Tradução: Permanência
Introdução
Explicação Literal da Sexta Palavra: “Está tudo consumado”.
A sexta palavra que disse Nosso
Senhor na Cruz está como que unida à quinta palavra mencionada por S. João.
Pois entre o Senhor dizer “Tenho sede”, e tomar o vinagre oferecido, não houve
tardança. Acrescenta S. João: “Havendo Jesus tomado do vinagre, disse: Tudo
está consumado” (Jo 19, 30). Em verdade, nada se pode acrescentar a tais
palavras: “Está tudo consumado”, senão que estava a obra da Paixão aperfeiçoada
e completa. Impusera Deus Pai duas missões a seu Filho: a primeira,
pregar o
Evangelho; a segunda, sofrer pela humanidade. Quanto à primeira, já dissera o
Cristo: “Eu te glorifiquei na terra. Terminei a obra que me deste para fazer”
(Jo 17, 4). Proferira tais palavras por ocasião do discurso de despedida aos
discípulos, na Última Ceia. Já ali cumprira a primeira obra que lhe impusera o
Pai Celestial. Quanto à segunda missão, tomar o cálice amargo, estava por se
cumprir. Aludira a isso, quando perguntou aos dois filhos de Zebedeu: “Podeis
vós beber o cálice que eu devo beber?” (Mt 20, 22); e ainda: “Pai, se é de teu
agrado, afasta de mim este cálice!” (Lc 22, 42); e em outro passo: “Não hei de
beber eu o cálice que o Pai me deu? (Jo 18, 11). Cristo pudera então exclamar
ao momento da morte, como remate da missão: Está tudo consumado, pois o cálice
do sofrimento foi tomado até às fezes, nada mais me resta senão morrer. E
inclinando a cabeça, expirou (Jo 19, 30).
Entretanto, como nem Nosso
Senhor, nem São João, mui concisos no que disseram, explicaram o que se
cumpriu, temos oportunidade de aplicar a palavra com grande razão e vantagem a
diversos mistérios. Santo Agostinho, comentando este passo, refere a palavra ao
cumprimento de todas as profecias do Testamento Velho. “No instante que soubera
Jesus do cumprimento de todas as coisas, para se cumprirem as Escrituras, disse:
“Tenho sede”, e “Havendo Jesus tomado do vinagre, disse: Está tudo consumado”
(Jo 19, 28, 30), i. é, o que havia por cumprir estava cumprido. Por isso,
conclui-se que Nosso Senhor queria manifestar que o que se predissera por boca
dos profetas sobre sua Vida e Morte já estava feito e acabado. Em verdade,
todas as predições se comprovaram. Sua concepção: “Uma virgem conceberá e dará
à luz um filho” (Is 7, 14). Seu nascimento em Belém: “Mas de ti, Belém Efratá,
apesar de seres a menor do clã da família de Judá, de ti sairá aquele que há de
governar Israel” (Mq 5, 2). A aparição de uma nova estrela: “De Jacó nascerá
uma estrela” (Nm 24, 17). A adoração dos Reis: “Oferecer-te-ão dádivas os reis
de Tarsis e das ilhas, e os reis da Arábia e de Sabá trarão presentes” (Sl 71,
10). A pregação do Evangelho: “O espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o
Senhor me ungiu, e me enviou para evangelizar os pobres, aliviar os aflitos de
coração, anunciar a remissão dos cativos e a liberdade aos encarcerados” (Is 61,
1). Seus milagres: “O próprio Deus há de vir e os salvará. Então abrir-se-ão os
olhos do cego, e os ouvidos dos surdos. E saltará o coxo como o cervo e
desatar-se-á a língua dos mudos” (Is 35, 4-6). O cavalgar sobre o burrinho:
“Eis que vem a ti o teu rei, justo e vitorioso; ele é simples e vem montado num
jumento, no potro de uma jumenta” (Zc 9, 9). Davi no Salmos, Isaias, Jeremias,
Zacarias e outros mais predisseram a Paixão como se a testemunhassem. É o
significado das palavras de Nosso Senhor, quando dizia estar próxima sua
Paixão: “Vede, subamos a Jerusalém, pois lá se há de cumprir o que escreveram
os profetas sobre o Filho do Homem” (Lc 18, 31). Do que se havia de cumprir,
disse: “Está tudo consumado”, tudo terminado, para que na predição dos profetas
encontre-se, a partir de agora, a verdade.
Em segundo lugar, São João
Crisóstomo diz que a palavra “Está tudo consumado” manifesta que o poder dado a
homens e demônios sobre a pessoa do Cristo acabara-se com sua morte. Quando
disse Nosso Senhor aos Sumos Sacerdotes e doutores do Templo “esta é a vossa
hora e do poder das trevas” (Lc 22, 53), aludia ele a esse poder. O período
durante o qual, com a permissão de Deus, os iníquos se apoderaram do Cristo
terminou com a exclamação “Está tudo consumado”, pois a peregrinação do Filho
de Deus entre os homens, conforme predissera Baruque, findara: “É ele o nosso
Deus, com ele nenhum outro se compara.Conhece a fundo os caminhos que conduzem à sabedoria,
galardoando com ela Jacó, seu servo, e Israel, seu favorecido. Foi então que ela apareceu sobre
a terra, onde permanece entre os homens.” (Br 3, 36-38). E juntamente com a
peregrinação, terminou sua condição de vivente e mortal, por que sentia fome e
sede, e dormia, e se fatigava, e sujeitava-se a atritos e flagelos, e a feridas
e a morte. Deste modo, quando o Cristo na Cruz exclamou “Está tudo consumado, e
inclinando a cabeça expirou”, concluiu-se o caminho daquele que dissera “Saí do
Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo e volto para junto do Pai.” (Jo 16,
28). O termo da peregrinação foi como aquilo do profeta Jeremias: “Senhor,
esperança de Israel, vós que sois o seu salvador no tempo da desgraça, por que
sois qual estrangeiro nessa terra, viajante de uma noite apenas?” (Jr 14, 8).
Acabava a sujeição de sua natureza à morte, findara o poder de seus inimigos
sobre Ele.
Em terceiro lugar, ultimou o
sacrifício dos sacrifícios. Ante o real e verdadeiro Sacrifício, os da Lei
Antiga consideram-se como meras sombras e figuras. Disse São Leão: “Atraiste
tudo para ti, Senhor, pois quando se rasgou o Véu do Templo, o Santo dos Santos
apartou-se dos sacerdotes indignos; as figuras se converteram em verdade,
manifestaram-se as profecias, converteu-se a Lei nos Evangelhos”. Mais adiante,
continua: “A oblação única de teu Corpo e Sangue é superior à variedade dos
antigos holocaustos” (Serm. 8. De Pass. Dom.). Neste único Sacrifício do
Cristo, o sacerdote é Homem-Deus, o altar a Cruz, a vítima o Cordeiro de Deus,
o fogo para o holocausto a caridade, o fruto do sacrifício a redenção do mundo.
O sacerdote, digo, era o Homem-Deus, e nada há de maior: “Tu és sacerdote para
sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (Sl 109, 4), e com justiça, de acordo
com a ordem de Melquisedeque, porque lemos na Escritura que Melquisedeque não
tinha pai, nem mãe, nem genealogia, e o Cristo não tinha Pai na terra, nem mãe
no Céu, nem genealogia, pois “Quem contará sua geração?” (Is 53, 8). “Eu te
gerei antes da aurora” (Sl 109, 3); “saiste desde o princípio, desde os dias da
eternidade” (Mq 5, 2). O altar foi a Cruz. Assim como o tempo que o Cristo
sofreu sobre o madeiro era sinal de grande ignomínia, assim agora está
dignificada e enobrecida, e no último dia aparecerá no céu mais resplandecente
que o sol. A Igreja aplica à Cruz as palavras do Evangelista: “Então aparecerá
no céu o sinal do Filho do Homem.” (Mt 24, 30), já que canta “O sinal da cruz
no céu aparecerá, quando vier o Senhor para julgar”. São João Crisóstomo
confirma essa opinião, e observa que quando “o sol se escurecer, e a lua não
tiver claridade” (Mt 24, 29), a Cruz há de ser vista mais brilhante que o sol
no esplendor do meio-dia. A vítima foi o Cordeiro de Deus, totalmente inocente
e imaculado, de quem fala Isaias: “Foi maltratado e resignou-se; não abriu a
boca, como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos
do tosquiador. (Ele não abriu a boca.)” (Is 53, 7), e também o Precursor: “Eis
aqui o Cordeiro de Deus, eis o que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29), e por
último São Pedro: “Porque vós sabeis que não é por bens perecíveis, como a
prata e o ouro, que tendes sido resgatados da vossa vã maneira de viver,
recebida por tradição de vossos pais, mas pelo precioso sangue de Cristo, o
Cordeiro imaculado e sem defeito algum” (1Pd 1, 18-19). No Apocalipse,
chamam-no também de “o cordeiro imolado desde o princípio do mundo” (Ap 13, 8),
porque o mérito do sacrifício já o previra Deus, em benefício daqueles que
viveram antes da vinda do Cristo. O fogo do holocausto, que o consome e perfaz,
é o imenso amor que ardeu no Coração do Filho de Deus, qual ardente fogueira
que as muitas águas da Paixão não extinguiram. Finalmente, o fruto do
Sacrifício foi a expiação dos pecados de todos os filhos de Adão, i. é, a
reconciliação do mundo com Deus. Na sua primeira epístola, disse São João: “Ele
é a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos
de todo o mundo.” (1Jo 2, 2), o que é dizer, com outras palavras, a ideia de
São João Batista: “Eis aqui o Cordeiro de Deis, eis o que tira o pecado do
mundo” (Jo 1 ,29). Aparece aqui um embaraço: como é possível o Cristo ser ao
mesmo tempo sacerdote e vítima, posto que fosse dever do sacerdote matar a
vítima? Certamente o Cristo não se matou a si, nem havia de fazê-lo, pois se o
fizesse, cometeria um sacrilégio e não ofereceria um sacrifício. É verdade que
o Cristo não se matou a si, mas ainda assim ofereceu um sacrifício real, porque
pronta e alegremente se ofereceu a si à morte por glória de Deus e salvação dos
homens. Nem soldados o prenderiam, nem cravos trapassariam suas mãos e pés, nem
a morte – não obstante tivesse pregado à Cruz – se apoderaria dele se ele assim
não o quisesse. Em consequência, com muita propriedade disse Isaias:
“Ofereceu-se porque o quis” (Is 53, 7); e disse Nosso Senhor: “O Pai me ama, porque
dou a minha vida para a retomar. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim
mesmo.” (Jo 10, 17-18). Com mais claridade, afirma São Paulo: “Progredi na
caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a
Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 2). Portanto, de modo
maravilhoso dispôs-se que todo o mal, e todo o pecado, e todo o crime da
condenação à morte do Cristo recaissem sobre Judas e os judeus, sobre Pilatos e
os soldados. Eles não ofereciam sacrifício, senão que foram culpados de
sacrilégio, e não mereciam o título de sacerdotes, senão que de sacrílegos.
Toda a virtude, e toda a santidade, e toda a obediência pertencem ao Cristo,
que se ofereceu a si como vítima a Deus, sofrendo pacientemente a morte, e morte
de Cruz, para apaziguar a ira do Pai, reconciliar a humanidade com Deus, saciar
a justiça divina, e salvar a raça decaida de Adão. São Leão expressa com
elegância e economia este pensamento: “Ele permitiu as mãos impuras se
voltassem contra si, e já então se convertiam em colaboradores da Redenção no
momento em que cometiam um abominável pecado”.
Em quarto lugar, por morte do
Cristo findou-se a batalha entre o Salvador e o príncipe deste mundo. Na alusão
desta luta, valeu-se o Senhor destas palavras: “Agora é o juízo deste mundo;
agora será lançado fora o príncipe deste mundo. E quando eu for levantado da
terra, atrairei todos os homens a mim” (Jo 12, 31-32). Foi batalha de foro, e
não de milícia. Foi batalha entre dois demandantes, e não de dois exércitos
rivais. Satanás disputou com o Cristo a possessão do mundo, e o domínio sobre a
humanidade. Por muito tempo, o demónio lançara a mão com dolo para possui-lo,
porque vencera o primeiro homem, e dele e seus descendentes fizera-os escravos.
Por essa razão, chama S. Paulo aos demónios de “principados e potestades,
príncipes deste mundo tenebroso” (Ef 6, 12). Como disséramos, até o mesmo
Cristo chama ao demónio “príncipe deste mundo”. Eis que o demónio não quisera
apenas ser príncipe, mas arvorar-se em deus deste mundo, como na exclamação do
Salmo: “Porque os deuses dos pagãos, sejam quais forem, não passam de ídolos.
Mas foi o Senhor quem criou os céus” (Sl 95, 5). Nos ídolos dos gentios,
adorava-se Satanás, e lhe rendiam culto de sacrifício de cordeiros e vitelos.
Por outro lado, o Filho de Deus, verdadeiro e legítimo herdeiro do universo,
demandou para si o principado deste mundo. A sentença da lide deu-se na Cruz, e
o juizo se pronunciou em favor de Jesus Cristo, porque na Cruz expiou à
saciedade os pecados do primeiro homem e seus filhos. A obediência do Filho ao
Pai Eterno superou a desobediência do servo ao Senhor, e a humildade da morte
do Filho de Deus na Cruz redundou em maior honra do Pai, que o orgulho do servo
em sua desonra. Assim Deus, nos méritos de seu Filho, se reconciliou com a
humanidade, arrancando-se ao poder do demónio a mesma humanidade, e “nos
introduziu no Reino de seu Filho muito amado” (Cl 1, 13).
Há outra razão, a que aduz São
Leão, conforme dá-la-emos com suas próprias palavras: “Se o orgulhoso e cruel
inimigo conhecesse o plano da misericórdia de Deus, reprimira as paixões dos
judeus, e lhes não inculcara o ódio injusto por que perderia o domínio sobre os
cativos, ao atacar em falso a liberdade daquele que nada devia”. Esta
consideração é de muitíssimo peso. Era justíssimo que o demónio perdesse toda a
autoridade sobre os escravos do pecado, porque se atrevera a pôr as mãos sobre
o Cristo, que não era escravo seu, nem havia pecado, e todavia perseguira até à
morte. Ora se este é o caso, se é terminada a batalha, se é vitorioso o Filho
de Deus, e se “quer que todos os homens se salvem” (1Tm 2, 4), como é possivel
tantos estarem submissos ao poder do demónio nesta vida, e atormentados no
inferno, na que há de vir? Respondo-o com uma palavra: querem-no. Cristo saiu
vitorioso da disputa, outorgando à raça humana dois favores inefáveis.
Primeiro, abriu aos justos a porta dos céus, que estavam cerradas desde a queda
de Adão até aquele dia, em que pronunciou a justificação do ladrão, alcançada
por meio da fé, da esperança e da caridade, pelos méritos de seu sangue: “Em
verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). Exultante, clama
a Igreja: “Tu, vitorioso sobre o aguilhão da morte, abriste aos crentes o Reino
dos Céus”. Segundo, instituiu os Sacramentos, que têm poder de perdoar pecados
e conferir a graça. Envia os pregadores da Palavra a toda parte do mundo, a
proclamar: “Quem crer e for batizado será salvo” (Mc 16, 16). Assim Nosso
Senhor franqueou o caminho para todos adquirirem a gloriosa liberdade dos
filhos de Deus, e se há quem se recuse a nele entrar, morrem pela própria
culpa, e não pela míngua do poder ou da vontade do Redentor.
Em quinto lugar, a palavra
“Está tudo consumado” é possível aplicá-la ao término do edifício, i. é, a
Igreja. Cristo Nosso Senhor usa dela, ao se referir a um edifício: “Hic homo
coepit aedificare et non potuit consummare, Este homem principiou a edificar,
mas não pode terminar” (Lc 14, 30). Ensinam os Padres que o estabelcimento das
fundações da Igreja deu-se no batismo do Cristo, e o término da construção na
sua morte. Epifánio, no terceiro livro contra os herejes, e Santo Agostinho, no
último da Cidade de Deus, mostram que Eva, feita da costela do Adão adormecido,
faz figura da Igreja, feita da costela do Cristo adormecido na morte,
advertindo que, não sem razão, o livro do Génesis usa o termo “construiu”, e
não “formou”. Santo Agostinho (“De Civit.”, I. 27, c. 8), com as palavras do
Salmista, prova que o edificio da Igreja começa no batismo do Cristo: “Ele
dominará de um ao outro mar, desde o grande rio até os confins da terra.” (Sl 71,
8). O reino do Cristo, a Igreja, se iniciou no batismo recebido das mãos de São
João, consagrou as águas e instituiu o sacramento que é a sua porta de entrada;
foi nesse momento que se escutou claramente a voz do Pai nos céus: “Eis meu
Filho muito amado em quem me comprazo” (Mt 3, 17). Desde então Nosso Senhor
começou a pregar e reunir discípulos, que foram os primeiros filhos da Igreja.
Todos os sacramentos tiram sua eficácia da Paixão do Cristo, apesar de terem
aberto o costado de Nosso Senhor quando já estava morto, fluindo daquela chaga
sangue e água, os tipos dos dois principais sacramentos da Igreja. Fluirem
sangue e água das costelas do Cristo, estando já morto, era sinal dos
sacramentos, e não sua instituição. Podemos concluir que se consumou a edificação
da Igreja quando Cristo disse: “Está tudo consumado”, porque só lhe restava
morrer, o que logo acontenceu, já que pagara o preço de nossa redenção.
Fonte: http://www.permanencia.org.br/drupal/node/72
Sobre
a Sexta Palavra de Cristo na Cruz
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