Autor: Santo Agostinho de Hipona
Fonte: Livro"Antologia dos Santos Padres"
Tradução: Cirilo Folch Gomes
A
ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo lê-se estes dias, como é costume,
segundo cada um dos livros do santo Evangelho. Na leitura de hoje ouvimos Jesus
Cristo censurando os discípulos, primeiros membros seus, companheiros seus
porque não criam estar vivo aquele mesmo por cuja morte choravam. Pais da fé,
mas ainda não fiéis; mestres - e a terra inteira haveria de crer no que
pregariam, pelo que, aliás, morreriam - mas ainda não criam. Não acreditavam
ter ressuscitado aquele que haviam visto ressuscitando os mortos. Com razão,
censurados: ficavam patenteados a si mesmos, para saberem o que seriam por si
mesmos os
que muito seriam graças a ele.
E foi
deste modo que Pedro se mostrou quem era: quando iminente a Paixão do Senhor,
muito presumiu; chegada a Paixão, titubeou. Mas caiu em si, condoeu-se, chorou,
convertendo-se a seu Criador.
Eis quem
eram os que ainda não criam, apesar de já verem. Grande, pois, foi a honra a
nós concedida por aquele que permitiu crêssemos no que não vemos! Nós cremos
pelas palavras deles, ao passo que eles não criam em seus próprios olhos.
A
ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é a vida nova dos que crêem em Jesus,
e este é o mistério da sua Paixão e Ressurreição, que muito devíeis conhecer e
celebrar. Porque não sem motivo desceu a Vida até a morte. Não foi sem motivo
que a fonte da vida, de onde se bebe para viver, bebeu desse cálice que não lhe
convinha. Por que a Cristo não convinha a morte.
De onde
veio a morte?
Vamos
investigar a origem da morte. O pai da morte é o pecado. Se nunca houvesse
pecado ninguém morreria. O primeiro homem recebeu a lei de Deus, isto é, um
preceito de Deus, com a condição de que se o observasse viveria e se o violasse
morreria. Não crendo que morreria, fez o que o faria morrer; e verificou a
verdade do que dissera quem lhe dera a lei. Desde então, a morte. Desde então,
ainda, a segunda morte, após a primeira, isto é, após a morte temporal a eterna
morte. Sujeito a essa condição de morte, a essas leis do inferno, nasce todo
homem; mas por causa desse mesmo homem, Deus se fez homem, para que não
perecesse o homem. Não veio, pois, ligado às leis da morte, e por isso diz o
Salmo: "Livre entre os mortos" [Sl 87].
Concebeu-o,
sem concupiscência, uma Virgem; como Virgem deu-lhe à luz, Virgem permaneceu.
Ele viveu sem culpa, não morreu por motivo de culpa, comungava conosco no
castigo mas não na culpa. O castigo da culpa é a morte. Nosso Senhor Jesus
Cristo veio morrer, mas não veio pecar; comungando conosco no castigo sem a
culpa, aboliu tanto a culpa como a castigo. Que castigo aboliu? O que nos cabia
após esta vida. Foi assim crucificado para mostrar na cruz o fim do nosso homem
velho; e ressuscitou, para mostrar em sua vida, como é a nossa vida nova.
Ensina-o o Apóstolo: "Foi entregue por causa dos nossos pecados, ressurgiu
por causa da nossa justificação" [Rm 4,25].
Como
sinal disto, fora dada outrora a circuncisão aos patriarcas: no oitavo dia todo
indivíduo do sexo masculino devia ser circuncidado. A circuncisão fazia-se com
cutelos de pedra: porque Cristo era a pedra. Nessa circuncisão significava-se a
espoliação da vida carnal a ser realizada no oitavo dia pela Ressurreição de
Cristo. Pois o sétimo dia da semana é o sábado; no sábado o Senhor jazia no
sepulcro, sétimo dia da semana. Ressuscitou no oitavo. A sua Ressurreição nos
renova. Eis por que, ressuscitando no oitavo dia, nos circuncidou.
É nessa
esperança que vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer. "Se ressuscitasses com
Cristo..." [Cl 3,1] Como ressuscitamos, se ainda morremos? Que quer dizer
o Apóstolo: "Se ressuscitasses com Cristo?" Acaso ressuscitariam os que
não tivessem antes morrido? Mas falava aos vivos, aos que ainda não morreram
... os quais, contudo, ressuscitaram: que quer dizer?
Vede o
que ele afirma: "Se ressuscitasses com Cristo, procurai as coisas que são
do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do
alto, não o que está sobre a terra. Porque estais mortos!"
É o
próprio Apóstolo quem está falando, não eu. Ora, ele diz a verdade, e,
portanto, digo-a também eu... E por que também a digo? "Acreditei e por
causa disto falei" [Sl 115].
Se
vivemos bem, é que morremos e ressuscitamos. Quem, porém, ainda não morreu,
também não ressuscitou, vive mal ainda; e se vive mal, não vive: morra para que
não morra. Que quer dizer: morra para que não morra? Converta-se, para não ser
condenado.
"Se
ressuscitasses com Cristo", repito as palavras do Apóstolo, "procurai
o que é do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é
do alto, não o que é da terra. Pois morrestes e a vossa vida está escondida com
Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, aparecer, então também
aparecereis com ele na glória". São palavras do Apóstolo. A quem ainda não
morreu, digo-lhe que morra; a quem ainda vive mal, digo-lhe que se converta. Se
vivia mal, mas já não vive assim, morreu; se vive bem, ressuscitou.
Mas, que
é viver bem? Saborear o que está no alto, não o que sobre a terra. Até quando
és terra e à terra tornarás? Até quando lambes a terra? Lambes a terra,
amando-a, e te tornas inimigo daquele de quem diz o Salmo: "os inimigos dele
lamberão a terra" [Sl 79,9].
Que éreis
vós? Filhos de homens. Que sois vós? Filhos de Deus.
Ó filhos
dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que amais a vaidade e
buscais a mentira? Que mentira buscais? O mundo.
Quereis
ser felizes, sei disto. Dai-me um homem que seja ladrão, criminoso, fornicador,
malfeitor, sacrílego, manchado por to- dos os vícios, soterrado por todas as
torpezas e maldades, mas não queira ser feliz. Sei que todos vós quereis viver
felizes, mas o que faz o homem viver feliz, isso não quereis procurar. Tu,
aqui, buscas o ouro, pensando que com o ouro serás feliz; mas o ouro não te faz
feliz. Por que buscas a ilusão? E com tudo o que aqui procuras, quando procuras
mundanamente, quando o fazes amando a terra, quando o fazes lambendo a terra,
sempre visas isto: ser feliz. Ora, coisa alguma da terra te faz feliz. Por que
não cessas de buscar a mentira? Como, pois, haverás de ser feliz? "Ó
filhos dos homens, até quando sereis pesados de coração, vós que onerais com as
coisas da terra o vosso coração?" [Sl 4,3] Até quando foram os homens
pesados de coração? Foram-no antes da vinda de Cristo, antes que ressuscitasse
o Cristo. Até quando tereis o coração pesado? E por que amais a vaidade e
procurais a mentira? Querendo tornar-vos felizes, procurais as coisas que vos
tornam míseros! Engana-vos o que descaiais, é ilusão o que buscais.
Queres
ser feliz? Mostro-te, se te agrada, como o serás. Continuemos ali adiante (no
versículo do Salmo): "Até quando sereis pesados de coração? Por que amais
a vaidade e buscais a mentira?" "Sabei" - o quê? – "que o
Senhor engrandeceu o seu Santo" [Sl 4,3].
O Cristo
veio até nossas misérias, sentiu a fone, a sede, a fadiga, dormiu, realizou
coisas admiráveis, padeceu duras coisas, foi flagelado, coroado de espinhos,
coberto de escarros, esbofeteado, pregado no lenho, traspassado pela lança,
posto no sepulcro; mas no terceiro dia ressurgiu, acabando-se o sofrimento,
morrendo a morte. Eia, tende lá os vossos olhos na ressurreição de Cristo;
porque tanto quis o Pai engrandecer o seu Santo, que o ressuscitou dos mortos e
lhe deu a honra de se assentar no Céu à sua direita. Mostrou-te o que deves
saborear se queres ser feliz, pois aqui não o poderás ser. Nesta vida não podes
ser feliz, ninguém o pode.
Boa coisa
a que desejas, mas não nesta terra se encontra o que desejas. Que desejas? A
vida bem-aventurada. Mas aqui não reside ela.
Se
procurasses ouro num lugar onde não houvesse, alguém, sabendo da sua não
existência, haveria de te dizer: "Por que estás a cavar? Que pedes à
terra? Fazes uma fossa na qual hás de apenas descer, na qual nada
encontrarás!"
Que
responderias a tal conselheiro? "Procuro ouro". Ele te diria:
"Não nego que exista o que descias, mas não existe onde o procuras".
Assim
também, quando dizes: "Quero ser feliz". Boa coisa queres, mas aqui
não se encontra. Se aqui a tivesse tido o Cristo, igualmente a teria eu. Vê o
que ele encontrou nesta região da tua morte: vindo de outros paramos, que achou
aqui senão o que existe em abundância? Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo
do que havia na cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve fel. Eis o
que encontrou em tua morada.
Contudo,
convidou-te à sua grande mesa, à mesa do Céu, à mesa dos anjos, onde ele é o
pão. Descendo até cá, e tantos males recebendo de tua cela, não só não rejeitou
a tua mesa, mas prometeu-te a sua.
E que nos
diz ele?
"Crede,
crede que chegareis aos bens da minha mesa, pois não recusei os males da
vossa".
Tirou-te
o mal e não te dará o seu bem? Sim, da-lo-á. Pro- meteu-nos sua vida, mas é
ainda mais incrível o que fez: ofereceu-nos a sua morte. Como se dissesse:
"À minha mesa vos convido. Nela ninguém morre, nela está a vida
verdadeiramente feliz, nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se
acaba. Eia para onde vos convido, para a morada dos anjos, para a amizade do
Pai e do Espírito Santo, para a ceia eterna, para a fraternidade comigo; enfim,
a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não quereis crer que vos darei a
minha vida? Retende, como penhor a minha morte".
Agora,
pois, enquanto vivemos nesta carne corruptível, mor- ramos com Cristo pela
conversão dos costumes, vivamos com Cristo pelo amor da justiça.
Não
haveremos de receber a vida bem-aventurada senão quando chegarmos àquele que veio
até nós, e quando começarmos a viver com aquele que por nós morreu.
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