Fonte: Livro
"A Descoberta do Outro" (pp. 191-194)
Transmissão: Clarissa
Transmissão: Clarissa
"...
Muitas vezes, lendo as páginas do Novo Testamento, romanticamente,
para lhes achar um pitoresco, para entrever um colorido histórico
nas cenas evangélicas, e ver uma estrada da Samaria batida de sol,
achamos fácil reconhecer o Cristo e pasmamos assombrados ante o
terrível equívoco dos judeus. O drama da Paixão, parece-nos,
evidente, claro. Compreensível; qualquer um de nós não gostará de
ser equiparado aos soldados romanos que jogavam dados praguejando ou
a algum mercador que passasse ao longe tangendo seus anos carregados
de fazenda, sem voltar sequer o rosto preocupado e ganancioso para
ver a Santa Agonia . Lendo a Paixão assim,meditando-a como se fosse
um romance de enredo muito sabido, colocamo-nos, como é usual nessas
leituras, do lado do autor e em pé de igualdade. Saboreamos a
superioridade de saber ponto por ponto o que vai acontecer; sabemos
que o pretor é aquele que vai lavar as mãos e Caifás é o que vai
rasgar as vestes. E já sabemos que o Cristo é Cristo. Já sabemos.
É Ele o Redentor do qual dois mil anos falarão e para o qual serão
erigidas as Catedrais de Estrasburgo e Chartres. Sentimo-nos
imensamente superiores aos indiferentes do Calvário e estremecemos
de horror diante dos que esbofetearam, insultaram e cuspiram na Santa
face.
Mas,
convém pensar um pouco: qual de nós poderia realmente suportar a
dura prova da cruz? Qual de nós poderia aguentar a glória da cruz,
a insuportável visão do opróbrio, deixando seu velho critério de
vitória, saducaico ou farisaico, baseado no prestígio ou no
sucesso? Qual de nós poderia ver atrás daquele rosto ensanguentado
e cuspido a face dum Rei?
Parece
fácil agora, porque já lemos o texto muitas vezes e temos uma
alegoria da paixão gravada em nossa memória. Parece fácil, mas
agora mesmo, em cada instante, em cada dia, apesar de saber de cor o
enredo da paixão, apesar da graça do nosso batismo, não somos nós
mesmos que buscamos o triunfo fácil de ter razão e prestígio, não
somos nós mesmos que esperneamos diante da loucura e do escândalo
da exinanição do Cristo em sua Igreja???
Realmente,
cada vez que nós desejamos a glória mundana ou a política de
sermos católicos, ou nos espantamos diante dos insucessos do
Vaticano na política internacional, cada vez que nos envergonhamos
de ouvir um sermão medíocre ou adotamos uma atitude de irritação
diante da vida escandalosa de algum sacerdote,... estamos exatamente
como os judeus estavam diante da cruz e de nada nos adiantou saber de
cor o enredo da paixão. O cristão está de pé diante da Paixão do
Espírito Santo e somente na fé pode suportar este terrível
espetáculo.
E
aí está. As perguntas que fazíamos atrás, sobre as nossas
probabilidades de reconhecimento diante do Calvário pareciam idiotas
como o são todas as suposições baseadas em retrospecções
históricas. Não tem sentido, fora do recurso retórico, perguntar o
que seria hoje São Paulo ou o que faria um de nós diante de
Nabucodonosor. Mas, a história do Calvário não é uma história: é
um mistério. O nosso memorar não tem o sentido de uma retrospecção
histórica, mas de uma visão no mistério da fé. Se alguma tolice
havia, ela estava antes no modo impressionista, histórico, colorido,
sentimental, de enfrentar a paixão, donde saía a extraordinária
presunção de estarmos livres daquele espetáculo da cruz, isentos
de seu escândalo e de sua loucura, blindados por dois mil anos de
história e pelas pinturas alegóricas da Renascença.
Por
isso o homem novo, na volta de seu caminho, esperneia sob o aguilhão.
Estava na iminência de ter razão e de tirar daí um renovado
prestígio. Apesar da fé do seu batismo já tinha começado seus
cálculos sobre a respeitabilidade do quarteirão e já entrevia uma
Igreja decente, bem instalada no mundo, bem sucedida, acatada por
causa de Maritain, prestigiada pela conversão de Bérgson, uma
Igreja confortável, uma Igreja sem cruz.
LINK
POSTAGEM: http://agnusdei.50webs.com/div313.htm
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