Is. 55, 1). Com efeito, o Senhor as dá sempre gratuitamente, porém, raras vezes, com tanta abundância como na santa Missa, o que provaremos neste capítulo.
Em primeiro lugar, porém, devemos compreender bem o que é a graça.
A graça é um dom, um socorro sobrenatural que Deus nos concede em virtude dos méritos de Jesus Cristo. Distinguem-se duas espécies de graça: a "santificante" e a "atual".
A graça "santificante" é um estado de alma que nos torna justos aos olhos de Deus e nos dá o direito de herdar os bens eternos. Esta graça, elevando-nos acima da nossa própria natureza, nos torna participantes da natureza divina. Segundo o Concílio de Trento, não é somente "a remissão de nossos pecados com favor sensível da bondade de Deus", porém "um estado divino, uma luz brilhante, que nos embeleza a alma", a qual permanece neste feliz estado até que percamos a graça pelo pecado mortal.
A graça "atual" é um socorro passageiro, pelo qual Deus ilumina-nos o entendimento e comove-nos a vontade, para evitar o mal e fazer o bem. Se nossa alma está morta, a graça atual ajuda a recuperar a graça santificante; se, pelo contrário, está na amizade de Deus, a graça atual, ajudando-nos a fazer boas obras, aumenta, de mais a mais, esta amizade divina.
São Tomás de Aquino ensina que "a graça concedida a uma alma vale mais que o mundo inteiro e tudo quanto encerra". O próprio céu com o seu esplendor não lhe pode ser comparado.
Grandiosos são os efeitos da graça de Deus: reveste, em primeiro lugar, a alma de uma beleza sem igual. Comparando com este esplendor o sol, as estrelas, as flores, parecem embaciadas, descoradas, sem encantos. Se te fosse dado vê uma alma em estado de graça, tudo o que então tivesse algum brilho para ti, aparecer-te-ia, depois, sem encanto, segundo a palavra do Bem-aventurado Blósio: "Se a beleza de uma alma em estado de graça pudesse ser contemplada, ficaríamos arrebatados".
Em segundo lugar, a graça é o laço da caridade entre Deus e o homem. Por ela o Criador e a criatura tornam-se, um para a outra, ternos e confiantes amigos, segundo a palavra de Jesus Cristo: "Não vos chamarei mais servos, e, sim, amigos" (Jo. 15, 15).
Ora, que há de maior, de mais excelente do que ser chamado amigo de Jesus Cristo e sê-lo realmente? Esta dignidade ultrapassa a natureza humana, porque tudo serve ao Senhor e nada existe que não esteja sob seu domínio. É por isso que Deus eleva os servos a uma dignidade sobrenatural, chamando-os seus amigos e tratando-os como tais. E quando, por nossa infelicidade, pelo pecado, quebramos o laço desta terna amizade, Deus não se afasta inteiramente, fica esperando à porta de nossa alma, bate docemente e pede para entrar: "Eis que estou à porta e bato: se alguém me ouvir a voz e me abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo" (Apoc. 3, 20).
Enfim, terceiro, a alma santificada é de tal modo enobrecida, que se torna a própria filha de Deus. Que honra para o filho de um mendigo ser adotado por um príncipe! Que honra infinitamente maior sê-lo pelo soberano Senhor!
A este pensamento São João exclama como em êxtase: "Considerai, o amor que nos mostrou o Pai foi tal que chegamos a ser chamados filhos de Deus e o somos" (I Jo. 3, 1). E São Paulo acrescenta: "Se somos filhos, também somos herdeiros, verdadeiramente, herdeiros de Deus, e coerdeiros de Cristo" (Rom. 8, 17).
Ser herdeiro de Deus! que sorte, que glória! Nada poderia fazer-nos melhor compreender a excelência da graça desta adoção divina, que é, ao mesmo tempo, a prova manifesta do amor infinito de Deus por suas pobres criaturas.
Ora, esta graça santificante é, sem cessar, aumentada pela nossa correspondência à graça atual, pela qual Deus orna a alma de virtudes, de piedade, cumula-a de consolações, inspira-lhe santos desejos, concede-lhe a alegria espiritual, protege-a, fortifica-a, governa-a, une-se-lhe, enfim estreitamente e lhe dá tudo o que contribui para a vida e a piedade.
Estas explicações ensinar-te-ão a conhecer o valor infinito da graça.
Agora provaremos, até a evidência, primeiro, que a santa Missa aumenta poderosamente a graça, depois, que nos aumenta a glória futura, e finalmente, insistiremos sobre a Comunhão espiritual como sobre uma parte da santa Missa muito própria para enriquecer-nos a alma de novas graças.
Um piedoso autor dizia: "Não somente o sacerdote, mas também os que mandam dizer a Missa ou a assistem, podem, conforme sua piedade, merecer um acréscimo de graça ou de glória, e este benefício lhe é abonado em virtude de sua cooperação ao santo Sacrifício.
O sacerdote é o primeiro beneficiado; os que mandam dizer a Missa, por si ou por outrem, tiram igualmente os preciosos frutos e um aumento de graças, se estão na amizade de Deus. Finalmente, os assistentes têm parte, não somente pela devoção para com o santo Sacrifício, como também em recompensa das virtudes múltiplas que exercem; assistindo-a, renovam, no coração, a dor de haver pecado, cada vez que batem no peito; exercem a fé, reconhecendo a presença real de Jesus na santa Hóstia e sua imolação pelos pecados dos homens. Esta crença é o fundamento de nossa salvação. Além da fé, produzem ainda atos de adoração interior e, se bem que estes sentimentos sejam devidos a Nosso Senhor, contudo nosso bom Mestre não os julga menos agradáveis e neles se compraz particularmente.
Se, na elevação da Hóstia e do Cálice, ofereces este dom divino ao Pai eterno, fazes um ato de grande merecimento e, se oras pelos vivos e pelos mortos, acrescentas um ato de caridade; finalmente, se participas do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo, ao menos pela Comunhão espiritual, mereces graças particulares.
Além disso, por causa do desprezo dos hereges pelo divino Sacrifício do Altar que consideram idolatria, Deus olha, amorosamente, para os que reparam estes insultos por sua piedosa assistência. Os Santos Padres falam, freqüentemente, nas recompensas especiais, concedidas a este ato de reparação. São Cirilo diz: "Os dons espirituais serão, abundantemente, distribuídos aos que assistirem à santa Missa". São Cipriano nota por sua vez: "O pão sobrenatural e o cálice consagrado contribuem para a vida e a salvação do homem". Também o Papa Inocêncio III afirma: "Pela eficácia do santo Sacrifício, todas as virtudes nos são aumentadas e os frutos da graça nos são profusamente distribuídos". São Máximo, exorta aos cristãos "a não desprezarem a santa Missa, porque as graças do Espírito Santo nela são comunicadas aos assistentes".
Citamos ainda o testemunho de Osório: "Deus Padre vos dá, na santa Missa, seu Filho único, em quem reside, unida à humanidade, a plenitude da divindade e onde se acham ocultos todos os tesouros da sabedoria. Dando-nos seu Filho, dá-nos tudo".
Sim, dá-nos Jesus com seus méritos, suas satisfações, seu corpo e sua alma. Que poderia dar mais? E que meio mais cômodo poderia inventar, para permitir-nos participar destes tesouros infinitos? Certamente, se tua alma está na indigência, deves, unicamente, ao teu imperdoável torpor, à tua preguiça espiritual.
Oh delicioso e incompreensível dom da glória celeste para a qual fomos criados e pela qual nosso coração suspira ardentemente! Como poderemos tratar de aumentá-la, visto que o Apóstolo exclama: "Os olhos não viram, nem o ouvido, nem jamais veio à mente do homem, o que Deus preparou para aqueles que o amam!" (Cor. 2, 9). A santa Igreja ensina, é verdade, que as boas obras aumentam a graça e a glória futura, porém não indica o grau desta glória.
Contentemo-nos, pois, com as palavras de Nosso Senhor a Santa Gertrudes: "O cristão aumenta os méritos para a vida eterna cada vez que assiste, devotamente, à santa Missa". É desta recompensa eterna que o Evangelho diz: "Derramar-vos-ão, no seio, uma boa medida, bem cheia e recalcada e transbordante". (Lc. 6, 38).
Efetivamente, na Missa merecemos um novo grau de glória. O santo Sacrifício é como uma escada celeste: cada vez que o fiel assiste, sobe um degrau e torna-se mais belo, mais resplandecente, mais glorioso, mais estimável aos olhos de Deus e dos Santos. Cada vez que assistes à Missa, o céu o registra e te assegura um grau de glória mais elevado. Esta glória pode ser roubada pelo pecado mortal, mas, pela extrema bondade de Deus, ela te será restituída após uma humilde confissão. Que glória, que riqueza, que felicidade te esperam lá em cima, se todos os dias assistires ao santo Sacrifício!
"Aquilo que de tribulação nos vem no presente, momentâneo e leve, produz em nós, de modo incomparável e maravilhoso, um peso eterno de glória". Grava, cristão, estas palavras no coração, e convence-te de que, se o Apóstolo promete tão bela recompensa aos sofrimentos momentâneos, Deus reserva graças muito mais insignes aos fiéis que assistem à santa Missa, porque a esta prática ligam-se uma multidão de pequenas mortificações, e bem as conheces. A igreja acha-se afastada de tua casa; é necessário levantar-se mais cedo; o caminho é mau e perigoso no inverno, o vento frio sopra-te no rosto; no verão, o sol dardeja sobre ti os ardentes raios; depois, o ofício é, algumas vezes longo, o fervor desaparece, um trabalho urgente te espera, um lucro te escapa. Mas, coragem! Na santa Missa, há tantos títulos de glória, tantos tesouros para o céu!
Depois de haver declarado ser o desejo da santa Igreja que todos os fiéis fizessem a santa Comunhão na Missa que assistem, o santo Concílio de Trento recomenda, instantemente, aos que se reconhecem indignos da recepção da Eucaristia, fazer, pelo menos, a Comunhão espiritual que consiste no ardente desejo de receber Jesus Cristo. Esta prática não seria tão recomendada, se não fosse proveitosíssima às nossas almas e um dos principais meios de aumentar-nos a graça divina e a glória celeste.
Quando Jesus Cristo estava na terra, fez muitas curas pela imposição das mãos; a muitos, porém, restituiu a saúde de longe, sem estar presente, como, por exemplo, à filha da Cananéia e ao servo do centurião. A infinita generosidade de Nosso Senhor não se limita às almas que se aproximam dignamente de seu Sacramento de amor, estende-se também as que não podem recebê-lo sacramentalmente. Não diz ele: "Eu sou o pão da vida; o que vem a mim não terá mais fome, e o que crê em mim, não terá mais sede"? Ir a Jesus é crer nele e amá-lo. Quem for a ele deste modo será saciado. Jesus Cristo não ligou sua graça à santa Comunhão, de forma que não possa concedê-la sem a recepção do Sacramento. Uma Comunhão espiritual, feita com ardentes desejos, produz-nos mais graças que uma Comunhão sacramental feita sem fervor. A intensidade de nossos desejos é a medida da graça que nos vem pela Comunhão espiritual.
Mas, como fazer para bem comungar espiritualmente? O sábio Fornero, bispo de Hebron, no-lo ensina: "Todos os que ouvem a santa Missa com boas disposições, são nutridos, de maneira mística, com o corpo de Jesus Cristo. A virtude da santa Missa é tão grande que basta unir-se espiritualmente ao sacerdote, para participar com ele do fruto do Sacrifício" (Sermão 83). - Esta doutrina é muito consoladora, para os que desejam fazer a Comunhão espiritual e não sabem fazê-la. Basta dizer: Uno minha intenção com a do sacerdote, e desejo, comungando com ele, participar do santo Sacrifício.
"Assim como os nossos membros que não comem, acrescenta o bispo de Hebron, nutrem-se tão bem como a boca, da mesma maneira, os que assistem à santa Missa nutrem-se, espiritualmente, por intermédio do sacerdote, sem comungar realmente. Também é justo que o que está em espírito com o celebrante à mesa do Senhor, seja nutrido em espírito com ele. Se os convidados de um rei não saem com fome da sala do festim, como nosso divino Salvador deixaria ir embora, sem ficarem saciados, os que vieram adorá-lo na santa Missa!"
A santa Missa; a grande ceia do Senhor; aí, cada um recebe sua parte a não ser que feche, obstinadamente, a boca de sua alma diante da mão de Jesus Cristo, que lhe oferece o Corpo em alimento.
A Comunhão espiritual é, portanto, santa e salutar. A santa Igreja diz expressamente: "Aqueles que, pelo desejo, comem deste pão celeste, sentem-lhe o fruto e a utilidade, em virtude da fé viva que a caridade torna fecunda" (Conc. de Trento, sessão 13).

XXI. A SANTA MISSA É A ESPERANÇA SEGURA DOS MORIBUNDOS
Somente quando se experimentam os horrores da morte, se pode saber quanto é amarga; não obstante, aprendemos a conhecê-la um pouco, cada vez que assistimos a agonia de um de nossos irmãos. Então sentimos quanto Aristóteles, grande sábio da antiga Grécia, tinha razão em dizer: "Entre todas as coisas horrorosas, a mais horrorosa é a morte".
Na verdade é, não somente porque é a separação de nossa alma do nosso corpo, mas, principalmente porque é a porta da eternidade e nos lança diante do justo tribunal de Deus. A viva representação destas duas cousas terríveis inspira ao moribundo um tal terror, que o coração lhe treme e um suor frio lhe orvalha a fronte.
Que fazer em semelhante agonia? Como consolar esta alma? Como encorajá-la em que segurança a devemos pôr, a fim de que o demônio não a arraste ao desespero? Ah!, que se lance no seio da infinita misericórdia de Deus, e sua esperança não será baldada.
São Gregório nos diz: "Aquele que fez tudo quanto pode, deve confiar na divina Misericórdia, porque ela não o abandonará; o que, ao contrário, mostrou-se negligente, não terá razão de confiar nela, pois enganar-se-ia". - Mas, onde está a alma que foi sempre, perfeitamente, fiel? Haverá uma sobre mil? Todos, tais como somos, não poderíamos viver melhor, se quiséssemos?
Com que pode contar o moribundo na última hora? Afirmamos que não há para ele mais legítimo motivo de esperar do que a santa Missa, se, durante a vida, amou-a e ouviu-a devota e assiduamente. O profeta David confirma esta crença: "Oferecei sacrifícios de justiça e esperai no Senhor" (Sal. 4, 6).
Este sacrifício não é outro senão a santa Missa, pela qual nos desobrigamos com a divina Justiça, vantagem que não tinham os sacrifícios da antiga Lei. Eis porque não se podia, propriamente falando, chamá-los sacrifícios de justiça. David não se dirige, com essa exortação, aos sacerdotes judeus, porém a todos os cristãos e aos sacerdotes católicos, para que ponham todo o zelo na celebração da santa Missa, a fim de aplacar a cólera de Deus e apagar a pena ligada ao pecado.
Tudo isto é tão justo que o salmo conclui dizendo: "O coração em paz, por causa do sacrifício, dormirei meu último sono e repousarei para a eternidade porque me tendes, Senhor, fortalecido nesta esperança".
Fala em nome do cristão moribundo, indicando-nos com o que devemos contar, com mais certeza, na hora da morte. A santa Igreja assim o compreende por estas palavras do Ofício dos mortos: "Requiescant in pace - Senhor, concedei-lhes o repouso" - Deste modo, aquele que, durante a vida, ofereceu, com o sacerdote, o "sacrifício de justiça", pode esperar firmemente na misericórdia divina e dizer com David, no momento da morte: Senhor, cheio de confiança no santo Sacrifício, dormirei em paz e me deitarei no túmulo até que raia o grande dia da eternidade. Não temo a morte eterna, porque em vós lancei a âncora da minha esperança. Não, Senhor, não posso crer que me haveis de repelir, visto que Vos tenho oferecido, freqüentemente, o "Sacrifício da Justiça", cuja virtude purificadora e santificante há de ter apagado meus pecados e satisfeito as exigências de vossa Justiça. Eis minha doce esperança: sossegado por ela, já não receio comparecer ao vosso rigoroso tribunal.
É de fé que os méritos da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo constituem as bases mais legítimas das nossas esperanças. Ora, na santa Missa, estes méritos são distribuídos a todos os assistentes em estado de graça. Apoiar-se, cheio de confiança, sobre a santa Missa, é, pois, apoiar-se sobre os méritos do próprio Salvador.
Poderia alguém objetar: Todo o moribundo, qualquer que seja, pode contar com a Paixão e Morte do divino Salvador, visto que sofreu por todos, a fim de satisfazer por todos os pecados e preservar-nos da condenação eterna.
Respondemos: De que servirão à nossa alma os frutos da Paixão e Morte de Jesus Cristo, se não aplicados? E, como revestí-la, deles, mais seguramente, senão pela santa Missa, visto que a santa Igreja ensina "que os frutos do Sacrifício cruento da Cruz são distribuídos, da maneira mais abundante, pelo Sacrifício não cruento da santa Missa, e esta foi instituída, para que a virtude salutar do Sacrifício da Cruz fosse aplicada em remissão de nossos pecados quotidianos" (Conc. Trento, Sess. 22).
O cristão que espera desta maneira, não se firma, nem em si, nem nos próprios méritos, porém em Jesus Cristo, nas orações, nos méritos do divino Salvador, dos quais participa no santo Sacrifício do Altar; apóia-se sobre o dom perfeitíssimo que, pelas mãos do sacerdote, ofereceu ao Pai celeste; apóia-se sobre o precioso Sangue que jorra do altar sobre sua alma; confia na oração de Jesus, em que pode e deve confiar.
Esta confiança é tão infalível que Sanchez diz: "A santa Missa nos autoriza a uma esperança da vida eterna tão segura que, para crer, nos é precisa a graça da fé". - Isto compreenderam bem os Santos e, por isso, preparavam-se para a morte pela devota celebração, ou audição da santa Missa.
Fortificada pelo pensamento da santa Missa, a alma deixa este mundo e vai apresentar-se no tribunal de Deus.
Achar-se em presença do justo Juiz! Homem altivo, qual será a tua situação? Que postura terás então?
Nossos pecados se mostrarão sob formas horríveis; nossas boas ações ali também estarão, para nos animar e, se tivermos ouvido muitas Missas, virão sob figuras encantadoras que, pela agradável presença, nos dissiparão os terrores. "Vamos acompanhar-te ao tribunal do justo Juiz, - dirão - nós, as missas que, fielmente, assististe; lá te desculparemos; testemunharemos tua piedade para o santo Sacrifício; diremos quantos pecados apagaste, quantas dívidas saldaste. Tem coragem! Acalmaremos a cólera do justo Juiz e te obteremos o perdão"
Que consolação para tua alma opressa, achar amigos tão fiéis, e tão poderosos advogados!

 

FONTE: http://agnusdei.50webs.com