14/07/2014

A ignorância entre os cristãos

I — As causas da ignorância
O presente século (século XIX — N.T.) concedeu a si mesmo o faustoso título de “século das luzes”. A pretensão é manifesta, o direito não é tão claramente demonstrado. O século XIX não mudou em nada as condições da humanidade dos séculos anteriores; e, se bem que tenhamos a honra (?) de sermos filhos deste grandioso século XIX, no entanto a verdade é que somos filhos de Adão, e que nascemos trazendo conosco o pecado original e o que dele decorre, a ignorância e a concupiscência.
A ignorância! não somente a simples ignorância que é o não-saber, mas a ignorância combinada com a dificuldade de aprender, com a repugnância em fazer esforço para chegar a saber: esta chaga é grande, e em todos os homens ela produz frutos e frutos muito amargos, é preciso convir, mas são frutos que a maior parte dos homens carrega com uma resignação fácil demais e muitas vezes com uma satisfação que se poderia tomar como sinal de uma felicidade idiota.

Os cristãos nascem homens, e humanamente são vítimas da ignorância, a menos que, por felizes circunstâncias, uma educação cuidada, digamos melhor, a menos que a graça de Deus venha tirá-los do estado infeliz em que todos caímos em Adão. A queda, ai de nós, é natural, o reerguer-se é sobrenatural. Reflitamos no estado das populações que permaneceram estranhas ao cristianismo na Ásia, África, Oceania, e teremos uma prova manifesta do que nós dizemos.

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É portanto por uma graça de Deus que as populações cristãs são retiradas da ignorância. O conhecimento de Deus, de nossa criação, de nossa natureza de homens, de nosso fim sobrenatural são luzes muito puras e sobrenaturalmente poderosas para nos retirar da ignorância.
A noção de Deus criador e fim supremo da criatura, é o grande instrumento da luz intelectual; é o sol das inteligências. Saber que Deus é a causa primeira de tudo que é; que Ele é nosso fim, especialmente de nós, criaturas inteligentes; eis o princípio verdadeiro da verdadeira luz, a base sólida de toda instrução. Aí temos um ponto de partida assegurado: aí temos o termo obrigatório de nossa existência; e com esses dois dados, que são imensos para nossas inteligências, nós podemos e devemos orientar nossos espíritos, dirigir nossos pensamentos, regular nossas vontades e nossas afeições, ordenar nossa vida de modo a chegar ao fim que Deus nos assinalou.

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Esta é a ciência da vida: a única indispensável, ciência que nenhuma outra pode substituir e que, se necessário, pode dispensar todas as outras.
O homem só é verdadeiramente instruído quando sabe regular sua vida e regula-la de modo a atingir seu fim. Os conhecimentos mais profundos, os mais variados, os mais raros, não tiram o homem da ignorância se não o ajudam a atingir seu fim. Também há homens que, sob certos aspectos, são verdadeiros sábios; eles sabem línguas, letras, a história, as ciências; e com tudo isso, não tendo a ciência da vida, são realmente ignorantes, e diante de Deus, o Pai das luzes, estão mergulhados em profundas trevas.
Insensíveis à sua própria infelicidade, não tendo olhos senão para suas luzes particulares que irradiam em algum canto de seus espíritos, aplaudem-se por causa das fracas luzes com que tem alguma claridade e pouco sofrem com as trevas onde os mergulha a ignorância em que estão quanto à ciência da vida. Et in caecitate quam tolerant quase in claritate luminis exultant. (S. Greg., in “Job”).
São os cristãos de hoje verdadeiramente filhos da luz como os chamava S. Paulo? Nossa voz seria muito fraca para responder a tal pergunta. Escutemos a voz mais poderosa, uma voz autorizada, uma voz para a qual não há réplica. Ela diz:
Desde o primeiro dia de nosso pontificado, do alto da Sé Apostólica, voltamos os nossos olhares para a sociedade atual, a fim de conhecer as suas condições, procurar atender as suas necessidades, dar-lhe os remédios. Desde então, deploramos o declínio da verdade, não só aquela conhecida sobrenaturalmente pela fé mas também a conhecida naturalmente pela razão ou pela experiência; deploramos a predominância dos mais funestos erros, e os grandes perigos que corre a sociedade pelas desordens sempre maiores que a perturbam; diríamos que a causa mais poderosa de uma semelhante ruína era a separação procurada, a apostasia estabelecida entre a sociedade atual e o Cristo e sua Igreja”.
É um papa do tempo de Nero ou de Domiciano, que fala assim, deplorando o estado dos povos mergulhados no paganismo? Não, é um papa do século XIX, é o papa de nosso tempo; é Leão XIII.
Que se reflita nisto: o declínio da verdade, a predominância dos mais funestos erros, não são palavras desprovidas de sentido. Pintam uma situação e descrevem-na em termos muito exatos.
Se os mais funestos erros se tornaram predominantes, se a verdade encontra-se em declínio, é preciso reconhecer que nossa ignorância é grande.
* * *
Quais são as causas da ignorância entre os cristãos?
Nunca houve tantas escolas quanto em nossos dias; a causa então não será por falta de escolas. Mas afirmamos sem que se possa desmentir-nos, que em nossas escolas se ensina de tudo, menos a verdade. A verdade está em declínio, foi Leão XIII quem disse.
Em muitas escolas, nós sabemos, há lugar para o catecismo, lugar para a instrução religiosa e moral. Mas, na maior parte das vezes, a instrução religiosa é suplantada, aqui pela gramática, lá pelo diploma.
Então faz-se gramática ou bacharéis, mas cristãos, não! Ali onde a fé não está acima de tudo não existe fé.

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E depois, mesmo onde se ensina o catecismo, é bem possível e infelizmente muito comum: não se ensina a fé. Como pode ser isso, nos dirão? Do seguinte modo: pode-se ensinar materialmente as verdades da fé, por exemplo: que há um só Deus, três pessoas em Deus, duas naturezas em Jesus Cristo, sete sacramentos na Igreja, dirigindo-se tal ensino ou à memória, ou à inteligência ou à fé da criança.
Dirigir-se à memória é o método de quase todas as escolas de nossos dias; com isso se obtém a recitação correta da lição; mas isso não é a fé.
Dirigir-se à inteligência é mais raro: pois é preciso esforço para fazer o aluno saber não a palavra mas a coisa, não a expressão mas a verdade. Por aí se faz atos de inteligência, mas não de fé.
Enfim, podemos, digamos melhor, devemos dirigirmo-nos à fé do aluno. Para isso é preciso que aquele que ensina faça o ato de fé, a fim de estimular um ato semelhante no aluno. Acreditei, diz o salmista, por isso falei. É preciso ensinar às crianças o verbum fidei de São Paulo ou, diríamos em português, a fé falada. Então a criança ouve a palavra e a retém, eis o ofício da memória; compreende o valor da expressão, este é o ofício da inteligência; depois, com toda a sua alma, adere à verdade, é a fé.
Dizíamos que essa maneira de ensinar, a única verdadeira, a única eficaz, é extremamente rara, mesmo nas escolas ditas cristãs; é por isso que essas escolas não produzem cristãos e há entre nós uma tão grande ignorância.
II — Os remédios para a ignorância
A ignorância consiste em não saber; mas não saber, para os cristãos, é qualquer coisa de muito funesto.
Para nós cristãos, não nos basta conhecer por seus termos próprios uma determinada verdade, é preciso conhece-la com fé, é preciso saber e crer, saber crendo e crer sabendo.
O cristão que crescesse e não soubesse poderia ser um cristão com alguma fé; mas não possuindo plenamente a verdade, objeto da fé, seria um cristão ignorante.
Segue-se que para combater a ignorância dos cristãos não basta expor diante deles a verdade, ensiná-la em termos exatos; não basta fazê-los conhecer com precisão; é, além disso, necessário, indispensável, desenvolver neles a fé, esta disposição sobrenatural de receber como reveladas por Deus as santas verdades ensinadas pela Igreja.
Ser cristão é uma grande coisa; na educação de uma alma cristã, há um lado humano e um lado divino. Um lado humano, pelo qual a alma é instituída, ensinada, catequizada; e um lado divino pelo qual a alma recebe, como vida sobrenaturalmente de Deus, a verdade cujos termos lhe são propostos por uma boca humana.
Que ela fale, esta boca humana, que ela ensine, que ela exorte, seu papel é grande e belo. Mas Deus reserva para si, em nossa educação cristã, um papel maior e mais belo ainda, o de nos falar ao coração, o de elevar nossas inteligências até a participação da razão divina, até essa região sublime que se chama fé.
Quando, pois, o educador cristão, seja a família, a escola ou a Igreja, quando o educador cristão fala a uma alma batizada, para tirá-la cada vez mais da ignorância, ele deve, sob pena de nada compreender do trabalho que empreende, rezar, ao mesmo tempo que fala, e pedir a Deus que derrame na alma do batizado a graça interior da fé, ao mesmo tempo que, de seu lado, ele faz chegar aos ouvidos do catequizado a expressão humana da verdade divina.
Se todos aqueles que têm a terrível tarefa de trabalhar na instrução dos cristãos trabalhassem desta maneira, veríamos prontamente a ignorância desaparecer, a fé aumentar, a santidade florescer.
Mas, o que se diz de todos os lados? A santidade desaparece, a fé diminui e a ignorância é assustadora, mais ou menos por toda parte.
A falta é nossa!
Com muita facilidade se imagina ter feito tudo, quando se diz a verdade: isto não é nada. Ter-se-ia feito muito e muito mais se, depois de tê-la feito ouvir, se rezasse e se trabalhasse para que ela fosse crida.
O cristão só é completo sob essa condição.
Quantas crianças, nas escolas ou nos cursos de catecismo, aprendem, recitam e sabem bem a letra do catecismo, no entanto, não se tornam cristão dignos desse nome!
A causa de tão grande infelicidade está inteiramente no vício de educação que assinalamos. Fizeram-nos sábios mas não os fizeram crentes.
Por conseqüência, não tendo a fé lançado raízes fortes nas almas, a criança fica entregue ao sabor das paixões nascentes ou torna-se vítima do meio no qual se encontra.
A fé teria dado o vigor necessário para resistir ao perigo interior ou ao perigo exterior que acabamos de assinalar. Mas, sem a fé, o homem fica entregue à fraqueza e cai. É pela fé que estais de pé, diz o Apóstolo. Fides statis (II Cor., 1, 23).
Então, para trabalhar eficazmente no combate a ignorância, é preciso homens muito sábios e muito crentes; precisaríamos de santos que fossem sábios e de sábios que fossem santos.
III — Uma palavra de Santa Teresa
Concluímos nosso artigo sobre a ignorância entre os cristãos por aquelas palavras: “Para trabalhar eficazmente no combate à ignorância, é preciso homens muito sábios e muito crentes: precisaríamos de santos que fossem sábios e sábios que fossem santos. Queira Deus no-los dar!”
Isto já estava impresso quando, tendo aberto as Cartas de Santa Teresa, encontramos nas primeiras páginas a seguinte passagem:
Desejo, mais ardentemente do que nunca, que Deus tenha a seu serviço homens que unam à ciência um completo desapego de todas as coisas daqui de baixo, que são a mentira e derrisão; sinto a extrema necessidade que a Igreja tem disto e sou tão vivamente tocada por isso que me parece até brincadeira afligir-me com outra coisa. Por isso não cesso de recomendar a Deus esse assunto, persuadida de que um desses homens perfeitos e verdadeiramente abrasados do fogo de seu amor, dará mais fruto e será mais útil à Santa glória do que um grande número de outros que sejam indiferentes e ignorantes”.
Esse assunto que Santa Teresa não cessa de recomendar a Deus, esse assunto pelo qual o coração da seráfica virgem era tão vivamente tocado, é o pensamento chave da obra de Nossa Senhora da Santa Esperança.
Quis sapiens, et intelliget ista? (Os., XIV, 10) Onde estão os homens a quem Deus deu o espírito de sabedoria e que compreenderão isto? Que Deus se digne entregar-nos a eles ou proporcioná-los a nós.
Estas linhas foram escritas no dia da festa do coração de Santa Teresa (27 de agosto). Recomendamos nossa obra às preces da seráfica padroeira do Carmelo.
Revista Permanência n° 186-187, Maio-Junho de 1984.

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