Explicação literal da Primeira Palavra: "Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem"
Tradução: Permanência
Cristo
Jesus, o Verbo do Pai Eterno, de quem o mesmo Pai dissera: “Ouvi-o”1, e que dissera de si mesmo: “Porque um
só é o vosso Mestre” 2, para realizar a tarefa que assumira,
nunca deixou de nos instruir. Não somente durante sua vida, mas até nos braços
da morte, do púlpito da Cruz, pregou-nos poucas palavras, mas ardentes de amor,
de suma utilidade e eficácia, e em todo o sentido dignas de ser gravadas no
coração de qualquer cristão, para ser aí preservadas, meditadas, e realizadas
literalmente e em obra. Sua primeira palavra é esta: “E Jesus dizia: Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”
3. Prece que, conquanto nova e nunca
antes ouvida, quis o Espírito Santo fosse predita pelo Profeta Isaías nestas
palavras: “e pelos transgressores fez intercessão” 4. E as petições de Nosso Senhor na Cruz
provam quão verdadeiramente falou o Apóstolo São Paulo quando disse: “a
caridade [...] não busca os seus próprios interesses” 5, pois, das sete palavras que
pronunciou nosso Redentor, três foram pelo bem dos demais, três por seu próprio
bem, e uma foi comum tanto para Ele como para nós. Sua atenção, porém, foi
primeiro para os demais. Pensou em si mesmo ao final.
Das
três primeiras palavras que Ele disse, a primeira foi para seus inimigos, a
segunda para seus amigos, e a terceira para seus parentes. Pois bem, a razão
por que orou, então, é que a primeira demanda da caridade é socorrer aqueles
que estão necessitados, e aqueles que estavam mais necessitados de socorro
espiritual eram seus inimigos, e o de que nós, discípulos de tão grande Mestre,
mais necessitamos é amar nossos inimigos, virtude que sabemos muito difícil de
obter e que raramente encontramos, ao passo que o amor a nossos amigos e
parentes é fácil e natural, cresce com os anos e muitas vezes predomina mais do
que deveria. Razão por que escreveu o Evangelista: “E Jesus dizia” 6, onde a palavra “e” manifesta o tempo
e a ocasião desta oração por seus inimigos, e põe em contraste as palavras do
Sofrente e as palavras dos verdugos, Suas obras e as obras deles, como se o
Evangelista quisesse explicar-se melhor desta maneira: estavam crucificando o
Senhor, e em sua mesma presença estavam repartindo sua túnica entre si,
zombavam-no e difamavam como embusteiro e mentiroso, ao passo que Ele, vendo o
que estavam fazendo, escutando o que estavam dizendo, e sofrendo as mais agudas
dores nas mãos e nos pés, pagou com bem o mal, e orou: “Pai, perdoa-lhes”.
Chama-Lhe
“Pai”, não Deus ou Senhor, porque quis que Ele exercesse a benignidade do Pai e
não a severidade de um Juiz, e, como quis Ele evitar a cólera de Deus, que
sabia provocada pelos enormes crimes, usa o terno nome de Pai. A palavra Pai
parece conter em si mesma este pedido: Eu, Teu Filho, em meio de todos os meus
tormentos, os perdoei. Faz Tu o mesmo, Pai Meu, estende Teu perdão a eles.
Conquanto não o mereçam, perdoa-lhes por Mim, Teu Filho. Lembra-te também de
que és seu Pai, pois os criaste, fazendo-os à Tua imagem e semelhança.
Mostra-lhes, portanto, um amor de Pai, pois, conquanto sejam maus, são porém
filhos Teus.
“Perdoa”.
Esta palavra contém a petição principal que o Filho de Deus, como advogado de
seus inimigos, faz a Seu Pai. A palavra “perdoa” pode referir-se tanto ao
castigo devido ao crime como ao crime mesmo. Se está referida ao castigo devido
ao crime, foi então a oração escutada: pois, já que este pecado dos judeus
demandava que seus perpetradores sentissem instantânea e merecidamente a ira de
Deus, sendo consumidos por fogo do céu ou afogados num segundo dilúvio, ou
exterminados pela fome e pela espada, ainda assim a aplicação deste castigo foi
posposta por quarenta anos, período durante o qual, se o povo judeu tivesse
feito penitência, teria sido salvo e sua cidade, preservada, mas, dado que não
fizeram penitência, Deus mandou contra eles o exército romano, que, durante o
reino de Vespasiano, destruiu suas metrópoles e, parte de fome durante o sítio,
parte pela espada durante o saque da cidade, matou grande multidão de seus
habitantes, enquanto os sobreviventes eram vendidos como escravos e dispersos
pelo mundo.
Todas
estas desgraças foram preditas por Nosso Senhor nas parábolas do vinhateiro que
contratou obreiros para sua vinha, do rei que fez uma boda para seu filho, da
figueira estéril, e, mais claramente, quando chorou pela cidade no Domingo de
Ramos. A oração de Nosso Senhor foi também escutada se é que fazia referência
ao crime dos judeus, pois obteve para muitos a graça da compunção e da reforma
da vida. Houve alguns que “retiravam-se, batendo no peito” 7. Houve o centurião que disse “Na
verdade este era filho de Deus” 8. E houve muitos que algumas semanas
depois se converteram pela pregação dos Apóstolos, e confessaram Aquele que
tinham negado, adoraram Aquele que tinham desprezado. Mas a razão por que a
graça da conversão não foi outorgada a todos é que a vontade de Cristo se
conforma à sabedoria e à vontade de Deus, que São Lucas manifesta quando nos
diz nos Atos dos Apóstolos: “E creram todos os que eram predestinados para a
vida eterna” 9.
“Perdoai-Lhes”.
Esta palavra é aplicada a todos por cujo perdão Cristo orou. Em primeiro lugar
é aplicada àqueles que realmente pregaram Cristo na Cruz, e repartiram seus
vestidos lançando sortes. Pode ser também estendida a todos os que foram causa
da Paixão de Nosso Senhor: a Pilatos, que pronunciou a sentença; às pessoas que
gritaram: “Seja crucificado. [...] Seja crucificado” 10; aos sumos sacerdotes e escribas que
falsamente o acusaram, e, para ir mais longe, ao primeiro homem e a toda a sua
descendência, que por seus pecados ocasionaram a morte de Cristo. E assim, de
sua Cruz, Nosso Senhor orou pelo perdão de todos os seus inimigos. Cada um,
porém, se reconhecerá a si mesmo entre os inimigos de Cristo, de acordo com as
palavras do Apóstolo: “sendo nós inimigos, fomos reconciliados com Deus pela
morte de seu Filho” 11. Portanto, nosso Sumo Sacerdote,
Cristo, fez uma comemoração para todos nós, até antes de nosso nascimento,
naquele sacratíssimo “Memento”, se assim o posso dizer, que Ele fez no primeiro
Sacrifício da Missa que celebrou no altar da Cruz. Que retribuição, ó alma
minha, farás ao Senhor por tudo o que fez por ti, ainda antes de que fosses?
Nosso amado Senhor viu que tu também algum dia estarias nas fileiras de Seus
inimigos, e, conquanto não o tivesses pedido, nem o tivesses buscado, Ele orou
por ti a Seu Pai, para que não carregasse sobre ti a falta cometida por
ignorância. Não te importa, portanto, ter em conta tão doce Protetor, e fazer
todo o esforço por servi-Lo fielmente em tudo? Não é justo que com tal exemplo
diante de ti aprendas não só a perdoar a teus inimigos com facilidade, e a orar
por eles, mas até a atrair quantos possas a fazer o mesmo? É justo, e isto
desejo e tenho o propósito de fazer, com a condição de que Aquele que me deu
tão brilhante exemplo me dê também em sua bondade a ajuda suficiente para
realizar tão grande obra.
Pois
não sabem o que fazem. Para que sua oração seja razoável, Cristo diminui-se,
ou, mais ainda, dá a desculpa que possa pelos pecados de seus inimigos. Ele
certamente não podia desculpar a injustiça de Pilatos, ou a crueldade dos
soldados, ou a ingratidão da gente, ou o falso testemunho daqueles que
perjuraram. Então, não restou a Ele mais que desculpar-lhes a falta alegando
ignorância. Pois com verdade o Apóstolo observa: “porque, se a tivessem
conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da glória” 12. Nem Pilatos, nem os sumos sacerdotes,
nem o povo sabiam que Cristo era o Senhor da Glória. Ainda assim, Pilatos o sabia
um homem justo e santo, que fora entregue pela inveja dos sumos sacerdotes, e
os sumos sacerdotes sabiam que Ele era o Cristo prometido, como ensina Santo
Tomás, porque não podiam — nem o fizeram — negar que tinha operado muitos dos
milagres que os profetas tinham predito que o Messias operaria. Enfim, a gente
sabia que Cristo tinha sido condenado injustamente, pois Pilatos publicamente
lhe dissera: “não encontrei nele culpa alguma” 13, e “Eu sou inocente do sangue deste
justo” 14.
Mas,
conquanto os judeus, tanto o povo como os sacerdotes, não soubessem o fato de
que Cristo era Senhor da Glória, ainda assim não teriam permanecido neste
estado de ignorância se sua malícia não os tivesse cegado. De acordo com as
palavras de São João: “E, tendo ele feito tantos milagres em sua presença, não
criam nele, para se cumprir a palavra do profeta Isaías, quando disse: [...]
Obcecou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração para que não vejam com os
olhos e não entendam com o coração, e não se convertam, e eu não os sare” 15. A cegueira não é desculpa para um
homem cego, porque é voluntária, acompanhando, não precedendo, o mal que faz.
Da mesma maneira, aqueles que pecam na malícia de seus corações sempre podem
alegar ignorância, o que não é porém desculpa para seu pecado, pois não o
precede, senão que o acompanha. Razão por que o Homem Sábio diz: “Os que
praticam o mal erram” 16. O filósofo, de igual modo, proclama
com verdade que todo o que faz mal é ignorante do que faz, e por conseguinte se
pode dizer dos pecadores em geral: “Não sabem o que fazem”. Pois ninguém pode
desejar aquilo que é mau com base em sua maldade, porque a vontade do homem não
tende para o mal tanto como para o bem, mas sim só ao que é bom, e por esta
razão aqueles que escolhem o que é mau o fazem porque o objeto lhes é apresentado
sob aparência de bem, e assim pode então ser escolhido. Isto é resultado do
desassossego da parte inferior da alma, que cega a razão e a torna incapaz de
distinguir nada que não seja bom no objeto que busca. Assim, o homem que comete
adultério ou é culpado de roubo realiza estes crimes porque olha só o prazer ou
o ganho que pode obter, e não o faria se suas paixões não o cegassem até ou à
vergonhosa infâmia do primeiro e à injustiça do segundo. Um pecador, portanto,
é similar a um homem que deseja lançar-se a um rio de um lugar elevado.
Primeiro fecha os olhos e depois se lança de cabeça; assim, aquele que faz um
ato de maldade odeia a luz, e atua sob uma voluntária ignorância que não o
desculpa, porque é voluntária. Mas, se uma voluntária ignorância não desculpa o
pecador, por que então Nosso Senhor orou: “Perdoa-lhes, porque não sabem o que
fazem”? A isto respondo que a interpretação mais direta por fazer das palavras
de Nosso Senhor é que foram ditas para seus verdugos, que provavelmente
ignoravam de todo não só a Divindade do Senhor mas até sua inocência, e
simplesmente realizaram o labor do verdugo. Para eles, portanto, disse em
verdade o Senhor: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
Uma
vez mais, se a oração de Nosso Senhor há de ser interpretada como aplicável a
nós mesmos, que ainda não tínhamos nascido, ou àquela multidão de pecadores que
eram seus contemporâneos mas que não tinham conhecimento do que estava
sucedendo em Jerusalém, então disse com muita verdade o Senhor: “não sabem o
que fazem”. Finalmente, se Ele se dirigiu ao Pai em nome de todos os que
estavam presentes e sabiam que Cristo era o Messias e um homem inocente, então
devemos confessar a caridade de Cristo, que é tal, que deseja atenuar o mais
possível o pecado de seus inimigos. Se a ignorância não pode justificar uma
falta, pode porém servir como desculpa parcial, e o deicídio dos judeus teria
tido caráter mais atroz se conhecessem a natureza de sua Vítima. Conquanto
Nosso Senhor fosse consciente de que tal não era uma desculpa, mas antes uma
sombra de desculpa, apresentou-a com insistência, em verdade, para mostrar-nos
quanta bondade sente com relação ao pecador, e com quanto desejo teria Ele
usado uma melhor defesa, até para Caifás e Pilatos, se uma melhor e mais razoável
apologia se tivesse apresentado.
1. Mt 17,5.
2. Mt 23,10.
3. Lc 23,34.
4. Is 53,12.
5. 1Cor 13,5.
6. Lc 23,34.
7. Lc 23,48.
8. Mt 27,54.
9. Atos 13,48.
10. Mt 27,23.
11. Rom 5,10.
12. 1Cor 2,8.
13. Lc 23,14.
14. Mt 27,24.
15. Jo 12,37-40.
16. Prov 13,22.
Capítulo
1: Explicação literal da Primeira Palavra: "Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem"
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