13/07/2013

Valerá a pena?


Gustavo Corção

TUDO o que venho observando nos caprichos da atualidade, no mundo e na Igreja, leva-me dia a dia, irresistivelmente, à conclusão da mais completa inutilidade de minha obstinação. Ou de minha obsessão. Sim, ao contrário do famoso “homem moderno”, que se habitua a tudo, apelidando de evolucionismo essa passividade por estar sempre disposto a aceitar e a acostumar-se, até quererem todos se acostumar a alguma nova imposição dos acasos — eu vivo fora da época porque sou vagaroso e obsessivo. Para habituar-me ao que fizeram na Igreja, eu precisaria de mais um século de reflexão e de exame de pormenores. Ainda ontem um amigo que me julga em risco de pecar gravemente contra a caridade, nos adjetivos e advérbios, veio prevenir-me de que ando com a obsessão do que escreve Tristão de Athayde. Talvez tivesse razão o amigo que me desaconselhava esses
ataques por não os merecer o atacado. Efetivamente sempre achei pouco interessante a literatura de Tristão de Athayde, mas o caso é que o Dr. Alceu Amoroso Lima foi um famoso líder católico de quem recebi favores que não se esquecem; e acontece que não consigo habituar-me às transformações e às frivolidades do personagem.
SERÁ MEU o defeito, se a regra geral imposta pelo Destino de nosso tempo é esse imperativo de habituar-se a tudo. Com mais uns três séculos eu me habituaria ao teilhardismo do ilustre ex-líder-católico; mas cinco ou seis anos é pouco! é muito pouco!  
LEMBRAR-SE-Á acaso o leitor de como se celebrava uma missa dez anos atrás? Não preciso ir até Pio V nem até Pio X. Por uma singular coincidência esses dois fantasmas da verdadeira tradição litúrgica foram ambos canonizados. Mas não foram as idéias dos dois últimos papas santos que prevaleceram. Alguma coisa levou os homens da Igreja a desconfiar da coisa mais subversiva do mundo — a santidade.
NÃO PRECISO lembrar-me de exemplos tão altos e tão distantes para gemer em minha obsessão-recusa daquela outra espécie de recusa que marca o mundo moderno. Mais perto de nós, quatro anos atrás, li num jornal uma coisa chamada Institutio Generalis que vinha explicar o que era a Cena Dominica (sive Missa) do século XX acometido de uma trombose. Não entendi logo e, desnorteado pela inflação de palavras vindas de Roma, nem me passou pela mente a idéia de vir de lá o primor que apresentava a missa de pernas para o ar e o padre, sim, o padre como presidente. Pensei que a obra-prima vinha da CNBB ou do “Cavalo de Tróia”. Sem nenhuma intenção de ser “corajoso” ou desrespeitoso, não pude conter o meu juste courroux diante das bobagens eclesiológicas escritas em tal documento, e especialmente no “ponto 7”, que a seguir se tornou famoso no mundo inteiro. Sem perder profusa argumentação diante de tão triste texto, soltei apenas algumas exclamações sucintas: Heresia! tolice! disparate! Eu costumo ler três ou quatro vezes o que escrevo; e às vezes chego a escrever quatro ou sete vezes, sem conseguir satisfazer-me. Às vezes Deus me concede o descanso de me divertir com algum achado, mas em geral é moderado o entusiasmo que tenho por esse amigo de 77 anos que ora me aborrece, ora me faz companhia. Naquele dia não precisei reler três vezes. Era evidente a asneira e ostensiva a injúria feita à Cruz de Nosso Senhor.
DIAS depois escreveram — creio que até um Bispo se moveu — estranhando meus impropérios contra um papel vindo de Roma. O fato de vir de Roma, “capeado” não sei como e assinado não sei por quem, não modificava nem salvava o texto, que, evidentemente, pregava “outra” missa, e portanto “outro evangelho”. São Paulo, no primeiro capítulo aos Gálatas, aconselhava seus discípulos a dizer “anátema!”. Eu disse: asneira! Horrorizaram-se que eu pretendesse saber mais do que o Magistério da Igreja. Defendi-me com facilidade: não! eu não pretendi saber mais do que ninguém em Roma ou Avignon. Minha modesta pretensão resumia-se em gabar-me de saber distinguir a voz de minha Mãe dos relinchos do Cavalo de Tróia.
DEFENDERAM o texto, atacaram-me, explicaram o texto, arrasaram-me; mas, passados alguns meses, o mundo inteiro clamava contra o tal ponto 7, e ao cabo de mais alguns meses o general cartaginês que invadira Roma (Anibal Bugnigni) voltou ao texto já impresso e solenemente distribuído pelo Orbe Católico, e remendou-o. O mundo católico contentou-se com o remendo da palavra “sacrifício” num contexto pesado, grosso e evidentemente inspirado do mesmo espírito que põe a missa de pernas para o ar. Pensou que fora atendido, e contentou-se. Os outros, que me criticaram e me lançaram em rosto o desrespeito pela papelada que vinha “capeada” de Roma, não acharam um minuto de vagar e de decência para me dar um pequeno telefonema congratulatório. Hoje, habituaram-se todos ao desrespeito praticado contra o SANGUE do nosso Salvador. E o novo Missal, além do texto litúrgico remexido, será encadernado junto com a mesma obra-prima de Monsenhor Bugnigni, que difunde por todo o mundo católico “outra” doutrina.
TODOS se habituaram. E eu começo a desconfiar da inutilidade total de meu ridículo esforço. É claro que nunca duvidei um só instante da minha inutilidade para o serviço de Deus. Esta certeza é clássica, ortodoxa e tranqüila. Sem sombra de amargura prostro-me diante do Pai a oferecer-lhe meu nada. Mas, a par dessa atitude fundamental, sempre tive a vocação de professor. Animal — professor. E por isso sempre alimentei a ilusão legítima e inofensiva de que, no nível dos homens, para a eletrônica ou para o catecismo, eu teria alguma utilidade. Precisariam de mim. Fiz meia dúzia de coisas. Escrevi livros. Dei aulas. Dou aulas menores e avulsas até por telefone. É uma obsessão, como diz o amigo que ontem se queixava de não me habituar eu ao “fenômeno” Alceu.
CÁ me vejo, cavaleiro da Triste Figura, no fundo de minha caverna, mais magro, mais velho, mais cansado. Lá fora o céu é azul, as árvores são verdes e o vento passa devagar. Tudo no mundo parece afeito ao que é, habituado, tranqüilo. O próprio mundo do homem daqui me parece tranqüilo e afeito a seu mal-estar. Só eu me consumo a ruminar o que fizeram — na Igreja da qual obstinadamente guardo uma lembrança maravilhosa; mas começo a desconfiar da inutilidade total deste ofício. “Quem? Quem, se eu gritar, me ouvirá entre as hierarquias dos anjos?”
(O GLOBO 28/03/74)


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