"Refutação da Encíclica UT UNUM SINT do Papa João Paulo II, de 25 de maio de
1995 pelo cardeal Pie na Catedral de Chartres em 1841"
Cardeal Pie*
Meus irmãos (...)
Nosso século clama:
“tolerância, tolerância”. Tem-se como certo que um padre deve ser tolerante,
que a religião deve ser tolerante. Meus irmãos, não há nada que valha mais que
a franqueza e eu aqui estou para vos dizer, sem disfarce, que no mundo inteiro
só existe uma sociedade que possui a verdade e que esta sociedade deve ser
necessariamente intolerante. Mas antes de entrar no mérito, distinguindo as
coisas, convenhamos sobre o sentido das palavras para bem nos entendermos e
assim não nos confundiremos.
A tolerância pode ser
civil ou teológica. A primeira não nos diz respeito e não falarei senão uma
pequena palavra sobre ela. Se a lei tolerante quer dizer que a sociedade
permite todas as religiões porque, a seus olhos, elas são todas igualmente boas
ou porque as autoridades se consideram incompetentes para tomar partido neste
assunto, tal lei é ímpia e atéia. Ela exprime não a tolerância civil como a
seguir indicaremos, mas uma tolerância dogmática que, por uma neutralidade
criminosa, justifica nos indivíduos a mais absoluta indiferença religiosa. Ao
contrário, se, reconhecendo que uma só religião é boa, a lei suporta e permite
que as demais possam se exercer por amor à tranqüilidade pública, esta lei
poderá ser sábia e necessária se assim o pedirem as circunstâncias como outros
observaram antes de mim.(...)
Deixo, porém, este
campo cheio de dificuldades e volto-me para a questão propriamente religiosa e
teológica em que exponho estes dois princípios:
A religião que vem do
céu é verdade e ela é intolerante com relação às doutrinas errôneas
A religião que vem do
céu é caridade e ela é cheia de tolerância quanto às pessoas.
Roguemos a Nossa
Senhora vir em nossa ajuda e invocar para nós o Espírito de verdade e de
caridade: “Spiritum veritatis et pacis”. Ave Maria.
Faz parte da essência
de toda verdade não tolerar o princípio que a contradiz. A afirmação de uma
coisa exclui a negação dessa mesma coisa, assim como a luz exclui as trevas.
Onde nada é certo, onde nada é definido, pode-se partilhar os sentimentos, podem
varias as opiniões. Compreendo e peço a liberdade de opiniões de coisas
duvidosas: “in dubiis, libertas”. Mas logo que a verdade se apresenta com as
características certas que a distinguem, por isso mesmo que é verdade, ela é
positiva, ela é necessária e por conseqüência ela é uma e intolerante: “in
necessariis, unitas”. Condenar a verdade à tolerância é condená-la ao suicídio.
A afirmação se aniquila se ela duvida de si mesma, e ela duvida de si mesma se
ela admite com indiferença que se ponha a seu lado sua própria negação. Para a
verdade, a intolerância é o instinto de conservação, é o exercício legítimo do
direito de propriedade. Quando se possui alguma coisa é preciso defendê-la, sob
pena de ser despojado dela bem cedo.
Assim, meus irmãos,
pela própria necessidade das coisas, a intolerância está em toda parte; porque
em toda parte existe o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, a ordem e a
desordem. Que há de mais intolerante do que esta proposição: “2 e 2 fazem 4”?
Se vierdes me dizer que 2 e 2 fazem 3 ou fazem 5, eu vos respondo que 2 e 2
fazem 4. (...)
Nada é tão exclusivo
quanto a unidade. Ora, ouvi a palavra de São Paulo: “Unus Dominus, una fides,
unum batisma”. Há, no céu, um só Senhor: “Unus Dominus”. Esse Deus cuja unidade
é seu grande atributo, deu à terra um só Símbolo, uma só doutrina, uma só fé:
“una fides”. E esta fé, esta doutrina, Ele confiou-as a uma só sociedade
visível, uma só Igreja, cujos filhos são, todos, marcados com o mesmo selo e
regenerados pela mesma graça: “Unum batisma”. Assim, a unidade divina que
esplende por todos os séculos na glória de Deus, produziu-se sobre a terra pela
unidade do dogma evangélico cujo depósito foi confiado por Nosso Senhor Jesus
Cristo à unidade hierárquica do sacerdócio: Um Deus, uma fé, uma Igreja: “Unus
Dominus, una fide, unum batisma”.
Um pastor inglês teve
a coragem de escrever um livro sobre a tolerância de Jesus Cristo e o filósofo
de Genebra (Jean-Jacques Rosseau) disse, falando do Salvador dos homens: Não
vejo que meu divino Mestre tenha formulado sutilezas sobre o dogma”. Bem
verdadeiro, meus irmãos. Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma, mas
trouxe aos homens a verdade e disse: se alguém não for batizado na água e no
Espírito Santo; se alguém, recusa-se a comer a minha carne e a beber o meu
sangue, não terá parte em meu Reino. Confesso que nisso não há sutilezas, há
intolerância, a exclusão a mais positiva, a mais franca. E mais, Jesus Cristo
enviou seus apóstolos para pregar a todas as nações, isto é, derrubar todas as
religiões existentes para estabelecer em toda a terra a única religião cristã e
substituir todas as crenças dos diferentes povos pela unidade do dogma
católico. E prevendo os movimentos e as divisões que esta doutrina vai incitar
sobre a terra, Ele não se deteve e declarou que tinha vindo para trazer não a
paz, mas a espada e acender a guerra não somente entre os povos, mas no seio de
uma família e separar, pelo menos quanto às convicções, a esposa fiel do esposo
incrédulo, o genro cristão, do sogro idólatra. A afirmação é verdadeira e o
filósofo tem razão. Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma.(...)
Falam da tolerância
dos primeiros séculos, da tolerância dos apóstolos. Mas isso não é assim, meus
irmãos. Ao contrário, o estabelecimento da religião cristã foi, por excelência,
uma obra de intolerância religiosa. No momento da pregação dos apóstolos, quase
todo o universo praticava essa tolerância dogmática tão louvada. Como todas as
religiões eram igualmente falsas e igualmente desarrazoadas, elas não se guerreavam;
como todos os deuses valiam a mesma coisa uns para os outros, eram todos
demônios, não eram exclusivos, eles se toleravam uns aos outros: satã não está
dividido contra si mesmo. O Império Romano, multiplicando suas conquistas,
multiplicava seus deuses e o estudo de sua mitologia se complica na mesma
proporção que o da sua geografia. O triunfador que subia ao Capitólio fazia
marchar diante dele os deuses conquistados com mais orgulho ainda do que
arrastava atrás de si os reis vencidos. A mais das vezes, em virtude de um
Senatus-Consulto, os ídolos dos bárbaros se confundiam desde então com o
domínio da pátria e o Olímpio nacional crescia como o Império.
Quando aparece o
Cristianismo (prestem atenção a isso, meus irmãos, são dados históricos de
algum valor com relação ao assunto presente), o Cristianismo, quando apareceu
pela primeira vez, não foi logo repelido subitamente. O paganismo perguntou-se
se, ao invés de combater a nova religião, não devia dar-lhe acesso ao seu seio.
A Judéia tinha se tornado uma província romana. Roma, acostumada a receber e
conciliar todas as religiões, recebeu a princípio, sem maiores dificuldades, o
culto saído da Judéia. Um imperador colocou Jesus Cristo assim como Abraão
entre as divindades de seu oratório, como viu-se mais tarde um outro César
propor prestar-lhe homenagens solenes. Mas a palavra do profeta não tardou a se
verificar: as multidões de ídolos que viam, de ordinário sem ciúmes, deuses
novos e estrangeiros serem colocados ao lado deles, com a chegada do Deus dos cristãos,
lançam um grito de terror, e, sacudindo sua tranqüila poeira, abalam-se sobre
seus altares ameaçados: Ecce Dominus ascendit, et commovebuntur simulacra a
facie ejus. Roma estava atenta a esse espetáculo. E logo, quando se percebeu
que esse Deus novo era irreconciliável inimigo dos outros deuses; quando se viu
que os cristãos, dos quais se havia admitido o culto, não queriam admitir o
culto da nação; em uma palavra, quando se constatou o espírito intolerante da
fé cristã, é aí então que começou a perseguição.
Ouvi como os
historiadores do tempo justificam as torturas dos cristãos: eles não falam mal
de sua religião, de seu Deus, de seu Cristo, de suas práticas; só mais tarde é
que inventaram calúnias. Eles os censuram somente por não poderem suportar
outra religião que não seja a deles. “Eu não tinha dúvidas, diz Plínio o jovem,
apesar de seu dogma, que era preciso punir sua teimosia e sua obstinação
inflexível: Pervicaciam et inflexibilem obstinationem”. “Não são criminosos,
diz Tácito, mas são intolerantes, misantropos, inimigos do gênero humano. Há
neles uma fé teimosa em seus princípios, e uma fé exclusiva que condena as
crenças de todos os povos: Apud ipsos fides obstinata, sed adversus omnes alios
hostile odium”. Os pagãos diziam geralmente dos cristãos o que Celso disse dos
judeus, com os quais foram muito tempo confundidos, porque a doutrina cristã
tinha nascido na Judéia. “Que esses homens adiram inviolavelmente às suas leis,
dizia este sofista, nisto não os censuro; eu só censuro aqueles que abandonam a
religião de seus pais para abraçar uma diferente! Mas se os judeus ou os
cristãos querem se dar ares de uma sabedoria mais sublime que aquela do resto
do mundo, eu diria que não se deve crer que sejam mais agradáveis a Deus que os
outros”.
Assim, meus irmãos, o
principal agravo contra os cristãos era a rigidez absoluta de seu Símbolo, e,
como se dizia, o humor insociável de sua teologia. Se só se tratasse de um Deus
a mais, não teria havido reclamações, mas era um Deus incompatível, que expulsava
todos os outros: eis porque a perseguição. Assim, o estabelecimento da Igreja
foi uma obra de intolerância dogmática. Toda a história da Igreja não é outra
que a história dessa intolerância. O que são os mártires? Intolerantes em
matéria de fé, que preferem os suplícios a professarem o erro. O que são os
Símbolos? São fórmulas de intolerância, que determinam o que é preciso crer e
que impõem à razão os Mistérios necessários. O que é o Papado? Uma instituição
de intolerância doutrinal, que pela unidade hierárquica mantém a unidade da fé.
Porque os concílios? Para frear os desvios de pensamentos, condenar as falsas
interpretações do dogma; anatematizar as proposições contrárias à fé.
Nós somos então
intolerantes, exclusivos em matéria de doutrina: nós disto fazemos profissão;
nós nos orgulhamos da nossa intolerância. Se não o fôssemos, não estaríamos com
a verdade, pois que a verdade é uma, e conseqüentemente intolerante. Filha do
céu, a religião cristã, descendo sobre a terra, apresentou os títulos de sua origem;
ela ofereceu ao exame da razão fatos incontestáveis, e que provam
irrefutavelmente sua divindade. Ora, se ela vem de Deus, se Jesus Cristo, seu
autor, pode dizer: Eu sou a verdade: Ego sum veritas, é necessário por uma
conseqüência inevitável, que a Igreja Católica conserve incorruptivelmente esta
verdade tal qual a recebeu do Céu; é necessário que ela repila, que ela exclua
tudo o que é contrário a esta verdade, tudo o que possa destruí-la. Recriminar
a Igreja Católica sua intolerância dogmática, sua afirmação absoluta em matéria
de doutrina é dirigir-lhe uma recriminação muito honrosa. É recriminar a
sentinela ser muito fiel e muito vigilante, é recriminar a esposa ser muito
delicada e exclusiva.
Nós ficamos muitas
vezes confusos do que ouvimos dizer sobre todas essas questões até por pessoas
de senso. A lógica lhes falta, desde que se trata de religião. É a paixão, é o
preconceito que os cega? É um e outro. No fundo, as paixões sabem bem o que
elas querem quando procuram abalar os fundamentos da fé, pondo a religião entre
as coisas sem consistência. Elas não ignoram que, demolindo o dogma, elas
preparam para si uma moral fácil. Diz-se com uma justeza perfeita: é antes o
decálogo que o Símbolo que as faz incrédulas. Se todas as religiões podem ser
postas num mesmo nível, é que elas se equivalem todas; se todas são verdadeiras
é porque todas são falsas; se todos os deuses se toleram, é porque não há Deus.
E se se pode aí chegar, não sobra mais nenhuma moral incômoda. Quantas
consciências estariam tranqüilas, no dia em que a Igreja Católica desse o beijo
fraternal a todas as seitas suas rivais!
Jean-Jacques Rosseau
foi, entre nós, apologista e propagador desse sistema de tolerância religiosa.
A invenção não lhe pertence, se bem que tenha ido mais longe que o
paganismo, o qual nunca chegou a levar a indiferença a tal ponto. Eis, com um
curto comentário, o ponto principal do catecismo genovês, tornado infelizmente
popular: todas as religiões são boas; isto é, de outra forma, todas as
religiões são ruins (...).
A filosofia do século
XIX se espalha por mil canais sobre toda a superfície da França. Esta filosofia
é chamada eclética, sincrética e, com uma pequena modificação, é também chamada
progressiva. Esse belo sistema consiste em dizer que não existe nada falso; que
todas as opiniões e todas as religiões podem ser conciliadas; que o erro não é
possível ao homem, a menos que ele se despoje da humanidade; que todo o erro
dos homens consiste em crer possuírem exclusivamente toda a verdade, quando
cada um deles só tem um elo e que, da reunião de todos esses elos, deve-se
formar a corrente inteira da verdade. Assim, segundo essa inacreditável teoria,
não há religiões falsas, mas elas são todas incompletas umas sem as outras. A
verdadeira seria a religião do ecletismo sincrético e progressivo, a qual
ajuntaria todas as outras, passadas, presentes e futuras: todas as outras, isto
é, a religião natural que reconhece um Deus; o ateísmo que não conhece nenhum;
o panteísmo que o reconhece em tudo e por tudo; o espiritualismo que crê na
alma, e o materialismo que só crê na carne, no sangue e nos humores; as
sociedades evangélicas que admitem uma revelação, e o deísmo racionalista que a
rejeita; o cristianismo que crê no Messias que veio e o judaísmo que o espera
ainda; o catolicismo que obedece ao papa, e o protestantismo que olha o papa
como o anticristo. Tudo isto é conciliável. São diferentes aspectos da verdade.
Da união desses cultos resultará um culto mais largo, mais vasto, o grande
culto verdadeiramente católico, isto é, universal, pois que abrigará todas as
outras no seu seio.
Esta doutrina que
qualificais de absurda, não é minha invenção; ela enche milhares de volumes e
de publicações recentes; e, sem que seu fundo jamais varie, ela toma, todos os
dias, novas formas sob a pena e sobre os lábios dos homens em cujas mãos
repousa os destino da França. — A que ponto de loucura nós então chegamos? —
Nós chegamos ao ponto onde deve logicamente chegar todo aquele que não admite o
princípio incontestável que estabelecemos, a saber: que a verdade é uma, e por
conseqüência intolerante, excludente de toda doutrina que não é a sua. E, para
juntar em poucas palavras toda a substância deste meu discurso, eu lhes direi:
procurais a verdade sobre a terra? Procurai a Igreja intolerante. Todos os
erros podem se fazer concessões mútuas; eles são parentes próximos, pois que
tem um pai comum: Vos ex patre diabolo est. A verdade, filha do céu, é a única
que não capitula.
Sim, Santa Igreja
Católica, vós tendes a verdade, porque vós tendes a unidade, e porque vós sois
intolerante, não deixais decompor esta unidade. É este, meus irmãos, nosso
primeiro princípio: a religião que desce do céu é a verdade, e por conseqüência
ela é intolerante quanto às demais doutrinas.
Não nos peçais a
tolerância em relação às doutrinas. Encorajai, ao contrário, nossa solicitude
em manter a unidade do dogma, que é o único laço da paz sobre a terra. O orador
romano disse: a união dos espíritos é a primeira condição da união dos
corações. E este grande homem faz entrar na definição mesma da amizade, a
unanimidade de pensamento em relação às coisas divinas e humanas: Eadem de
rebus divinis et humanis cum summa charitate juncta concordia.
Nossa sociedade está
sujeita a mil divisões; nós nos lastimamos disso todos os dias. De onde vem
este enfraquecimento das afeições, este resfriamento dos corações? Ah! meus
irmãos, como seriam os corações aproximados onde os espíritos estão tão
distantes? É porque cada um de nós se fecha no amor de si mesmo. Queremos por
fim a essas dissidências sem número que ameaçam destruir todo espírito de
família, de cidade e de pátria? Queremos não ser mais estrangeiros, adversários
e quase inimigos uns dos outros? Voltemos a um Símbolo e nós reencontraremos
logo a concórdia e o amor.
(Sermão pregado na
Catedral de Chartres em 1841)
*Louis-Édouard-François-Désiré Pie (Pontgouin, 26 de setembro de 1815 - Angulema, 18 de maio de 1880)
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