Tradução: d. Timóteo Anastácio
Fonte: Livro Tratado
sobre a Oração
"De Oratione": Obra
composta por 29 capítulos, foi redigida entre 198-200, sendo o mais antigo
comentário do "Pai-Nosso". Dirigido aos catecúmenos, tem uma
orientação predominantemente prática, abordando a postura interior e exterior
que se deve guardar na oração.
I - Cristo ensina uma nova
forma de oração
1. Jesus Cristo, nosso Senhor, que é tanto
Espírito de Deus, como Palavra de Deus e Verbo de Deus, (Palavra do Verbo e
Verbo da Palavra), instituiu para os novos discípulos do Novo Testamento uma
nova forma de oração. Convinha, realmente, que também nesse plano se guardasse
o vinho novo em odres novos e se costurasse um pano novo numa veste nova (cf.
Mt 9,16-17; Mc 2, 21-22; Lc 5,36-39). De resto, tudo que viera antes, ou foi
inteiramente abolido como a circuncisão, ou foi completado como o resto da Lei,
ou cumprido como a profecia, ou levado à perfeição como a própria fé.
2. A nova graça de Deus renovou todas as coisas,
fazendo-as passar de carnais a espirituais, mediante o Evangelho, que opera a
revisão de todas as coisas antigas. Pelo Evangelho, nosso Senhor Jesus Cristo
se fez reconhecer como Espírito de Deus, Palavra de Deus e Verbo de Deus:
Espírito, por seu poder eficaz; Palavra, por seu ensinamento; Verbo, por sua
vinda. Assim, pois, a oração instituída por Cristo reune três dimensões: a do
Espírito, razão da sua grande eficácia; a da Palavra, em que ela se exprime; e
do Verbo...[lacuna]
João já ensinara seus díscipulos a orar
3. Também João Batista já ensinara seus
discípulos a orar. Mas tudo em João era preparação à vinda de Cristo. Quando
Cristo cresceu - e João já anunciara que era preciso que Cristo crescesse e ele
mesmo diminuísse (cf. Jo 3,30) - toda a obra do precursor se transferiu para o
Senhor, segundo o espírito de João. Por isso, nada nos resta das palavras com
que João ensinou a orar, pois as coisas terrenas deram lugar às celestes.
"Quem é da terra - diz João - fala o que é da terra, mas o que vem do céu
fala daquilo que viu" (Jo 3,31-32). E o que não é celeste no Cristo
Senhor, inclusive o seu ensinamento sobre a oração?
Como orar
4. Consideremos, pois, irmãos abençoados, a
celeste sabedoria de Cristo, que se manifesta, em primeiro lugar, pelo preceito
de orar em segredo(cf. Mt 6,6). Por aí Cristo induzia o homem a acreditar que o
Deus Onipotente nos vê e nos escuta em toda parte, mesmo em casa e nos lugares
mais escondidos. Ao mesmo tempo, ele queria que a nossa fé fosse discreta, de
modo que, confiante na presença e no olhar de Deus em toda parte, reservasse o
homem só a Deus a sua veneração.
5. Já no preceito seguinte (cf. Mt 6,7), se
manifesta uma sabedoria que se refere tanto à fé, como ao discernimento da fé.
Pois, certos de que Deus em sua providência olha pelos seus, não se deve pensar
que para nos aproximarmos dele precisamos de muitas palavras.
Uma oração breve
6. Aqui chegamos, por assim dizer, ao terceiro
grau da sabedoria. Com efeito, essa brevidade está apoiada na significação de
palavras grandes e felizes, pois quanto mais curta, mais rica de sentido é esta
oração. De fato, ela não compreende apenas a exigência própria da oração, isto
é, a veneração de Deus e a súplica do homem, mas quase todas as palavras do
Senhor. Constitui uma lembrança de todo o seu ensinamento, de tal modo que nela
temos uma síntese de todo o Evangelho.
II - "Pai que estais no céu"
1. Começamos por um testemunho sobre Deus e pelo
efeito da fé, quando dizemos: "Pai, que estás no céu". De fato, aí
não só oramos a Deus, mas também mostramos a nossa fé, que tem por conseqüência
chamá-lo de Pai. Como está escrito, "Àqueles que crêem em Deus, foi-lhes
dado o poder de ser chamados filhos de Deus" (Jo 1,12).
2. Aliás, o Senhor, muitas vezes, nos faz saber
que Deus é Pai. Até mesmo ordenou que a ninguém chamemos de Pai sobre a terra
(cf. Mt 23,9), mas só Àquele que temos no céu. Portanto, ao orar desta forma,
cumprimos também um preceito.
3. Felizes aqueles que reconhecem o Pai. Eis o
que Deus censura a Israel, eis o que afirma, chamando por testemunhas o céu e a
terra: "Gerei filhos, e eles não me reconheceram" (Is 1,2).
4. Dizendo, pois, Pai, damos a Deus o seu nome,
termo que significa atitude filial e autoridade.
5. Dizendo Pai, invocamos também o Filho. O Senhor disse: "Eu e o Pai
somos um" (Jo 10,30).
6. Nem mesmo a Mãe Igreja é preterida, pois no Filho e no Pai reconhecemos
também a Mãe, que nos atesta o nome do Pai e do Filho.
7. Assim, por esta única relação de afinidade, adoramos a Deus, cumprimos o
preceito e condenamos os que esquecem seu Pai.
III - Cristo nos revela o Pai
1. O nome de Deus como Pai, antes, a ninguém
fora revelado. Mesmo a Moisés, que perguntara a Deus seu nome, um outro nome
foi dito. Quem no-lo revelou foi o Filho. É preciso que haja o nome do Filho,
para de novo termos o nome do Pai. O Senhor disse: "Eu vim em nome de meu
Pai" (Jo 5,43). E ainda: "Pai, glorifica o teu nome" (Jo 12,28).
E ainda mais claramente: "Eu manifestei o teu nome aos homens" (Jo
17,6).
"Santificado seja o teu nome"
2. Pedimos, pois, que esse nome seja santificado. Não que caiba aos homens
desejar o bem a Deus, como se alguém lhe possa dar qualquer coisa. Ou que Deus
passe necessidade, sem os nossos votos. Mas é muito conveniente que Deus seja
bendito em todo tempo e lugar pelo homem. Com efeito, todos os homens devem se
lembrar, sem cessar, dos beneficios divinos. Este pedido tem a função de
bendizer a Deus.
3. Quando, aliás, deixa o nome de Deus de ser
santo e santificado por si mesmo? Não é, acaso, por meio dele, que os outros
são santificados? Os anjos em torno de Deus não cessam de dizer: Santo, Santo,
Santo! Da mesma forma, também nós, destinados a viver em companhia dos anjos,
se o merecermos, aprendemos desde já na terra, este louvor a Deus, assim como
aprendemos o que faremos no futuro, na glória.
4. Eis o que se refere à glória de Deus. Mas, o
que é que pedimos para nós, ao dizer: "Santificado seja o teu nome"?
Pedimos, na realidade, que ele seja santificado em nós, que o ouvimos, e também
naqueles que Deus ainda aguarda com a sua graça. Assim, orando por todos,
observamos igualmente um outro preceito evangélico, que é de rezar por todos,
mesmo os nossos inimigos (cf. Mt 5,44). Não dizendo que o nome de Deus seja
santificado em nós, estamos dizendo que ele seja santificado em todos.
IV - "Seja feita a tua vontade no céu e na terra"
1. Prosseguindo a oração, acrescentamos: "Seja feita a tua vontade no céu
e na terra". Não pensamos que alguém possa impedir que se faça a vontade
de Deus, e por isso pedimos-lhe a realização da sua vontade. O que pedimos é
que a vontade de Deus se realize em todos os homens. Nesta expressão figurada,
o céu é nosso espírito, e a terra é nosso corpo.
2. Se, entretanto, devemos entender de modo mais simples, é idêntico o sentido
dessa súplica. Pedimos que se faça em nós a vontade de Deus na terra, a fim de
que possa realizar-se em nós igualmente no céu. Que é que Deus quer, senão que
andemos conforme os seus ensinamentos? Pedimos, pois, que ele nos leve a
aceitar o que ele quer e nos dê o poder de assim agir, para que sejamos salvos
tanto no céu como na terra. Pois o que Deus mais quer é a salvação daqueles que
adotou como filhos.
3. Também é segundo a vontade de Deus o que fez o Senhor, pregando, agindo e
sofrendo. Na verdade, ele mesmo o diz: "Eu não faço a minha vontade, mas a
vontade do Pai" (cf. Jo 6,38). É, pois, fora de dúvida que ele fazia a
vontade do Pai. E agora ele nos convida a fazer o mesmo que ele, de modo que
também nós preguemos a palavra de Deus, trabalhemos e suportemos o sofrimento
até à morte. Mas, para podermos agir desse modo, precisamos aceitar a vontade
de Deus.
4. Dizendo, pois, "Seja feita a tua vontade", desejamos o melhor para
nós mesmos, pois não há mal algum na vontade de Deus, mesmo se ele pune alguém
por seus pecados que o contrapõem, de certo modo, ao que é santo.
5. Além disso, com essas palavras, criamos
coragem para suportar o sofrimento. O próprio Senhor, na iminência da paixão,
para mostrar em sua carne a fraqueza da nossa, assim disse: "Pai, se
queres, afasta este cálice" (Lc 22,42). Mas, depois, lembrado da sua
oração, acrescentou: "Não se faça a minha, mas a tua vontade". Ele é
a vontade e o poder do Pai. Mas, para mostrar como devemos sofrer por causa dos
nossos pecados, entregou-se à vontade do Pai.
V - "Venha o teu Reino"
1. Este pedido, como o anterior, refere-se a nós
e significa: "Venha em nós o teu Reino". Mas, quando é que Deus não reina,
ele que "tem nas mãos o coração de todos os reis"? (Pr 21,1). Na
verdade, quando nós desejamos algo de bom a Deus o pedimos, e a ele atribuímos
alcançar tudo quanto esperamos. Deste modo, se a realização do reino do Senhor
se funda na vontade de Deus e em nossa atitude, como podem alguns querer para o
mundo certas delongas, se o Reino de Deus, que rogamos, tende à consumação do
mundo? Nosso maior desejo é reinar quanto antes e não continuar escravos por
mais tempo!
2. Mesmo, pois, que não constasse da oração esse
pedido, "Venha o teu Reino", nós o teríamos feito espontaneamente, na
ânsia de abraçar as alegrias esperadas (cf. Hb 4,11).
3. As almas dos mártires, sob o altar, clamam ao Senhor, com impaciência:
"Até quando, Senhor, tardarás a vingar o nosso sangue contra os habitantes
da terra"? (Ap 6,10). Sim, é fora de dúvida que Deus decidiu vingá-los no
fim do mundo.
4. Venha, pois, Senhor, quanto antes o teu Reino, a fim de se cumprir o desejo
dos cristãos, para confusão dos pagãos e alegria dos anjos. É para se cumprir
tua vontade que estamos abatidos, que lutamos e, sobretudo, que oramos.
VI - "Dá-nos hoje o nosso pão
cotidiano"
1. Com que arte a sabedoria divina dispõe as
partes desta oração! Depois das coisas do céu, isto é, depois do nome de Deus,
da vontade de Deus e do Reino de Deus, podemos pedir por nossas necessidades
terrestres. O Senhor, com efeito, já havia declarado: "Procurai em
primeiro lugar o Reino de Deus, e recebereis a mais as outras coisas por
acréscimo" (Mt 6,33).
2. Na verdade, devemos entender, antes, em
sentido espiritual o pedido: "Dá-nos hoje o nosso pão cotidiano". O
Cristo, com efeito, é nosso pão, porque o Cristo é vida, e o pão também é vida.
Aliás, ele disse: "Eu sou o pão da vida" (Jo 6,35), e um pouco antes:
"O pão é a Palavra do Deus vivo, que desceu do céu" (cf. Jo 6,32).
Ademais, como ele disse: "Isto é o meu corpo" (Lc 22,19), cremos que
o seu corpo está presente no pão. Assim, pedindo o pão cotidiano, rogamos a
Deus viver sempre em Cristo e inseparáveis do seu corpo.
3. Mas, se compreendermos em sentido literal
estas palavras, não poderia ser à custa do seu caráter religioso e do ensino
espiritual dado pelo Senhor. Com efeito, ele manda que peçamos o pão, como a
única coisa necessária aos que têm fé. Dos outros bens, são os pagãos que vão
em busca (cf Mt 6,32-33). Para nos fazer compreender isto, o Senhor usa
exemplos e emprega parábolas, como, por exemplo, quando pergunta: "Acaso
tira o pai o pão dos seus filhos e o atira aos cães?" (Mt 15,26; Mc 7,27).
E ainda: "Acaso ele dá uma pedra ao filho que pede pão?" (Mt 7,9).
Ele mostra, assim, o que devem os filhos esperar do pai. E o homem que bate à
porta do seu amigo em plena noite, ele o faz para obter pão (cf. Lc 11,5-8).
4. Com razão, o Senhor acrescenta: "Dá-nos
hoje". Porque já antes prevenira: "Não vos preocupeis com o que
havereis de comer amanhã" (cf. Mt 6,34). No mesmo sentido, ele utiliza
aquela parábola do homem preocupado em ampliar seus celeiros para reservar as
colheitas abundantes e, assim, gozar de segurança por muito tempo. Mas nessa
mesma noite ele morreu! (cf. Lc 12,l6ss).
VII - "Perdoa-nos as nossas dívidas"
1. É óbvio que, depois de venerar a generosidade
de Deus, roguemos também a sua clemência. De que nos serviria o alimento, se
aos olhos de Deus não fôssemos senão como um touro a engordar para ser
sacrificado? O Senhor sabe que só ele é sem pecado. É por isso que ele nos
ensina a pedir: "Perdoa-nos as nossas dívidas". Pedir perdão já é uma
confissão, pois quem pede perdão, confessa ter pecado. Assim, a penitência se
revela agradável a Deus, porque ele a prefere à morte do pecador (cf. Ez 18,21-23).
2. Na Escritura, a palavra "dívida"
significa pecado, no sentido de se faltar ao dever. Ao juiz submete-se esta
dívida, cujo pagamento é exigido por ele. Só se pode escapar ao pagamento da
divida, se o juiz a perdoar. Como o caso daquele servo a quem o patrão perdoou
sua dívida (cf. Mt 18,23-35). A parábola inteira é um exemplo do que dizemos. O
senhor liberta o servo da sua dívida, mas este, por sua vez, não perdoa ao seu
devedor. Acusado junto do seu patrão é entregue ao algoz até que pague o último
centavo, isto é, até mesmo pela falta mais leve (cf. Mt 5,25ss). Tudo isso tem
o mesmo sentido daquilo que afirmamos: "Perdoamos aos nossos
devedores".
3. Em outro lugar, o Senhor diz, empregando as
mesmas palavras desta oração: "Perdoai, e vos será perdoado" (Lc
6,37). E quando Pedro perguntou se devia perdoar sete vezes ao irmão, o Senhor
respondeu: "Mais ainda, setenta e sete vezes" (Mt 18,21-22). Deste
modo, o Senhor aperfeiçoava a Lei, visto que no livro do Génesis se declara que
Caim será vingado sete vezes e Lamec setenta e sete (cf. Gn 4,15.24).
VIII - "Não nos submetas à tentação"
1. Completando oração tão concisa, o Senhor
acrescentou que supliquemos não só o perdão dos pecados, mas também que de
todo, os evitemos: "Não nos submetas à tentação". Isto quer dizer:
Não permitas que o Tentador nos faça cair.
2. Não pensemos que o Senhor nos quer tentar,
como se ignorasse a fé de cada um de nós, ou como se ele quisesse nos fazer
cair.
3. É o maligno que nos faz cair. Fraco e malvado
é o Diabo. Assim, quando Deus ordenou a Abraão o sacrifício do seu filho, não
foi para tirar-lhe a fé, mas para prová-la (cf Gn 22, 1-18). Queria, sim, fazer
dele um exemplo para o mandamento que iria dar mais tarde: os que vos são
caros, não os ameis mais do que a Deus (cf. Mt 10,37).
4. Um dia, o próprio Senhor foi tentado pelo Diabo, mostrando que é este, e não
ele, o dono e mestre de toda tentação.
5. Mais tarde, o Senhor confirmou essa passagem,
quando disse: "Orai para não caírdes em tentação" (Mt 26,41). Os
discípulos caíram na tentação, a ponto de abandonar o Senhor, porque preferiram
dormir a orar (cf. Mt 26,40-45).
6. A isto corresponde o final do Pai nosso, que
explica o pedido: "Não nos submetas à tentação". É o que diz a
oração: "Mas livra-nos do Maligno" (Mt 6,13).
IX - Esta oração é muito rica
1. Em tão poucas palavras, quantas declarações
dos Profetas, dos Evangelhos, dos Apóstolos, quantos discursos do Senhor em
parábolas, exemplos e preceitos, são relembrados! E quantos deveres religiosos
são aí repassados
2. Falando do Pai, a oração nos lembra a honra
devida a Deus. Na revelação do seu nome, testemunhamos a fé. Em face da sua
vontade, oferecemos a nossa submissão. Quando se fala do Reino, recordamos a
nossa esperança. Pedindo o pão, rogamos a vida. Pedindo perdão, confessamos
nossos pecados. Solicitando a proteção divina, mostramo-nos preocupados com as
tentações.
3. Mas, por que se admirar disso? Só Deus podia
nos ensinar como quer que o invoquemos na oração. Dele mesmo nos vem a regra da
oração, que ele animava com o seu Espírito, no instante mesmo em que ela saía
da sua boca. Assim, pois, por força de um privilégio especial, ela sobe direto
ao céu, recomendando ao Pai o que o Filho ensinou.
X - Outros pedidos legítimos
1. Mas o Senhor, que prevê as necessidades
humanas, depois de nos ensinar esta oração, acrescenta, em outro lugar:
"Pedi e recebereis" (Mt 7,7; Lc 11,9). Com efeito, existem outras
coisas a pedir, segundo as circunstâncias. Primeiro, porém, devemos proferir
essa oração do Senhor, que representa o fundamento de nossos outros desejos.
Temos, pois, o direito de acrescentar além desta oração, outros pedidos, sob a
condição de nos lembrarmos dos preceitos evangélicos. Se estivermos
distanciados desses preceitos, estaremos outro tanto distantes dos ouvidos de
Deus.
TRATADO SOBRE A ORAÇÃO - Parte II
XI - Como devemos orar?
1. A lembrança dos preceitos divinos abre à oração o caminho do céu. Deles, o
primeiro consiste em que não subamos ao altar de Deus, sem antes nos
reconciliarmos com um irmão, caso haja entre nós e ele motivo de discórdia ou
ofensa. Que sentido teria apresentar-se à paz de Deus, sem estar em paz com o
irmão? Buscar a remissão das próprias dívidas, sem abrir mão das alheias? Como
aplacar o Pai, se guardar raiva contra o irmão? De fato, Deus nos proíbe toda
ira, mesmo apenas esboçada.
2. Lembremo-nos de José. Ao despedir os irmãos
para que lhe trouxessem o pai, recomendou-lhes: "Não se deixem levar pela
ira, no caminho" (Gn 45,24). Com isso, ele nos deu, também a nós, um
conselho. Com efeito, a nossa maneira de viver é chamada de "caminho"
(cf. At 9,2). Assim, quando vamos pela estrada da oração, não devemos caminhar
para o Pai com sentimentos de cólera.
3. Daí vem que o Senhor, de modo bem explícito,
ampliando o conteúdo da Lei de Moisés, sobrepõe ao homicídio a ira contra o
irmão. Ele não permite nem mesmo uma palavra má. Se for, porém, inevitável
ficar encolerizado, nossa ira não vá além do pôr-do-sol, como nos adverte o
Apóstolo (cf. Ef 4,26). É, pois, temerário, passar o dia inteiro sem orar,
enquanto te recusas a perdoar teu irmão, ou então, perder a tua oração
perseverando em cólera.
XII - Oremos com o coração puro
1. Devemos estar livres não somente da cólera,
mas de toda perturbação da alma, quando nos entregamos à oração, que há de ser
feita com um espírito semelhante ao Espírito ao qual se dirige. Um espírito não
purificado não pode ser reconhecido pelo Espírito Santo. Nem um espírito triste
pelo alegre Espírito de Deus. Nem um espírito perturbado, pelo Espírito da
liberdade (cf. 2 Cor 5,17). Ninguém acolhe um adversário; hospeda-se apenas um
amigo.
XIII - Puro seja o coração
1. De resto, que motivo temos para lavar nossas
mãos antes de ir orar, se o nosso espirito está imundo? Até as nossas mãos
precisam de ser espiritualmente lavadas, a fim de que se levantem
incontaminadas de mentira, de violência, de crueldade, dos atos de
envenenamento, de idolatria e de outras manchas que brotam do coração e se
realizam pelas mãos. É esta a verdadeira pureza (cf. 1Tm 2,8; Mt 15,20). Não se
trata daquelas abluções que a maior parte das pessoas observa
supersticiosamente para orar. Mesmo se acabam de vir de um banho completo, usam
a água.
2. Como eu refletisse com a maior atenção o
sentido dessa praxe, ocorreu-me à lembrança o gesto de Pilatos, lavando as mãos
ao entregar o Senhor à condenação (cf. Mt 27,24). Quanto a nós, adoramos o
Senhor; não o traímos. Devemos agir de maneira contrária ao exemplo do traidor
e não lavar as mãos, a não ser por alguma contaminação própria da condição
humana e da qual outros têm conhecimento. De resto, estão já bastante limpas as
mãos que, em Cristo, lavamos uma vez por todas, junto com todo o corpo.
XIV
1. Israel, embora lave todo dia o corpo, não
está, contudo, purificado. Suas mãos estão sempre impuras, eternamente
manchadas com o sangue dos profetas e com o do próprio Senhor. Por isso, os
israelitas, culpados hereditariamente dos mesmos crimes de que tinham
consciência os seus pais, não ousam levantar as mãos para o Senhor, de medo do
clamor de um Isaías e de causar horror a Cristo. Quanto a nós, porém, não só as
levantamos, mas as estendemos e, assim, imitando o Senhor na sua paixão,
confessamos o Cristo com a nossa oração.
XV - Costumes reprováveis
1. Uma vez que tocamos num exemplo de prática
vazia de sentido religioso, vale a pena apontar outras, que por sua inutilidade
merecem justa censura, e são privadas de qualquer ensinamento de autoridade do
Senhor ou de um preceito apostólico. Tais costumes não pertencem a uma religião
verdadeira, mas à superstição. São pretenciosos e exagerados, expressões de um
culto mais indiscreto do que espiritual, e devem, com certeza, ser reprimidos,
pela própria semelhança com os cultos pagãos.
2. É o caso, por exemplo, de alguns que antes de
orar tiram o manto, como fazem os pagãos quando vão cultuar seus ídolos. Se
fosse preciso agir desta maneira, os Apóstolos, ao ensinarem o modo de se
vestir durante a oração, teriam incluído este uso; a não ser que alguém pense
que Paulo deixou o seu manto em casa de Carpo (cf. 2Tm 4,13), por tê-lo tirado
para a oração. Será que Deus não escuta pessoas vestidas com o manto, se ouviu
a prece daqueles três santos que na fornalha do rei da Babilônia oravam com
suas vestes e turbantes?
XVI - Fatos erradamente tomados como ritos
1. O mesmo vale para o costume, que alguns têm,
de se assentar, logo que termina a oração. Não consigo perceber a razão disso;
é pueril. Que dizer então? Se o célebre Hermas, autor do livro intitulado
"Pastor", depois de sua oração, não se tivesse sentado no leito, mas
tivesse feito outra coisa, exigiríamos que se tomasse isto como observância
obrigatória? Certamente não.
2. Com efeito, o texto em que diz: "Depois
de ter orado, e de me ter assentado sobre o leito", deve ser entendido
simplesmente como parte da narração e não como disciplina da oração.
3. Do contrário, seria impossível adorar a Deus,
senão onde houver leitos
4. Mais ainda, agiria contra aquela obra, quem
se assentasse numa cadeira ou num banco.
5. Se, pois, os pagãos se comportam desta forma,
assentando-se depois de adorar suas estatuetas, tal uso merece censura entre
nós, por ocorrer em rituais celebrados diante dos ídolos.
6. A isto se acrescenta a acusação de
irreverência, que os próprios pagãos deveriam entender, se tivessem um mínimo
de sabedoria. Se, com efeito, se considera desrespeitoso assentar-se alguém
diante duma pessoa pela qual tem o maior respeito e veneração, quanto mais será
irreligioso assentar-se em face do Deus vivo, ante o qual o anjo da oração se
mantêm de pé? Ou estaríamos reclamando diante de Deus, porque a oração nos é
fatigante?
XVII - Orar com humildade
1. Na verdade, quando oramos com modéstia e
humildade tornam-se recomendáveis diante de Deus as nossas preces. Nem
levantemos muito alto as mãos, mas de modo sóbrio e correto, para que o rosto
não se erga com arrogância.
2. Lembremo-nos daquele publicano, que orava a
Deus com humildade não só nas palavras, mas também com o rosto inclinado para a
terra, e saiu justificado, ao contrário do fariseu cheio de insolência (cf. Lc
18,9-14).
3. É preciso que manifestemos submissão também
pelo tom da voz. De quantos pulmões precisaríamos, se fosse pela altura do som
da voz que Deus nos ouve? Deus, em verdade, escuta, não a voz, mas o coração,
até onde penetra o seu olhar.
4. O demônio do oráculo de Delfos assim falou:
"Eu compreendo o mudo e escuto o que não fala". Será que os ouvidos
de Deus precisam de sons? Como pôde a oração de Jonas chegar ao céu, do fundo
das entranhas da baleia? Como pôde passar através das vísceras de tão grande
animal e subir ao céu, dos abismos do mar, através da grande massa de águas?
(cf Jn 2,1-11).
5. Que lucram aqueles que oram com voz mais
gritante, senão incomodarem os vizinhos? Além disso, expondo ás claras seu
pedido, nada de menos fazem do que ostentar publicamente que estão orando.
XVIII - Os que Se abstém do ósculo da paz quando
jejuam
1. Vejamos agora um outro costume que
prevaleceu. Põem-se alguns a jejuar, participam da oração com os irmãos, mas no
fim, se esquivam do ósculo da paz que é justamente o selo da oração.
2. Que melhor momento para trocar com os irmãos
o dom da paz, senão quando a nossa oração se torna mais agradável a Deus? Eles,
então, participam do nosso jejum, ao mesmo tempo que ajudam os irmãos com a sua
paz.
3. Qual oração pode ser completa, se separada do
ósculo santo?
4. Pode o ósculo da paz impedir a alguém de
oferecer culto a Deus?
5. Que espécie de sacrificio cultual é aquele do
qual os irmãos saem sem o beijo da paz?
6. Qualquer que seja a razão dada para se
subtrair ao ósculo da paz, não pode ser mais forte do que a observação do
preceito de esconder os nossos jejuns (cf. Mt 6,16-17). Se, com efeito,
evitamos o ósculo, torna-se patente que estamos jejuando. Se, portanto, alguém
tem alguma razão, pode, sem violar o referido preceito, abster-se do ósculo da
paz em sua casa, onde é impossível esconder o jejum. Na assembléia não se
abstenha do ósculo. Mas, em toda parte onde é possível esconder o jejum é
necessário lembrar-se do preceito. Assim, estando fora de casa, satisfarás ao
preceito; estando em casa, satisfarás o costume.
7. Desta forma, também no tempo da preparação da
Páscoa, em que a prática religiosa do jejum é geral e pública, omitimos
justamente o ósculo, sem a preocupação de ocultar o que fazemos em companhia de
todos.
XIX - Procedimento nos dias de
"estação"
1. Situação semelhante acontece nos dias de
"estação", em que a maioria se abstém das orações do sacrificio
eucarístico, porque o jejum estacional deveria ser interrompido com a recepção
do Corpo do Senhor.
2. Pode a eucaristia quebrar um serviço
reverente prestado a Deus? Acaso não o une mais a Deus?
3. Não será, acaso, mais intenso teu jejum
estacional, se te pões em pé, ante o altar de Deus?
4. Se recebes o Corpo do Senhor e o guardas em
reserva, salvam-se as duas coisas: a participação do sacrificio eucarístico e o
cumprimento do jejum.
5. Se o costume da "estação" deriva da
vida militar (somos, com efeito, a milícia de Deus), sabemos que nenhum motivo
de alegria ou de tristeza sobrevindo no quartel anula a prontidão do soldado.
Na verdade, a alegria fará cumprir o dever com maior boa vontade; a tristeza,
com maior diligência.
XX - Indumentária das mulheres
1. Quanto à indumentária, pelo menos das
mulheres, a variedade de costumes nos obriga a tratar do assunto. Mas nem nós
nem qualquer outro o faremos sem atrevimento, uma vez que se pronunciou o santo
Apóstolo Paulo (cf. 1Cor 11,3-16; 1Tm 2,9). Entretanto, não seremos atrevidos,
se falarmos conforme o ensinamento do Apóstolo.
2. Na verdade, são claras as prescrições a
respeito do modo de vestir e dos ornamentos. Também Pedro, com idênticas
palavras, porque no mesmo espírito de Paulo, condena a presunção nos vestidos,
a arrogância no uso do ouro, a impertinência em cabeleiras mais próprias de
prostitutas.
TRATADO SOBRE A ORAÇÃO - Parte III (Final)
XXI - O uso de um véu
1. Mas não podemos deixar de tratar de um
assunto observado de modo variável nas igrejas, como se não fosse questão
definida: devem ou não as virgens usar véu?
2. Aqueles que permitem às virgens andar com a
cabeça descoberta, parecem basear-se no fato de que o Apóstolo, ao prescrever a
obrigatoriedade do véu, designa as mulheres em geral, não as virgens
nomeadamente. Paulo, dizendo mulheres, não se teria referido ao sexo feminino
em geral, mas a uma categoria de pessoas, as mulheres casadas (cf. 1Cor
11,6-15).
3. Se, com efeito, nomeasse o sexo feminino em
geral, suas prescrições abrangeriam toda mulher, sem exceção. Mas, como se refere
só a uma categoria, a omissão exclui a outra.
4. Podia, com efeito - dizem alguns - ou
referir-se às virgens, de modo especial ou, senão, falar de mulheres em geral,
como um todo.
XXII - O véu é prescrito por São Paulo
1. Os que fazem tal concessão, devem repensar o
sentido da própria palavra. Que significa o termo mulher, desde as primeira
letras da Sagrada Escritura? É o nome genérico do sexo feminino, e não de uma
categoria especial. Assim é que Deus chamou Eva de mulher, já antes que ela se unisse
ao homem (cf. Gn 2,21-25; 5,2). Mulher para o gênero globalmente, e esposa para
determinada categoria, de modo especial. Se, pois, ele dá o nome de mulher a
Eva, mesmo ainda inupta, o termo mulher se tornou aplicável também à virgem.
Não é, pois, de se admirar que o Apóstolo, movido pelo Espirito que inspira
toda a Sagrada Escritura, inclusive no livro do Gênesis, tenha usado a mesma
palavra, isto é, mulher, que, a exemplo de Eva, convém igualmente a uma virgem.
2. O restante, aliás, concorda com isso. Pelo
fato de não nomear as virgens, ao contrário do que faz ao ensinar sobre o
matrimônio (cf. 1Cor 7,34), Paulo indica suficientemente que se refere a todas
as mulheres e ao sexo feminino em geral, sem fazer distinção entre mulher e
virgem, que de todo não cita. Aquele que em outro lugar se lembrou de
distinguir, quando a diferença o exigia (e ele usou dois vocábulos diferentes
para distinguir as duas categorias), não quer que se veja diferença, quando ele
não distingue nem se refere a duas categorias.
3. Que dizer do fato de que na língua grega, em
que Paulo escreve suas cartas, é costume usar o termo gynaikas (mulheres) em
vez de theleías, em latim feminas? Se, deste modo, aquele termo é habitualmente
usado para indicar todo o sexo feminino, e pode ser traduzido em latim por
femina, é claro que, dizendo gynaika (mulher), quis nomear todo o sexo
feminino, no qual estão compreendidas igualmente as virgens.
4. Mas há um pronunciamento de Paulo bem
evidente: "Toda mulher que estiver em oração e profetizar com a cabeça
descoberta desonra a sua cabeça" (1Cor 11,5). Que significa "toda
mulher", senão mulher de qualquer idade, de qualquer ordem, de qualquer
condição? Dizendo "toda" , ele não exclui qualquer categoria de
mulher, como não exclui qualquer homem da proibição de velar a cabeça. Por
isso, com efeito, diz: "Todo homem" (1Cor 11,4). Como, pois,
relativamente ao sexo masculino, com a expressão "todo homem", Paulo
proíbe até aos mais jovens usar véu, igualmente, para o sexo feminino, com o
termo mulher, obriga até a virgem a cobrir-se com o véu. Em ambos os sexos, os
de menor idade devem seguir a disciplina dos maiores. Do contrário,
obrigaríamos os rapazes ainda virgens do sexo masculino a usar véu, se não são
as mulheres virgens obrigadas a isso, visto que os rapazes não são nominalmente
citados. Se há distinção entre mulher e virgem, também existe entre homem e
rapaz.
5. Com certeza, diz Paulo que as mulheres devem
usar véu por causa dos anjos (cf. lCor 11,10), porque os anjos se afastaram de
Deus por causa das filhas dos homens (cf Gn 6,2). Quem poderá responsabilizar
só as mulheres adultas, já casadas e privadas da virgindade, de excitarem a
concupiscência, a não ser que se negue que as virgens são mais belas e atraem
enamorados? Vejamos mesmo se os anjos não desejaram senão as virgens, já que a
Escritura diz "filhas dos homens", quando podia nomear
indiferentemente as esposas dos homens ou as mulheres.
6. Igualmente, ao dizer: "E as tomaram por
esposas" (Gn 6,2), a Escritura quer dizer que são recebidas como esposas
as mulheres ainda não casadas. Se não fossem mulheres núbeis, usaria de
expressão diferente. Uma mulher é disponível para contrair casamento se é viúva
ou virgem. Assim, usando o termo "filhas" inclui nessa expressão
genérica uma categoria especial.
7. Quando diz o Apóstolo que a própria natureza
ensina que as mulheres devem usar véu, pois a sua cabeleira lhes serve de
cobertura e ornamento, não podemos, acaso, concluir que também às virgens foi
determinada semelhante cobertura e ornamento? Se é vergonhoso para uma mulher
raspar a cabeça, o mesmo é para a virgem.
8. Se existe uma única condição para a cabeça da
mulher, há uma única disciplina, inclusive para aquelas virgens que ainda têm a
proteção da infância. Já desde pequenina, a menina é chamada de mulher. Foi
assim, de resto, a observância do povo de Israel. Mas mesmo que nele não se
observasse esse costume, a nossa lei, que amplia e completa a dele, exigiria
para si esse acréscimo, impondo às virgens o uso do véu. Escuse-se dessa norma
aquela idade que ainda ignora o sexo. Que ela goze do privilégio da
simplicidade infantil. Todavia, Eva e Adão, logo que começaram a conhecer o bem
e o mal, ocultaram sem demora o que descobriram (cf. Gn 3,7). Assim também, as
meninas que passaram da infância, do mesmo modo que obedecem à natureza,
obedeçam também à disciplina. Ao se desenvolver o corpo, começam também as
funções da mulher. Nenhuma menina é mais virgem, desde que se pode casar,
porque então a idade a desposou a um varão, isto é, ao tempo [da puberdade].
9. Mas pode alguém objetar: Uma jovem se
consagrou a Deus. Apesar disto, à medida que cresce, ela muda de penteado e
todos os seus vestidos, à maneira feminina. Fale com toda gravidade e mostre-se
à altura de uma virgem. Se algo esconde por causa de Deus, proteja-o
completamente. Se vivemos sob o olhar complacente de Deus, interessa-nos que só
a ele nos confiemos, de modo somente dele conhecido, a fim de não recebermos do
homem o que só de Deus esperamos. Por que, então, descobrir diante de Deus o
que velas diante dos homens? Serás, por acaso, mais recatada na rua do que na
igreja? Se é graça de Deus [a tua virgindade] e, como diz Paulo, a
"recebeste, por que te glorias, como se não tivesses recebido"? (1Cor
4,7). Por que te mostras ostensivamente e julgas assim as outras? Ou, acaso,
pensas que com a tua vaidade, convidas as outras para o bem? Na realidade, se
te glorias, corres o risco de te perderes, e forças as outras a correrem o
mesmo perigo. Facilmente se destrói o que se assume com desejo de glória.
Cobre-te do véu, ó virgem, se és virgem; deves enrubescer-te. Se és virgem, não
suportes o olhar de muitos. Ninguém possa olhar com admiração a tua face;
ninguém perceba em ti uma farsa. Se velas a tua cabeça, finges ser casada. Mas,
a bem dizer, não estás mentindo, pois és esposa de Cristo. A ele consagraste a
tua carne; vive, pois, segundo a disciplina do teu esposo. Se ele ordena que
usem véu as esposas alheias, quanto mais as suas!
10. Mas objetam: Ninguém deve mudar o que foi instituído
por seu antecessor. Muitos aprovam com sua prudência um costume instituído por
outro e reconhecem essa tradição. Mas, admita-se que as jovens não sejam
obrigadas a trazer o véu; não se deve, contudo, impedir que o ponham aquelas
que o quiserem. E se também as virgens não podem negar o que são, contentem-se
em gozar da certeza de que Deus está ciente da sua virtude. Quanto àquelas que
se desposarem, posso declarar com certeza, a meu critério, que elas devem usar
o véu, desde o dia em que pela primeira vez tocaram o corpo do seu esposo e
tremeram pelo beijo e pelo aperto da mão direita. Para tais mulheres, tudo já é
matrimônio: a idade, porque já são maduras; a carne, porque já têm idade de
casar-se; pelo espírito, porque conscientes de tudo; pelo pudor, porque
experimentaram o beijo; a esperança, porque estão na expectativa das núpcias; a
mente, porque querem o casamento. Baste-nos o exemplo de Rebeca: apenas
indicado o seu futuro esposo, já se toma esposa à notícia de sua chegada e logo
se cobre do véu (cf. Gn 24,65).
XXIII - Devemos ajoelhar-nos para orar?
1. A respeito da atitude de ajoelhar-se durante
a oração, há variedade de observâncias. Alguns aos sábados omitem a genuflexão.
Este desacordo é causa de disputas nas Igrejas.
2. O Senhor dará a graça, a fim de que eles
venham a ceder, ou então, sigam a sua opinião sem escandalizar os outros. Nós,
porém, de acordo com a tradição que recebemos, somente no dia da ressurreição
do Senhor evitamos não só ajoelhar-nos, mas também toda atitude ou ato de culto
que exprima tristeza. E adiamos os nossos negócios, para não deixar ao diabo
oportunidade alguma (cf. Ef 4,27). Fazemos o mesmo no período de Páscoa a
Pentecostes, que transcorre como uma só celebração.
3. De resto, em todos os outros dias, quem
hesita em prostrar-se diante de Deus, ao menos na primeira oração, quando
desponta a luz do dia?
4. Nos dias de jejum e das chamadas estações, a
oração não é acompanhada de genuflexões ou gestos costumeiros de humildade. Com
efeito, não nos limitamos a orar, mas também rogamos perdão e procuramos dar
satisfação ao Senhor, nosso Deus.
XXIV - O lugar da oração
1. Não há prescrição sobre os tempos da oração,
a não ser, naturalmente, a de orar em todo tempo e lugar (cf. Lc 18,1; Ef 6,18;
1Ts 5,17; 1Tm 2,8). Mas como orar em todo lugar, se é proibido orar em público?
(cf. Mt 6,5-6). "Em todo lugar", diz a Escritura, quer dizer em toda
parte onde for oportuno ou houver necessidade. Nem nos parece que os Apóstolos
agiram contra o preceito, quando no cárcere oravam e cantavam a Deus diante dos
seus guardas (cf. At 16,25), ou Paulo que deu graças a Deus na presença de
todos, num navio (cf. At 27,35).
XXV - Em que tempo orar
1. Quanto ao tempo da oração, não será supérfluo
observar, além dos momentos prescritos, as orações também em certas horas que
todos conhecem e que marcam as partes do dia: nove da manhã, meio-dia, três da
tarde. Tais horas, podemos ver na Escritura, são as mais importantes.
2. Foi às nove da manhã que, pela primeira vez,
o Espírito Santo foi derramado sobre os discípulos reunidos (cf. At 2,1-4).
3. Pedro tinha subido ao meio-dia ao terraço
para orar, e teve a visão dos alimentos impuros numa toalha (cf. At 10,9-16).
4. O mesmo Pedro, às três horas da tarde, subiu
com João ao Templo, e lá restituiu a saúde ao paralítico (cf At 3,1-10).
5. Embora tais passagens sejam simples
narrativas que não acarretam prescrição, seria bom considerá-las como convite a
orar e também como norma, a fim de nos arrancarmos das ocupações ordinârias em
certos intervalos do dia e nos dedicarmos à oração. Lemos, com efeito, na
Escritura que Daniel orava nessas horas, conforme o ensinamento de Israel (cf
Dn 6,10). Desta forma, ao menos três vezes ao dia, vamos adorar as Três Pessoas
às quais devemos tudo: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Obviamente, essas
orações acrescentam-se ás outras prescritas regularmente, e mesmo sem indicação
explícita devem ser recitadas ao raiar do dia e ao cair da noite.
6. Mas os fiéis cristãos, antes da refeição e do
banho, devem fazer oração. Pois têm prioridade o refrigério e a nutrição do
espírito, relativamente aos do corpo, pois as coisas do céu vêm antes das
terrestres.
XXVI - A acolhida fraterna
1. Ao irmão que entra em tua casa, não o
despeças sem uma oração. "Viste teu irmão, viste o Senhor", conforme
se diz vulgarmente. Sobretudo, se for um peregrino. Pode ser um anjo (cf. Hb
13,2).
2. Mas também tu, se fores recebido por irmãos,
não prefiras os prazeres terrenos aos celestes. Nisto se julgará acerca de tua
fé. De outro modo, como poderás, segundo o preceito, dizer: "Paz a esta
casa" (Lc 10,5), se não trocas o ósculo da paz com os seus moradores?
XXVII - Aleluias e salmos na oração
1. Os que oram com maior empenho costumam
acrescentar às suas orações o Aleluia e salmos de louvor, cujos finais permitem
aos presentes ajuntar responsórios. É ótima atitude apresentar a Deus, como
hóstia agradável, uma oração assim enriquecida reconhecendo a majestade e a
honra divinas.
XXVIII - A oração em espírito e verdade
1. Nossa oração é hóstia espiritual que aboliu
os sacrifícios precedentes (cf. 1Pd 2,5; Hb 13,15). Com efeito, disse Deus:
"Que me importam os vossos sacrifícios todos? Estou enjoado dos vossos
holocaustos de carneiros e não quero a gordura dos cordeiros nem o sangue dos
touros e dos bodes. Quem, aliás, pediu tais coisas das vossas mãos?" (Is
1,11-12).
2. O Evangelho nos ensina o que Deus exige de
nós: "Virá a hora em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em
espírito e verdade. Deus, de fato, é espírito" (Jo 4,23-24), e portanto,
deseja tais adoradores.
3. Somos nós os verdadeiros adoradores e os
verdadeiros sacerdotes (cf. Ap 1,6; 5,10; 20,6) porque oramos em espírito (cf
1Cor 14,15; Ef 6,18), e oferecemos a Deus nossa oração como um sacrifício que
lhe agrada, que ele aceita, a hóstia que ele previamente pediu e escolheu.
4. Esta é a hóstia a levarmos ao altar de Deus,
consagrada de todo o coração, alimentada pela fé, adornada pela verdade,
íntegra pela inocência, pura pela castidade, coroada pela caridade, com um
séquito de boas ações, entre salmos e hinos. Por ela, obteremos tudo da parte
de Deus.
XXIX - Eficácia da oração
1. À oração em espírito e na verdade, que poderá
Deus negar, se é ele mesmo que a exige? Nós lemos, ouvimos dizer e cremos, com
inúmeras provas da sua eficácia! Outrora, a oraçao libertara do fogo (cf. Dn
3,25-30), das feras (cf. Dn 6,17-25) e da fome (cf Dn 14,37) e, no entanto,
ainda não recebera do Cristo a forma devida. Entretanto, quanto mais eficaz é a
oração cristã! Ela não faz descer o anjo que proporciona orvalho ao meio das
chamas (cf. Dn 3,49-50), nem fecha a boca dos leões, nem leva aos famintos o
alimento de camponeses (cf. Dn 14,33-39). Ela não nos dá a graça de não
sentirmos o sofrimento, no entanto, confere a força da paciência aos que
sofrem, se afligem, experimentam a dor. Com essa força, ela aumenta a graça, a
fim de que os crentes saibam o que esperar do Senhor, conscientes de sofrerem
por seu nome.
2. Além disso, outrora a oração pedia flagelos
(cf. Ex 7,10), desbaratava exércitos inimigos (cf. Ex 17, 8-15), impedia chuvas
benéficas (cf. 1 Rs 17,1). Agora, porém, a oração dos justos afasta a ira de
Deus, põe-se em vigílias pelos inimigos, suplica pelos perseguidores. É, acaso,
de admirar, que faça descer águas do céu a oração que pôde obter chamas de fogo
(cf. 2Rs 1, 10-14)? Só a oração consegue vencer a Deus, mas Cristo não quis que
ela fizesse mal, e lhe conferiu plena eficácia para o bem. Por isso, de nada
ele quis saber senão de fazer voltar à vida as almas dos mortos, que já
caminhavam pela estrada da morte, de devolver forças aos fracos, de curar
doentes, de purificar possessos, de abrir portas dos cárceres e quebrar cadeias
dos inocentes. É ainda essa oração que lava os pecados, repele as tentações,
extingue as perseguições, dá coragem aos covardes, alegra os fortes, conduz à
casa os peregrinos, acalma as ondas do mar, faz medo aos malfeitores, alimenta
os pobres, governa os ricos, levanta os que caíram, mantém firmes os que
vacilam, conserva os que estão de pé.
3. A oração é o baluarte da fé, nela temos as
armas e os dardos contra o inimigo que nos espreita de todos os lados. Assim,
pois, jamais andemos desprevenidos. De dia, lembremo-nos de estar de prontidão;
à noite, recordemo-nos das vigílias. Guardemos com as armas da oração a
bandeira do nosso imperador, e orando esperemos a trombeta do anjo.
4. Oram também todos os anjos, oram todas as
criaturas, oram os rebanhos e as feras que dobram os joelhos. Quando saem dos
estábulos e tocas, olham para o alto, levantam a cabeça e não fecham a boca,
mas gritam, fazendo vibrar o ar, cada qual conforme a sua natureza. Até as aves
despertam, elevam-se para o céu, asas abertas - mãos estendidas - uma cruz.
Qualquer coisa sussurram. Seria oração. Que mais dizer sobre o dever da oração?
O próprio Senhor também orou. A ele, glória e poder pelos séculos dos séculos!