04/09/2013

A defesa das inquisições

Por Jean-Claude Dupuis*


O emblema da Inquisição, rodeada
com a citação da Sagrada Escritura:
“Levantai-vos, ó Deus, defendei a vossa causa”
(Sl. 73:22).


Os alegados horrores da Inquisição geralmente encabeçam a lista dos argumentos dos inimigos da Igreja. Voltaire falava sobre “aquele tribunal sanguinário, aquelas exposições pavorosas de poder monacal[1]. A lenda negra da Inquisição impregnou nossas mentes a um ponto tal que, hoje, a maioria dos Católicos é incapaz de defender esta fase da história da Igreja. Na melhor das hipóteses, a justificam invocando os usos e costumes do período, que seriam muito mais bárbaros do que aqueles da nossa era “iluminada”. Mais freqüentemente, fazem coro com os anticlericais no ataque ao Tribunal do Santo Ofício.
Em sua carta sobre o Jubileu do Ano 2000, o próprio Santo Padre denuncia
“Outro capítulo doloroso, sobre o qual os filhos da Igreja não podem deixar de tornar com espírito aberto ao arrependimento, é a condescendência manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de intolerância ou até mesmo de violência no serviço à verdade. (§35)”[2]. (grifo do documento)

No entanto, os santos que viveram na era da Inquisição nunca a criticaram, exceto para reclamar que ela não reprimia a heresia com a severidade suficiente. O Santo Ofício escrutinou os escritos de Santa Teresa d`Ávila para checar se seria possivelmente o caso de uma falsa mística, porque havia naquela época muitos falsos místicos entre os Alumbrados[3] da Espanha. Longe de vê-la como um sistema de intolerância, a Santa depositou toda sua confiança no julgamento do tribunal, que, de fato, não encontrou qualquer heresia em seus escritos. Agora, os santos nunca tiveram receio em censurar os abusos do clero: na verdade esta é uma de suas funções principais. Como alguém pode explicar o fato de que os santos nada disseram contra a Inquisição? Como alguém pode explicar que a Igreja tenha canonizado não menos que quatro Grandes Inquisidores: Pedro Mártir (1252), João Capistrano (1456), Pedro Arbues (1485) e Pio V (1572)? São Domingos foi, na verdade, um associado do tribunal do legado da Inquisição.

Na realidade, críticas à Inquisição por autores Católicos só vieram aparecer a partir do século dezenove, e nesta época apenas entre os católicos liberais, depois que os ultramontinos (clérigos que criam fortemente e apoiavam uma política papal mais vigorosa em assuntos eclesiásticos e políticos) estavam apoiando vigorosamente o tribunal[4]. Antes da Revolução Francesa, o discurso antiinquisitorial era característico dos Protestantes. O historiador Jean Dumont, que é o maior apologista da Inquisição na atualidade[5], aponta que as gravuras do século 16, que ilustram cenas dos autos-de-fé (geralmente públicos, nos quais aqueles submetidos à Inquisição tinham suas sentenças pronunciadas) eram, costumeiramente, pintados na empena[6] das construções.

Pintura por Fr. Angélico.  São Domingos entregando um livro contendo uma explicação da verdadeira fé para um emissário dos Albigenses, e, à direita, o miraculoso livro saindo das chamas as quais os heréticos o tinham relegado.

Naquela época, este tipo de arquitetura era encontrada nos Países Baixos e no vale do Reno, mas não na Espanha. Este detalhe revela a origem protestante dessas gravuras. Com efeito, a lenda negra da Inquisição é produto da propaganda protestante, que foi passado ao século 18 pela filosofia do “Iluminismo”, ao século 19 pela maçonaria anticlerical, e ao século 20 pela “Democracia Cristã”.

Contudo, os estudos históricos mais sérios têm atualmente reconhecido que a Inquisição foi um tribunal honesto, que desejava converter os heréticos mais do que puni-los, que condenou relativamente poucas pessoas à fogueira, e que empregou tortura em casos excepcionais[7]. No entanto, o mito antiinquisitorial ainda circula na opinião pública. Voltaire disse que uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade. Mas a razão fundamental para a persistência do mito é de outra natureza. Se trabalhará em vão para provar que a Inquisição não era tão terrível quanto se quer crer. Não se convencerá a mente moderna, uma vez que é o princípio da intolerância religiosa como tal que é inaceitável hoje em dia. (grifo do autor) Por conseguinte, para se compreender o evento histórico da Inquisição, deve-se primeiramente entender a doutrina tradicional da Igreja sobre a liberdade religiosa.

O Poder do Constrangimento Religioso

O Concílio Vaticano II proclamou o princípio de liberdade religiosa:
Esta liberdade consiste em que todos os homens devem estar imunes de coerção, tanto por parte de indivíduos como de grupos sociais e de qualquer poder humano, e isto de tal maneira que, em matéria religiosa, nem se obrigue a ninguém a intentar contra sua consciência, nem se a impeça que atue conforme ela em privado e em público, só ou associado com outros, (Dignitatis Humanae, art. 2).
Em oposição a esta doutrina, fica evidente que o próprio princípio da Inquisição, que fez da heresia um crime sujeito a lei comum, só poderia ser rejeitado.
No entanto, o princípio de liberdade religiosa está em completa ruptura com a tradição da Igreja. O Syllabus de Erros (1864) condena (grifo do autor) as seguintes proposições:
§24) A Igreja não tem poder de empregar a força nem poder algum temporal, direto ou indireto.
§77) Na nossa época já não é útil que a Religião Católica seja tida como a única Religião do Estado, com exclusão de quaisquer outros cultos.
§79) É falso que a liberdade civil de todos os cultos e o pleno poder concedido a todos de manifestarem clara e publicamente as suas opiniões e pensamentos produza corrupção dos costumes e dos espíritos dos povos, como contribua para a propagação da peste do Indiferentismo.

A doutrina do Syllabus, que reconheceu para a Igreja e para o Estado o poder de constrangimento em matéria religiosa, estava de acordo com a tradição Católica. O Papa Leão X (1513 – 1521) condenou especificamente as proposições de Martinho Lutero que afirmavam que a Igreja não tinha o direito de queimar os heréticos. 

Belarmino e Suarez também defenderam o direito da Igreja de impor a pena de morte, sob a condição de que a sentença fosse executada pelo poder secular, isto é, pelo Estado[8].  São Tomás de Aquino apoiou o uso do constrangimento, mesmo o físico, para combater a heresia. Santo Agostinho apelou à autoridade Imperial (Romana) para suprimir o cisma donatista pela força. O Antigo Testamento punia com a morte idólatras e blasfemadores.

O poder de constrangimento em questões religiosas assenta-se sobre o princípio dos deveres do Estado voltados para a religião autêntica. A lei divina não se aplica apenas aos indivíduos; ela deve incluir toda a vida social. O Cardial Ottaviani sumariou as conseqüências desta doutrina[9]:
1) A profissão social, e não meramente privada, da religião das pessoas; 2) A legislação inspirada pelo conceito pleno de associação em Cristo; 3) A defesa do patrimônio religioso das pessoas, contra a todo o assalto que tenha o objetivo de  privá-las da riqueza de sua fé e de sua paz religiosa. (Duties of the Catholic State in Regard to Religion, C. S. sp., p.7.)

Os partidários da liberdade religiosa sempre invocaram a paciência e a caridade evangélica em oposição a doutrina tradicional da Igreja sobre o dever de intolerância para com a falsa religião. Esta oposição, no entanto, é simplesmente um sofisma. Com toda certeza, nosso Senhor Jesus Cristo era tolerante com o pecador, mas demonstrou uma severidade implacável para com os heréticos de seu tempo, que eram os fariseus. 

Os modernistas evitam citar as passagens do Evangelho que mostram a firmeza divina. Não é a condenação eterna, que é a retribuição por não crer (Mc 16,16), uma desgraça muitíssimo mais pavorosa que a pior punição que um tribunal humano possa impor? São João proíbe mesmo saudar o herético (II Jo 10). São Paulo miraculosamente cega Bar-Jesus, o mágico e falso profeta[10].  São Pedro não hesita em condenar mortalmente Ananias e Safira que roubaram a comunidade (Atos 5, 1-11).

No verdadeiro Evangelho não há nada que se assemelhe a lassidão moral e doutrinal que os modernistas qualificam como “tolerância” ou como “liberdade de consciência”. Cristo era paciente e misericordioso com o pecador arrependido, mas Ele nunca reconheceu qualquer direito ao erro e Ele expôs os obstinados propagadores de erro a condenação pública. A Inquisição adotou uma atitude com relação aos heréticos comparável àquela de nosso Senhor.

A argumentação antiinquisitorial assenta-se também sobre uma confusão entre liberdade de consciência e liberdade religiosa. O ato de fé deve ser livremente consentido, uma vez que constitui indiscutivelmente um ato de amor para com Deus. Um amor forçado não pode ser um amor verdadeiro. Esta é a razão porque a Igreja sempre se opôs a conversão forçada. A famosa imagem de Espinal do monge espanhol que apresenta um crucifixo para um índio enquanto o conquistador ameaça-o com sua espada é ainda um outro fruto da propaganda protestante. Se alguns príncipes ocasionalmente forçaram o batismo de povos conquistados como, por exemplo, Charlemagne fez na Saxônia (por volta de 780), tal foi feito contra a vontade da Igreja.

Mas se a Igreja reconhece a liberdade de consciência do indivíduo no mais íntimo do seu coração, se o indivíduo é livre, correndo perigo a sua salvação, de recusar a fé, não se segue que ele possa propagar seus erros e portanto levar outras almas para o inferno (grifo do autor). Dessa maneira, a Igreja respeita a liberdade de consciência do indivíduo, mas não a liberdade de expressão de falsas doutrinas.
Contudo, enquanto a Igreja nega em princípio de direito a expressão pública de falsas religiões, ela, não necessariamente, as persegue na prática. Com o intuito de evitar um mal maior, como uma guerra civil, a Igreja pode tolerar as seitas. Isto foi o que Henrique IV fez ao promulgar o Edito de Nantes (1598) que garantiu uma certa liberdade para os protestantes na França. Mas esta tolerância não se constituiu um direito. Quando as circunstâncias políticas permitem, o Estado tem o dever de restabelecer os direitos exclusivos do Catolicismo, como Luiz XIV fez quando ele revogou o Edito de Nantes em 1685. Além do mais, o Papa congratulou o “Rei Sol” por ter tomado esta ação.

Naturalmente, a doutrina tradicional Católica sobre a intolerância religiosa é somente aplicável naqueles países onde o Estado é oficialmente Católico. A harmonia entre o sacerdócio e o império é a ordem normal das coisas nas sociedades. Sob este aspecto, a Inquisição era um modelo de acordo entre a Igreja e o Estado, uma vez que o tribunal exercia uma jurisdição mista, tanto religiosa quanto civil.

A idéia central que justifica a Inquisição é que a heresia professada em público é um crime similar ao qualquer outro crime contra a lei comum[11].Sendo a religião o fundamento da moralidade, e a moralidade sendo o fundamento da ordem social, segue-se que a falsificação da fé leva, em última instância, a uma ofensa contra a ordem social. Santo Tomás comparou os heréticos aos falsários, que, durante a Idade Média, eram condenados a fogueira. Portanto, o Estado, como guardião da ordem pública, tinha o dever de combater a heresia. Mas no seu papel de poder temporal, ele não tinha competência para distinguir entre heresia e ortodoxia. Para isto, o Estado tinha que confiar num tribunal eclesiástico.

É bom ter em mente, sobretudo, que a Inquisição não se ocupava com as opiniões pessoais dos heréticos, mas somente com a propagação pública da heresia. A Inquisição realmente não cometeu qualquer ofensa contra a consciência individual, mas agiu somente contra as atividades exteriores dos heréticos.

Para se compreender a lógica da Inquisição, deve-se libertar da mentalidade naturalista peculiar da cultura contemporânea. Nas sociedades cristãs do “Ancien Régime“, a vida sobrenatural era mais importante que a natural. Se era permitido condenar a morte um assassino que matava o corpo, com muito mais razão podia-se condenar a morte o herético que estava levando almas para o inferno, uma vez que a perda da vida eterna é um mal muito maior do que a perda da vida temporal.

Obviamente, a visão do mundo que subjaz a lógica da Inquisição fundamenta-se sobre o princípio da realidade objetiva da verdade e do erro, na certeza da fé Católica, e na crença na condenação eterna. Essas idéias são muito simplesmente incapazes de serem assimiladas pelas mentes modernas encharcadas no relativismo. De fato, um relativista é incapaz de compreender o fenômeno da Inquisição. Ele se escandalizará pela barbaridade das épocas passadas e pelo obscurantismo da Igreja; ele se satisfará em fazer julgamentos inapropriados para as épocas em questão. Mas os historiadores devem tanto entender como explicar. Para fazê-lo, devem sair dos sistemas de pensamento atuais e colocarem-se no estado mental da época que se está estudando[12]. O historiador será então capaz de compreender o fenômeno da Inquisição, e isto o levará quase inevitavelmente, como veremos, a justificar as ações desse tribunal.

Geralmente, se faz a distinção entre dois tipos de Inquisição. Há a Inquisição Medieval (1233 – século 18) e a Inquisição Espanhola (1480 – 1834). Freqüentemente, a primeira é qualificada de Inquisição “pontifícia” e a última de “real”, mas isso não se justifica, uma vez que estes tribunais sempre foram criações articuladas da Igreja e do Estado. 

Foram alguns autores Católicos que, embora bem intencionados, eram pobremente informados, que estabeleceram esta distinção com o intuito de colocar os “horrores” da Inquisição sobre os reis da Espanha, ao invés de sobre os papas[13]. De acordo com eles, houve uma boa Inquisição Medieval que pretendeu apenas proteger a fé, e a cruel Inquisição Espanhola que visava mais reforçar o absolutismo real. Porém, esta distinção não é bem fundamentada. A Inquisição Espanhola não era nem mais violenta ou mais política que a Inquisição Medieval. As duas inquisições são melhores distinguidas, uma da outra, pela natureza de seus inimigos que elas tinham que combater: o Catarismo e os Marranos.

O Perigo Cátaro

O Catarismo se espalhou por toda a Europa entre os séculos 11 e 13. Ele floresceu particularmente em Languedoc (sul da França, daí o nome albigense – oriundo da cidade de Albi – pelo qual a heresia também é designada). A palavra “catar” vem do Grego “katharos” que significa “puro”. Na realidade, catarismo não é propriamente uma heresia cristã, é mais uma outra religião[14]. Sua origem permanece obscura, mas sua doutrina estranhamente aproxima-se das filosofias Gnóstica e Maniquéia que circulavam no Oriente Médio durante o terceiro e o quarto séculos. Observe-se também que a Maçonaria reivindica ser o herdeiro dos mistérios iniciáticos do Catarismo, por intermédio dos Templários.

De acordo com os Cátaros, dois princípios eternos dividiram o universo. O bom que criou o mundo dos espíritos, e o mau que criou o mundo material. O Homem é apenas a junção dois dos princípios. Ele era um anjo caído, emprisionado em um corpo. Sua alma originou-se no bom princípio, mas o seu corpo foi formado do mau princípio. O objetivo do Homem era, portanto, liberar-se da matéria por uma purificação espiritual, que freqüentemente necessitava de uma série de reincarnações.

Como todos os heréticos, os Cátaros reivindicavam que sua doutrina era o Cristianismo verdadeiro. Eles guardavam a terminologia cristã enquanto distorciam a essência dos dogmas. Eles diziam que o Cristo era o mais perfeito dos anjos e que o Espírito Santo era uma criatura inferior ao Filho. Eles puseram em oposição o Antigo Testamento, obra do princípio mal, ao Novo Testamento, obra do bom princípio. Eles negavam a Encarnação, a Paixão e a Ressurreição de Jesus. Eles defendiam que a Redenção fluía do ensinamento evangélico mais do que da morte na cruz.

Os Cátaros diziam que a Igreja era corrupta desde o tempo da doação de Constantino, e rejeitavam todos o sacramentos. Definitivamente, o Catarismo era uma forma de paganismo, com um toque de cristianismo, que se assemelhava ao Budismo em certos pontos.

Sendo o mundo material intrinsecamente mal, a ética cátara condenava todo o contato com a matéria. O casamento e a procriação eram proibidos porque não se deveria colaborar com o trabalho de Satã, que desejava emprisionar as almas em seus corpos. Uma vez que a morte constituía-se em uma liberação, o suicídio era encorajado. Eles empregavam a “endura“, que é a suspensão da alimentação do doente e mesmo algumas vezes das crianças, para acelerar o retorno da alma ao céu. Os Cátaros recusavam-se a jurar sob o pretexto que Deus não deveria ser misturado com os assuntos materiais, e eles condenavam todas as formas de riquezas.
Finalmente, os Cátaros desejavam manter o estado de “desencarnação” similar ao dos faquires (ascetas hindus). Ademais, os Cátaros negavam o direito do Estado de declarar guerra e punir os criminosos.

Obviamente, tal programa não atrairia muitos adeptos, daí o catarismo ter estabelecido duas classes de fiéis: os “perfeitos” e os crentes simples. Os primeiros, poucos em números, eram os iniciados, que viviam em monastérios e que se conformavam inteiramente à filosofia moral cátara. Os segundos, a vasta maioria, estavam livres de toda a obrigação moral, em questões sexuais e, também, comerciais.

Os Cátaros não estavam sujeitos às normas cristãs que proibiam a usura, e que impunham o princípio do preço justo. Alem disto, ao crente simples lhe era garantida a ida para o céu se, antes de morrer, ele recebesse o “consolamentum“, uma espécie de extrema unção.

Devassidão, contracepção, aborto, eutanásia, suicídio, capitalismo brutal, um intenso materialismo e salvação para todos; é estarrecedor perceber a que grau a moralidade cátara assemelha-se ao liberalismo dos dias atuais.

Os Cátaros, portanto, ensinavam uma moralidade de dois graus: ascetismo para uma minoria e libertinagem para a maioria, com, além disso, a garantia da salvação eterna a um baixo custo. Agora se pode compreender o que fez de sua doutrina ser tão bem sucedida.

No entanto, a vasta maioria das pessoas mantiveram-se fiéis ao Catolicismo. Os Cátaros eram recrutados essencialmente entre os comerciantes das cidades. Eles não eram muito numerosos, talvez 5% a 10% da população de Languedoc, mas eram ricos e poderosos. Alguns deles praticavam a usura. O conde de Toulouse (França), o mais importante lorde de Languedoc, aderiu à causa dos Cátaros.

Portanto, os Cátaros não eram um pobre rebanho indefeso, vítimas de uma Inquisição fanática. Ao contrário, eles formavam uma seita poderosa e arrogante que propagava uma doutrina imoral, oprimiam os camponeses católicos e perseguiam os sacerdotes. Eles inclusive conseguiram assassinar o Grande Inquisidor, São Pedro Mártir (também conhecido como São Pedro de Verona).

A Igreja demonstrou grande paciência antes de tomar medidas contra o perigo Cátaro. As heresias albigenses foram condenadas pelo Concílio de Toulouse – de âmbito regional – em 1119, mas, até 1179, Roma ficou satisfeita com o envio de pregadores a Languedoc, homens como São Bernardo e São Domingos. Estas missões tiveram pequeno sucesso.

Em 1179, o Terceiro Concílio Lateranense pediu as autoridades civis que interviessem. O rei da França, o rei da Inglaterra e o Imperador da Alemanha já haviam iniciado, por iniciativa própria, a supressão do catarismo, que ameaçava a ordem social devido as suas perversas doutrinas sobre a família e juramentos.

Lembremo-nos que o sistema feudal assentava-se sobre o juramento de um homem para com o outro. A negação do valor do juramento era tão grave para a sociedade medieval, como seria a negação da autoridade da lei na sociedade moderna.

Além disso, os pregadores Cátaros estavam encorajando a anarquia e comandando bandos armados, que eram chamados por diferentes nomes em diferentes países (“cotereaux“, “routiers“, “patarins“, etc). Estes bandos estavam saqueando as igrejas, massacrando os sacerdotes e profanando a Eucaristia. Os Cátaros eram tão violentos e sacrílegos quanto os protestantes do século 16 ou os revolucionários de 1793, Em 1177, o rei da França, Filipe Augusto, teve que exterminar um bando de 7000 destes loucos, e o bispo de Limoges teve que marchar contra 2000 anarquistas. Cenas idênticas ocorriam na Alemanha e na Itália. Em 1145, Arnoldo de Brescia e seus “paratins“  conseguiram sitiar Roma e expulsar o papa. Eles proclamaram a república e mantiveram-se no poder por dez anos antes de serem conquistados e condenados a fogueira pelo imperador alemão Frederico Barba Ruiva. O catarismo provocou desordem social por toda a Europa e reinou em Languedoc.

Em 1208, os homens de Raimundo VI, conde de Toulouse, assassinaram o legado do papa, o monge Pedro de Castelnau. Finalmente, o Papa Inocêncio III decidiu chamar a Cruzada Albigense. Ela foi dirigida por franceses do norte sob o comando de Simon de Montfort. Os Cátaros resistiram por quatro anos (1209 – 1213) e levantaram armas novamente em 1221, o que mostra como eles eram fortes. O seu último reduto fortificado, Montségur, não caiu até 1244. Porém, com tudo isso, o catarismo não desapareceu. Transformou-se em uma sociedade secreta, um pouco ao jeito da Maçonaria.

Como em todas as guerras, a Cruzada Albigense foi ocasião de excessos. A tomada de Béziers (1209) foi um verdadeiro massacre. Foi impossível distinguir os Cátaros dos Católicos entre a população da cidade. O legado pontifício, Arnoldo de Citeaux, teria dito: “Matem a todos, Deus reconhecerá os Seus.”. As palavras provavelmente são apócrifas e podem ser registradas nas panóplias de chavões anticlericais. Porém, elas refletem mesmo assim, um fato indubitável: os Cátaros, que atraíram sobre si, por um longo tempo, o ódio das pessoas por conta de sua imoralidade e prática de usura, corriam o risco de um linchamento geral.

Porém, a Inquisição evitou o massacre distinguindo entre os heréticos e os ortodoxos, entre os líderes e os seguidores, e aplicando punições proporcionais aos diversos graus de heresia.

Por fim, a Inquisição era um trabalho humanitário. Ao punir severamente os líderes, ela poupou a massa dos Cátaros, que eram mais vítimas do que responsáveis pela heresia. Ao por às claras os heréticos que se tornaram um movimento secreto, ela impediu o renascimento do catarismo e de todas as desordens sociais e morais que esta doutrina provocava.

Um historiador, embora hostil à Inquisição, não hesitou em concluir que, na Cruzada Albigense:
“… a causa da ortodoxia [Católica] não era outra que não da civilização e do progresso… se esta crença [catarismo] tivesse recrutado uma maioria de fiéis, resultaria no retorno da Europa para a selvageria dos tempos primitivos.”.” [15]

O Perigo Marrano

Agora, pulemos alguns séculos a frente e cruzemos os Pirineus (montanhas que marcam a fronteira entre a França e a Espanha) com o objetivo de estudar outra ameaça que a Inquisição conseguiu opor-se: o perigo Marrano.

A Espanha Medieval era dividida em vários reinos, Cristãos e Muçulmanos. Em 1469, o casamento de Isabela, rainha de Castela, com Fernão, rei de Aragão, facilitou a união da Espanha e permitiu que a “Reconquista” fosse completada pela tomada de Granada em 1492.

Também existia na Espanha, desde o começo da Idade Média, uma comunidade judaica considerável. As sociedades cristã, judaica e muçulmana não estavam divididas, muito embora suas relações nem sempre fossem harmoniosas. Um grande número de judeus tinha se convertido ao Catolicismo, mas continuavam a praticar o judaísmo em segredo.

Lembremo-nos que o Talmud permite aos judeus fingirem uma conversão com o intuito de evitar a perseguição. Estes pseudocristãos judeus eram chamados de ‘Marranos’.

Ao contrário do que se tem sido levado a acreditar, os Marranos não tinham se convertido sob ameaça, muito embora a Espanha tenha experimentado uma onda de progroms em 1391. Os Marranos estavam procurando se infiltrar na sociedade cristã com o objetivo de controlá-la. Suas estratégias de alianças matrimoniais foram muito eficazes, uma vez que por volta do século 16, a maioria das famílias nobres da Espanha contava com alguns judeus entre seus antepassados. Cervantes fez alusão a este fenômeno de ascensão social. Sancho Pança diz a Dom Quixote: “Eu sou um dos ‘cristãos-velhos’ e, para tornar-me um conde, isto é suficiente…”. Dom Quixote responde: “Isto é realmente excessivo.”[16].

Isabela de Castela esta a ponto de se casar com um rico agiota marrano de nome Pedro Giron, mas Deus não permitiu. O shylock[17] castelhano morreu na estrada que o levava para sua noiva, após ter recusado os sacramentos e blasfemado contra o Santo Nome de Jesus.

Os Marranos não satisfeitos em se infiltrar na nobreza espanhola, eles também se infiltraram na Igreja. Naquela época, fazer uma coisa era o mesmo que fazer a outra, uma vez que os postos mais altos do clero geralmente eram oriundos da nobreza. Alguns padres marranos até ensinavam o Talmud em suas igrejas. O bispo de Segóvia, Juan Arias de Ávila, deu um enterro judaico aos seus pais que abjuraram o cristianismo. O bispo de Calahorra, Pedro d’Aranda, negou a Trindade e a Paixão de Cristo. A Enciclopédia Judaica Castelhana afirma que os Marranos “instintivamente almejavam debilitar o Catolicismo espanhol”.

Na sua Histoire des Marranes (1959), o especialista judeu Cecil Roth escreve:
“A vasta maioria dos “conversos” (um outro nome para os Marranos) trabalhavam insidiosamente por seus próprios interesses dentre os diferentes ramos do corpo político e eclesiástico, condenavam, por muitas vezes abertamente, a doutrina da Igreja, e contaminavam, por sua influência, o corpo inteiro dos fiéis.”

A judaização do catolicismo espanhol sob a influência dos Marranos explica em parte a popularidade de Erasmo, o precursor de Lutero, naquele país. Em Roma, temia-se seriamente a emergência de um reino judaico na Espanha[18].

Um segundo problema sobrepôs-se ao problema religioso. Os Marranos tinham comprado por dinheiro os escritórios públicos de várias cidades espanholas, colocando os cristãos-velhos sob o peso de taxas e da usura. Aconteceram algumas revoltas populares contra o poder Marrano em Toledo e na Cidade Real em 1449. Os Marranos reconquistaram o controle sobre estas cidades em 1467 e massacraram um grande número de cristãos-velhos. Houve banhos de sangue em Castela (1468) e na Andaluzia (1473). A Espanha estava, então, no limiar de uma guerra civil racial e religiosa. Esta guerra, que teria sido aterradora, foi evitada, graças a Inquisição.
Observe-se que os conversos judeus não eram sempre Marranos. Muitos dentre eles eram sinceramente Católicos. Pense em Santa Tereza d’ Ávila que era neta de um Marrano que, além disso, tinha sido condenado pela inquisição.

Na realidade, os judeus verdadeiramente convertidos eram os maiores inimigos dos Marranos. O ex-rabino Salomão Halevi tornou-se bispo de Burgos sob o nome de Pablo de Santa Maria, e Jehoshua Há-Lorqui, tornou-se o Irmão Jerônimo da Santa Fé, escreveu violentos trabalhos contra o judaísmo.

O historiador Henry Kamen observa que os principais polemistas antijudaicos eram eles mesmos ex-judeus. Foram eles que clamaram por um tribunal da Inquisição para distinguir entre os falsos judeus cristãos convertidos e os novos cristãos sinceros. O primeiro Grande Inquisidor, Tomás de Torquemada, era ele mesmo um judeu convertido. Ademais, deve ser observado que muitos Marranos judaizaram simplesmente por meio da tradição familiar ou da má interpretação da fé Católica. A Inquisição, portanto, tinha que estabelecer uma outra distinção entre os Marranos que voluntariamente alteravam a integridade da fé, daqueles que eram vítimas de uma catequização insuficiente.

A Inquisição Espanhola foi instituída por uma Bula Papal de 1478. A ação deste tribunal protegeu a integridade doutrinal da Igreja Espanhola ao mesmo tempo evitando um progrom generalizado. Face ao perigo dos Marranos, como antes no perigo Cátaro, a Inquisição almejou neutralizar os líderes da heresia com o intuito de poupar e reaver a maioria dos heréticos.

O Procedimento Inquisitorial

O procedimento inquisitorial variava de acordo com o país e com as épocas, mas um perfil básico torna-se claro. De maneira geral, pode-se dizer que a Inquisição deixava ao herético toda a chance de desembaraçar-se. E apenas punia os “irreducibles”, aqueles que eram pertinazes na sua rejeição da Fé. A Inquisição tinha por objetivo educar tanto quanto coibir. Sua ação algumas vezes, era mais de um trabalho de erradicação popular de superstições do que de lutar contra subversões. O procedimento judicial era sempre acompanhado por pregações solenes.

Quando o tribunal da Inquisição chegava numa cidade, ela proclamava um tempo de graça de cerca de um mês, no curso do qual os heréticos poderiam por sua própria vontade confessar seus erros com a certeza de que seria submetido a penitências espirituais leves e secretas.

Depois desta protelação, os inquisidores publicavam o edito da fé que ordenava a todos os cristãos, sob pena de excomunhão, denunciar os heréticos e aqueles que os protegiam. A Inquisição não tinham sob o seu comando uma polícia secreta ou uma rede de espiões. Ela contava com a colaboração do povo católico, agindo nesta forma mais como um guardião do consenso social do que um aparato opressivo do Estado.
A Inquisição Católica não se assemelhava às inquisições totalitárias do século XX. Ela não intencionava encontrar traidores a qualquer preço (“contra-revolucionários” ou “colaboradores”). Ela somente almejava os propagadores públicos da heresia, e acima de tudo os líderes. A Inquisição não se preocupava com a consciência dos heréticos, mas apenas com suas ações exteriores.

O papa confiou a Inquisição Medieval aos Dominicanos e aos Franciscanos. Esta duas recém fundadas ordens davam sérias garantias de probidade e santidade. O conhecimento teológico e canônico dos inquisidores era notável. Na verdade, a Inquisição era confiada as mais finas flores do clero daquela época. Diferentemente dos tribunais revolucionários de 1793, os tribunais da Inquisição nunca eram presididos por fanáticos corruptos e devassos.

O Inquisidor não administrava seu julgamento sozinho. Ele era assistido por alguns assessore (juizes assistentes), selecionados entre o clero local. A Inquisição era, neste sentido, o primórdio da instituição do sistema de jurados. Além disso, o bispo ajustava as sentenças, e o acusado podia apelar ao papa. Portanto, o procedimento inquisitorial era adequado, mesmo para os padrões do nosso moderno critério de justiça. 

Contrariamente do que tem sido dito, a Inquisição freqüentemente absolvia. Bernard Gui exerceu com severidade as funções de inquisidor em Toulouse de 1308 a 1323. Ele pronunciou 930 julgamentos, dos quais 139 eram absolvições.

O acusado podia defender-se e mesmo ter o recurso de um advogado, embora ele nem sempre pudesse escutar o testemunho de seus acusadores. Historiadores têm condenado severamente a natureza secreta dos procedimentos inquisitorial. Mas devemos colocar as coisas no seu devido contexto. Os heréticos que a Inquisição estava ao encalço eram ricos e poderosos. Eles por vezes tinham homens armados sob seus comandos. Não raro, testemunhas de acusação e mesmo inquisidores tinham sido assassinados. Para testemunhar contra os líderes dos Cátaros ou dos Marranos poderia ser tão perigoso quanto testemunhar hoje contra os chefes da máfia. Em 1485, o Grande Inquisidor Espanhol, Pedro Arbues, foi esfaqueado no santo altar por sicários pagos pelos Marranos. Esta é razão pela qual a Inquisição protegia o anonimato de algumas testemunhas. Ela só poderia recorrer ao inquérito secreto em casos de necessidade. Todavia o acusado gozava semelhantemente de algumas garantias. Assim, no início do processo, ele poderia apresentar uma lista de seus inimigos pessoais, e, se a testemunha anônima fosse encontrada nesta lista, seu testemunho era automaticamente rejeitado. Além disso, o testemunho do acusador secreto era dado na presença do advogado do acusado. Naquela época, o advogado era apontado pelo tribunal, para ter a certeza de que ele não revelaria a identidade da testemunha; porém ele cumpria sua tarefa não menos conscienciosamente.  Vários juristas espanhóis distinguiam-se entre si pela qualidade de suas apelações de defesa ante os tribunais da Inquisição.

Observe-se que o princípio da denúncia anônima não é, em si mesma, um procedimento tão injusto quanto possa parecer. Hoje em dia, na província de Quebec, a “lei para a Proteção das Crianças” permite denúncias anônimas.
A outra grande objeção que é feita sobre a Inquisição é do seu uso de tortura durante as interrogações. Mais uma vez, é necessário colocar as coisas no seu próprio contexto. A interrogação inquisitorial não guarda qualquer semelhança com as torturas sádicas da Gestapo ou da KGB. Era relativamente amena se comparada aos tormentos que as cortes da lei comum impunham aos criminosos naquela época. Três métodos eram empregados:
1) Guarrucha era uma roldana que trabalhava com uma corda atada aos pulsos do acusado. Por meio dela, ele era erguido a uma certa altura, e então brutalmente solto de uma vez ou numa série sucessiva de solavancos, que infligia uma intensa dor aos ombros.

2) Potro era um cavalete com pregos, que o supliciado era preso por cordas. O torturador, ao apertar as cordas, gradualmente forçava os pregos na carne do acusado.

3) Toca era um funil de tecido que permitia verter a água de um grande jarro para dentro do estômago do acusado, ao ponto de sufocamento.

O procedimento inquisitorial regulava criteriosamente as práticas da interrogação. Para que um acusado fosse submetido a tortura, ele tinha que ser processado por conta de um crime muito grave, e o tribunal tinha que já ter uma séria presunção de sua culpa. O bispo local tinha que dar sua autorização, que protegia o acusado do zelo abusivo de um ocasional inquisidor mal-afamado. O interrogatório não podia ser repetido. As instruções também estipulavam a presença de um representante do bispo e de um médico durante a sessão de tortura, a proibição de colocar em perigo de morte ou de mutilação, e a obrigação do médico em administrar os cuidados médicos imediatamente após. O doente, o idoso, a mulher grávida estavam isentos de interrogatório sob tortura. Ademais, a tortura era raramente empregada: de 1% a 2% dos processos de acordo com Dumont, de 7% a 11% de acordo com Bartolomé Bennassar.

É surpreende aprender que a maioria daqueles acusados resistiam a tortura e eram, em conseqüência, absolvidos. Se o objetivo do torturador era, como se pode pensar, obter admissão de culpa a qualquer custo, deve-se admitir que se está no caminho errado. Devemos nos perguntar se o questionamento sob tortura não era mais que um último meio de defesa oferecida ao acusado, um tipo de teste judicial comparável ao “ordálio” da Idade Média. Esta é, em minha opinião, uma hipótese que deve ser abordada mais atentamente.

O ordálio, ou “julgamento de Deus”, era um teste judiciário de uso comum até o ano 1000. O acusado provava suas declarações ante o tribunal pelo julgamento do fogo, ou da água ou da espada. No primeiro caso, ele segurava nas suas mãos um carvão em brasa; se suas feridas fossem curadas dentro de um certo período de tempo, o tribunal concluía que seu testemunho tinha sido verdadeiro. No segundo caso, o acusado era amarrado e jogado dentro de um grande barril de água; se flutuasse, o que seria a tendência normal por causa do ar nos pulmões, o tribunal concluiria que ele teria contado a verdade. Por último, o julgamento pela espada colocava dois cavaleiros em oposição representando dois testemunhos contraditórios; a vitória indicava onde a verdade deveria ser encontrada. A Igreja sempre se contrapôs ao ordálio, que era um procedimento supersticioso e originário de uma antiga lei pagã alemã.
O uso da tortura como um meio de prova é chocante para a mentalidade moderna, mas já era um avanço se comparado ao ordálio. Não se deve esquecer que a tortura era, naquela época, empregada com muito mais freqüência em procedimentos criminais. Além do mais, o Grande Inquisidor, São João Capistrano, proibia o uso de tortura em procedimentos inquisitoriais no século 15, mais de 300 anos antes, o rei Luiz XVI fez o mesmo nos tribunais criminais da França (embora a Inquisição Espanhola tenha restabelecido o seu uso neste ínterim.).

Seja como for, e a despeito do uso de tortura, o procedimento inquisitorial marca um avanço na história do direito. Se por um lado, a procedimento inquisitorial descarta o ordálio como meio de prova, substituindo-o pelo princípio da prova testemunhal, que ainda governa o direito moderno até hoje, por outro lado, estabeleceu o princípio do Estado como promotor público. Até aquela época, era a vítima que tinha que provar a culpa, mesmo no procedimento criminal, e isto freqüentemente era difícil quando a vítima era fraca e o criminoso poderoso. Mas com a Inquisição, a vítima não é mais do que uma simples testemunha, como nos procedimentos criminais de hoje. Era a autoridade eclesial que tinha o ônus da prova.

O número de heréticos queimados pela Inquisição tem sido grandemente exagerado. Juan Antonio Llorente é o autor destes números imaginários, que muitos estudos sobre o assunto ainda citam[19]. Llorente era um sacerdote apóstata que se colocou a serviço da ocupação napoleônica na Espanha. Depois de ter caluniado a Inquisição, destruiu os arquivos que poderiam lhe contradizer. Vários historiadores ainda passam adiante números inflados baseados sobre imaginação anticlerical[20]. Não obstante, números desta ordem têm sido rejeitados desde 1900 por Ernest Schafer e Afonso Junco. De algum tempo para cá, historiadores honestos estão de acordo em dizer que o número de vítimas da Inquisição Espanhola foi bem menor do que geralmente se tem acreditado[21]. Jean Cumont fala de cerca de 400 vítimas durante os 24 anos do reinado de Isabela, a Católica. É pouco, realmente, se comparado às 100.000 vítimas do expurgo dos “colaboradores” na França de 1944-45, ou das dezenas de milhões mortos feitos pelos comunistas na Rússia, China e em outros lugares.

Mapa mostrando os distritos da Inquisição Espanhola, os centros dos tribunais e as datas quando eles foram estabelecidos.

Note-se também que aqueles condenados a morte nem sempre eram executados. Suas sentenças eram algumas vezes comutadas para tempo de prisão, e eles eram então queimados em efígies. Ademais, os condenados não eram necessariamente queimados vivos. Se eles mostrassem algum arrependimento, eles eram sufocados antes de serem jogados na pira. Lembre-se também que apenas os reincidentes, ou seja, aqueles que recuavam para heresia depois de ter abjurado-a, que eram condenados a morte.

Algumas pessoas ficam espantadas que a Igreja, que em outro lugar pede que perdoemos nossos inimigos, possa ter sido capaz de impor a pena de morte. 

Observemos, o princípio, que o dever da autoridade pública não é a mesma que do a do fiel. O dever de caridade obriga o indivíduo a perdoar, perdoar mesmo o criminoso que tenha assassinado o ente mais querido. Mas o primeiro dever de caridade do Estado é proteger a ordem pública, defender o bem estar físico e espiritual de seus indivíduos (grifo do autor). Se a pena capital for necessária para assegurar a segurança pública, o Estado ou a Igreja poderá recorrer a ela. OCatecismo do Concílio de Trento (capítulo 33, §1) e o Catecismo da Igreja Católica publicado por João Paulo II (art. 2266) reconhecem a legitimidade da pena de morte.
Santo Tomás de Aquino justificou a execução de criminosos ao observar que o medo da morte geralmente facilita a conversão deles. De fato, capelães de penitenciárias podem testemunhar o fato que durante a época em que ainda a forca existia como uma punição no Canadá, era raro ver um condenado subir ao cadafalso sem se ter confessado com um sacerdote. Portanto, a punição temporal da morte permite ao criminoso evitar a morte eterna que é o inferno. Desta forma, o Estado estava praticando a caridade verdadeira. Restituir-lhe a liberdade, como é feito hoje a pretexto de perdão, é dar ao criminoso a ocasião de reincidir no pecado e perder sua alma.

De qualquer maneira, a pena de morte constitui menos de 1% das sentenças pronunciadas pela Inquisição. Na maioria das vezes, os heréticos eram condenados a usar uma cruz em suas vestimentas, fazer peregrinação, servir na Terra Santa ou submeter-se à flagelação, muitas vezes, meramente simbólicas. Algumas vezes o tribunal confiscava seus bens ou os aprisionavam. As prisões inquisitoriais não eram tão terríveis como se tem sustentado. Elas deviam até ter sido bem mais confortáveis do que as prisões comuns, uma vez que alguns criminosos admitiam a heresia com o intuito de se transferir para elas. Além do mais, os heréticos se beneficiavam de anistias. Em 1495, a Rainha Isabel proclamou um perdão geral para todos aqueles que a Inquisição condenara.

A verdadeira história da Inquisição não corresponde de forma alguma a legenda negra que é espalhada pelos inimigos da Igreja. Bartolomé Bennassar, que não é nenhum apologista do Santo Ofício, escreveu em L’Inquisition espagnole, Xve -XIXe siècle, (1979):
Se a Inquisição Espanhola fosse tida como um tribunal semelhante a  outros tribunais, eu não hesitaria em concluir, sem medo de contradição e a despeito de idéias preconcebidas, que ela era superior a eles… Mais eficiente, não há nenhuma dúvida; mas também mais preciso e mais escrupuloso, a despeito da fraqueza de um certo número de juizes que podem ter sido orgulhosos, avarentos e devassos. Uma justiça que pratica um exame muito atento dos testemunhos, que realiza uma checagem cruzada meticulosa deles, que aceita sem hesitação as impugnações do réu de testemunhas suspeitas (e freqüentemente pela mais leve razão), uma justiça que raramente emprega a tortura e que, ao contrário de certas cortes civis de justiça, e que, depois de um quarto de século de severidades atrozes, raramente condena a pena capital e apenas, muito prudentemente, administra a terrível punição das galés. Uma justiça ansiosa para educar, explicar ao acusado porque ele está em erro, que repreende e aconselha, e de quem a última condenação apenas afeta o reincidente.”.
“… (mas) a Inquisição não pode ser considerada como um tribunal similar aos outros. A Inquisição não pode ser acusada proteger pessoas e propriedades das várias agressões que por ventura pudessem ter sofrido. Ela foi criada para proibir uma crença e um Culto..”.[22]

Agora estamos no coração da questão. Enquanto historiador honesto e competente, Bennassar só pode rejeitar as calúnias que têm circulado há séculos sobre a questão da Inquisição. Porém, como um liberal e relativista, não pode aceitar o princípio que estava na base desta instituição, que é o poder do constrangimento religioso.

Afinal de contas, a única coisa que os liberais podem ainda censurar a Inquisição é por ter lutado contra as falsas religiões. O que é bastante normal, uma vez que os liberais não acreditam que a Igreja Católica é o único caminho para a salvação. Eles não conseguem compreender a finalidade sobrenatural da Inquisição.


Um penitente sanbenito usando uma peça de roupa penitencial da Inquisição

Contudo, aqueles que têm Fé devem exprimir um julgamento positivo sobre a Inquisição. Ao expurgar a influência marrano da Igreja Católica na Espanha, o Santo Ofício salvou a Espanha do protestantismo e a poupou dos horrores de uma guerra religiosa similar àquelas que devastaram grande parte da Europa no século 16. Lembremo-nos que um terço da população alemã pereceu durante as numerosas guerras que tiveram lugar entre 1520 e 1648. Se levar a fogueira algumas centenas de heréticos permitiu que a Espanha ficasse livre de um conflito tal como aquele, deve-se concluir que o Santo Ofício executou um ato humanitário.

Ademais, a Inquisição não salvou apenas a Espanha, mas a Igreja inteira. No século 16, o mundo Católico estava à beira da ruína, veementemente atacado pela revolução protestante no norte e pela expansão dos Turcos Otomanos no leste. A França, imersa numa guerra civil, não podia mais proteger a Igreja. Foi a Espanha que salvou a Igreja, mais particularmente por época da batalha de Lepanto em 1571.

No nível interior, a Contra-Reforma foi um trabalho espanhol; e se o catolicismo espanhol foi capaz de desempenhar um papel benéfico no século 16, foi porque a Inquisição tinha defendido sua integridade doutrinal no século 15. Hoje, a Igreja e a sociedade talvez não estivessem na condição lamentável se tivesse existido nos séculos 19 e 20, uma Inquisição para proteger-nos das heresias modernas.

Certamente não se deve propor o restabelecimento da Inquisição. Agora é muito tarde. A Inquisição só pode ser efetiva numa sociedade que já seja profundamente cristã. Hoje a Igreja está no estágio da Reconquista.

Mas se não há ocasião para restaurar a Inquisição, deve-se, certamente, reabilitá-la aos olhos da história. Com toda a devida reverência àqueles que adoram ver a Igreja desacreditada, os Católicos não tem nada para se sentir envergonhados do trabalho no passado deste santo tribunal.

__________ 
* Jean-Claude Dupuis é um historiador que atualmente trabalha no seu PhD em História na Universidade Laval de Quebec, Canadá. Ele é contratado com professor da escola “Escola da Sagrada Família” da Sociedade Pio X em Quebec.

[1] Voltaire, “Inquisition”, Dictionaire philosophique, dans Oeuvres complètes, t. VII, Paris, Ed. Th. Desoer, 1818, pp. 1309-1319.
[2] Jean-Paul II, Tertio Millennio Advenient, Montréal, Ed. Médiaspaul, 1994, & 35, p. 43.
[3] Uma seita do período, também denominado “illuminati”.
[4] De Maitre, Joseph, “Lettres à um gentilhomme sur l’Inquisition espagnole“, Oeuvres complètes, t. VII, Brussels, Éd. Société Nationale, 1838, pp. 283-391); Morel, Jules, “Lettres à M. Louis Veuillot sur l’Inquisition moderne d’Espagne“, Incartades libérates de quelques auteurs catholiques, Paris, Éd. Victo Palmé, 1869, pp. 31-241.
[5] Dumont, Jean, L’Église au risque de l’Histoire, Limoges, Éd. Critérion, 1984, pp. 171-231, e pp. 343-423; L’incomparable Isabelle Catholique, Paris, Éd. Critérion, 1992, pp.79-110.
[6] N. T. : Parte superior duma parede, nos telhados de duas águas, com a forma de triângulo isósceles; oitão, frontão, cumeeira.
[7] Testat, Guy et Jean, L’Inquisition, Paris, Éd. PUF, collection “Que sais-je?“, 1966, p.126; Guiraud, Jean, L’Inquisition médiévale, Paris, Librairie Jules Tallandier, 1978, 238 pp.;Bennassar, Bartolomé, L’Inquisition espagnole, Xve-XIXe siècles, Paris, Éd. Hachette, 1979, 309pp.
[8] Choupin, L., “Hérésie“, Dictionnaire apologétique de la foi catholique, t. II, 1911, pp. 442-457.
[9] Ottaviani, Alfredo, L’Église et la Cité, Rome, Imprimerie poliglotte vaticane, 1963, 309 pp.
[10] Veja Atos 13, 8-12.
[11] Giraud, Jean, “Inquisition“, DARC, t. II, 1911, col, 824-890; Vacandar, E., “Inquisition”, DTC, t. VII, col. 2016-2068.
[12] O historiador Católicos vai além: ele julga os fatos à luz dos princípios Católicos. Sob esta questão, veja Dom Guéranger, “Le Sens Chrétien de l’histoire” (Le sel de la terre, 22, p. 176).
[13] Por exemplo, Hefelé, Le Cardinal Ximenès, Paris, Librairie Poussielgue-Rusand, 1856, 588 pp.
[14] Vernet, F., “Albigeois et Cathares“, Dictionnaire de théologie catholique, t. I, pp. 1987-1999.
[15] Léa, Henri-Charles, Histoire de L’Inquisition au Moyen Age, Paris, Éd. Jérôme Millon, 1986, 3 vols.
[16] Cervantes, Dom Quixote, Livro I, cap. 21.
[17] Shylock: um judeu usurário na comédia de Shakespeare ‘O Mercador de Veneza’.
[18] Roch, Cecil, Histoire des Marranes, Paris, Éd. Liana Lévi, 1990.
[19] Llorente, Juan Antonio, Historia critica de la Inquisicion em España, Madrid, Éd. Hiperion, 1981, (1ª edição, 1822) 4 vols
[20] Por exemplo, entre os historiadores contemporâneos, Pierre Dominique assegura que a Inquisição Espanhola condenou 178.382 pessoas, das quais 16.376 foram queimadas vivas. [L'Inquisition. Paris, Ed. Perrin, 1969]; Henry Kamen aumenta este número para 341.021 o número de condenações, das quais 31.912 foram queimadas [Histoire de l'Inquisition espagnole, Paris, Éd. Albin Michel, 1966]. Vale observar que Kamen revisou estes números para baixo em uma edição posterior de seu livro (1966, pp. 298-299).
[21] Junco, Alfonso, Inquisicion sobre la inquisicion em Europa, México, Editorail Jus, 1959, pp.37-51
[22] Bennassar, Bartolomé, L’Inquisicion Espagnola, Xve-XIXe siècle, Paris, Éd. Hachett, 1979, pp.389-390.

Fonte: http://omniverbo.wordpress.com/2009/09/25/santainquisicao/

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