Orlando Fedeli
Hugo de São Victor, famoso mestre medieval, deixou-nos esplêndidos comentários e sermões, além de sua famosa obra Didascalion.
Um de seus muitos opúsculos trata dos Cinco Septenários que
haveria no tesouro da Igreja: os sete pedidos do Pai Nosso; os sete vícios
capitais; os sete dons do Espírito Santo; as sete virtudes e, por fim, as sete
bem-aventuranças.
Poeticamente – esse excelente autor medieval sempre fala com
poesia –, ele nos explica que os sete vícios capitais são comparáveis aos sete
rios de Babilônia, que espalham todo o mal, gota a gota, por toda a terra, pois
deles defluem todos os pecados. Por isso, lembra ele, a Escritura nos diz:
“Junto aos rios de Babilônia nós nos assentamos e choramos
lembrando-nos de ti, ó Sion” (Sl 86,1).
Hugo de São Victor coloca os vícios capitais em uma certa ordem
lógica, a fim de relacioná-los com os sete pedidos do Pai Nosso. Assim ele
ordena os vícios capitais: soberba, inveja, ira, preguiça ou tristeza, avareza,
gula e luxúria.
O primeiro vício capital, causa primeira de todos os nossos males
espirituais, é a soberba. Por esse vício atribuímos a nós mesmos, ao nosso
próprio ser, a causa do bem existente em nós. Pela soberba deixamos de
reconhecer a Deus como fonte de todo o bem. Ao fazer isso, o homem deixa de amar
o Bem em si mesmo, para amar o bem enquanto existe nele próprio, porque existe
nele. Dessa forma, o homem rompe a sua união com a fonte do bem. Condenando a
maldade do orgulho, exclama o mestre:
“Ó peste de orgulho, que fazes tu aí? Por que persuadir o riacho a
se separar de sua fonte? Por que persuadir o raio de luz a romper sua ligação
com o Sol? Por que, senão para que o riacho, cessando de ser alimentado pela
fonte, seque, e que o raio de luz, cortada sua união com o Sol, se converta em
treva? Por que, senão para que assim ambos, no mesmo instante em que cessam de
receber o que ainda não têm, percam imediatamente aquilo mesmo que já têm?”
E assim é que o homem soberbo, arvorando-se como causa do bem que
Deus lhe deu graciosamente, atribui-se uma honra que só cabe a seu Criador. O
soberbo rouba a glória de Deus, e fazendo isso desencadeia sobre si todos os
males. A soberba, portanto, nos despoja do próprio Deus.
Por isso, a primeira petição do Pai Nosso suplica que Deus nos
conceda a graça de reconhecê-Lo sempre como a fonte de todo o bem: ‘Pai nosso
que estais no céu, santificado seja o vosso nome’. Isto é, que Deus seja
glorificado como causa de todo bem existente em nós e em todas as suas
criaturas.
O riacho deve ser grato à fonte que o alimenta. O raio de luz deve
reconhecer o Sol como causa de seu brilho. Só assim continuarão a correr e a
iluminar.
Na primeira petição da oração que nos foi ensinada pela própria
Sabedoria encarnada, rogamos que Deus nos conceda a compreensão e o
reconhecimento de Sua excelência e transcendência, e que assim, por meio do dom
do temor de Deus Altíssimo, sejamos humildes e curemos a enfermidade de nosso
orgulho.
O orgulho é em nós uma doença grave que gera sempre outros males e
enfermidades. Ele nos faz amar o bem que Deus nos concedeu como se fosse nosso,
produzido, em nós, por nós mesmos. É o orgulho que faz o riacho julgar-se
fonte, e o raio de luz julgar-se o Sol.
Quando o homem se deixa dominar pela soberba, ele passa a amar o
bem que recebeu não porque é bem, mas só porque é seu. E, quando vê o mesmo bem
existindo em outro homem, não o ama enquanto bem, mas o detesta porque está em
outro. Ele quereria que aquele bem não existisse no outro, porque julga que
aquele bem só deveria existir nele mesmo, falsa fonte do bem. Vendo o bem, que
julgava ser seu, em outro homem, o orgulhoso fica então triste e amargo.
Tal tristeza amarga se chama inveja, e é a segunda doença que
acomete o homem, o segundo vício capital.
A soberba gera sempre a inveja do bem que Deus concedeu a outrem.
Desse modo, ela nos separa e despoja de nossos irmãos, assim como a soberba nos
despojara e separara de Deus, nosso Criador. E isso é bem justo, porque assim
como o soberbo se regalara desregradamente com a doçura de possuir o bem, agora
ele se amargura ao ver o bem no outro.
Quanto mais o homem soberbo se vangloria de seu bem, mais ele se
atormenta com o bem nos outros. A inveja rói o soberbo e amarga a sua vida.
Se o homem soberbo amasse corretamente o bem que lhe foi dado em
grau limitado, ele amaria sem limite a fonte de todo o bem, que o possui
infinitamente. Amando então o Bem em si mesmo, ele amaria o bem que visse em
qualquer outro homem e se alegraria com a virtude alheia, porque amaria Deus no
outro.
Foi para combater este segundo vício capital que o Divino mestre
nos ensinou a pedir, em segundo lugar no Pai Nosso, ‘Venha a nós o vosso
reino’.
Porque o Reino de Deus é a salvação dos homens; porque Deus reina
num homem quando este lhe está unido pela fé e pela caridade, a fim de que, na
eternidade, esteja para sempre unido a Deus pela visão beatífica.
Quando pedimos a Deus que Ele reine em todas as almas, Ele nos
concede o dom da piedade, que nos torna benignos, desejando também para os
outros o bem que desejamos para nós mesmos.
A inveja, por sua vez, gera em nós uma nova doença. Tal como a
soberba nos persuadira de que somos a causa do bem que temos, e a inveja nos
causa a tristeza de ver o bem nos outros, em seguida a inveja nos leva a
considerar que Deus é injusto ao dar o bem – que pretendíamos fosse apenas
nosso – a nosso irmão.
Consideramos então que o Criador reparte mal seus bens, e que nos
fez injustiça. Por isso, caímos em cólera contra Ele. A ira é então a filha da
inveja. Ela nos leva a revoltar-nos contra Deus, enquanto justo distribuidor
dos bens.
A soberba despoja o homem de Deus. A inveja o separa e despoja dos
demais homens. A cólera o despoja de si mesmo, fazendo-o perder o controle e o
domínio do próprio ser. Porque o colérico tem raiva de Deus, que acusa de
repartir injustamente seus bens, e se enraivece contra si mesmo, porque vê que não
possui todo o bem e percebe seus defeitos e limitações.
A cólera leva então o homem a ter raiva de Deus, dos outros e,
enfim, de si mesmo. Com raiva de si mesmo, o homem, doente pelo vício da
cólera, começa a detestar até o bem que tem em si.
Por todas estas razões é que Nosso Senhor colocou como terceira
petição do Pai Nosso ‘Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu’.
É a conformação com a vontade de Deus que nos permite vencer o
vício da cólera. Quando pedimos sinceramente a Deus, no Pai Nosso, que nos
conformemos com a sua Santíssima Vontade, Ele nos concede então o dom da
Ciência, através do qual somos instruídos e compreendemos que os males que nos
advém são decorrências da justiça e de um castigo misericordioso de nossos
pecados. Compreendemos que devemos aceitá-los com paciência e não com revolta.
E compreendemos ainda que os bens alheios são fruto da generosa misericórdia e
justiça de Deus, a qual visa sempre a sua maior glória e também o nosso maior
bem.
O colérico, pelo contrário, não tendo o dom da Ciência, não
reconhece que mereceu o castigo que sofre, e se revolta. Pelo contrário, quem
tem o dom da Ciência tudo suporta e é consolado.
Caindo nesta terceira enfermidade, a da cólera, o homem já não
possui então, em si, nenhum motivo de alegria nem de consolação. Como não quis
tirar do bem alheio a alegria, o invejoso caiu na tristeza e no autossuplício
da cólera, que o flagela depois que foi despojado de Deus, do próximo e de si
mesmo.
Não encontrando mais em si nem alegria nem consolação, o homem
colérico cai na tristeza. Esse era o nome que os medievais davam à preguiça,
porque o vício capital da preguiça leva a ter tristeza com o bem que recebeu de
Deus, visto que esses bens nos trazem obrigações.
Os vícios capitais anteriores, como vimos, fazem o homem perder
todo o amor ao bem que Deus lhe deu. Agora, dominado pela cólera, ele já não
tem alegria nem no próprio bem, e este bem ainda lhe exige cumprimento de
deveres, porque a quem muito foi dado, muito será pedido. Desconsolado e triste,
o homem soberbo, invejoso e colérico lamenta as obrigações que trazem os bens
que Deus lhe havia dado, e tem pouca vontade de trabalhar na vinha de Cristo. É
da cólera que nasce a preguiça ou tristeza. O colérico preferiria que Deus não
lhe desse bem algum, para não ter mais obrigações. A tristeza ou preguiça ata o
homem na coluna da inércia e o fustiga de tristeza.
Ora, o que nos dá força para trabalhar com alegria e
incansavelmente na vinha do Senhor é o pão de cada dia. Por isso, para combater
a falta de generosidade no serviço de Deus, Jesus nos faz pedir no Pai Nosso:
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje”.
Isto é, que Deus nos conceda a graça e a força necessárias para
cumprir nossos deveres de cada dia. Que Deus nos dê suas graças e força para cumprirmos
os deveres que elas nos acarretam. E esta força de atuar é que traz ao homem a
alegria do dever cumprido.
Com “o pão nosso de cada dia”, o que pedimos, então, é o dom da
Fortaleza, o qual nos dá força e paciência para enfrentar as dificuldades, trabalhos
e cruzes de nossa vida de cada dia. É o dom da Fortaleza que produz em nossa
alma a fome e a sede de justiça de que necessitamos para ir ao céu.
Na quarta petição pedimos, portanto, a fome de justiça e o pão que
a sacia.
E que rio de maldade vai ser gerado pela preguiça ou tristeza?
Da tristeza nascerá a vontade de buscar consolação nos bens
exteriores, porque aquele que não encontra bem ou alegria dentro de si
procurará consolação fora de si.
Da preguiça virá, portanto, a avareza, a cobiça desmesurada de
bens materiais. Quem não tem fome e sede de justiça terá fome e sede de ouro, e
fará da fortuna a sua justiça. E à ausência de consolação e de alegria
interiores se somará a inquietude pela aquisição e pela conservação dos bens
materiais, que só trazem falta de paz, inquietação, apreensão de males e
perturbação de espírito.
A sede de bens materiais somente cresce com a posse deles, e
jamais o homem estará saciado pela riqueza. A riqueza é uma água que faz
crescer sempre mais a sede por ela.
Para combater essa miséria e essa quinta doença – tão baixa – da
alma, Cristo nos mandou que pedíssemos, em quinto lugar: “Perdoai as nossas
dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”.
Pois é bem justo que quem não é avarento no que lhe é devido não
seja também inquietado pelo que deve. O misericordioso com os seus devedores
alcançará misericórdia para si. E quando pedimos a Deus o perdão de nossas
dívidas, no mesmo grau em que estamos dispostos a perdoar o que se nos deve, o
que pedimos e recebemos é o dom do Conselho.
Por esse dom do Espírito Santo sabemos e temos força para exercer
de bom coração a misericórdia para com quem nos ofende, e do modo mais
conveniente, e na hora oportuna, para lhes fazer bem em troca do mal que nos
deram.
Do rio vicioso da avareza, caso ele não seja vencido em nós pela
ação da graça, nascerá um rio mais lamacento ainda, que é o rio da gula. E é
lógico que buscando os bens inferiores, o homem seduzido pelas riquezas – nelas
não encontrando verdadeira consolação, mas só ainda maior inquietação – procure
então num bem inferior, que está nele mesmo, aquilo que os bens inferiores
externos não lhe puderam dar.
Ele busca então o prazer dos sentidos, e em primeiro lugar o
prazer do comer, visto que todo homem, precisando alimentar-se, necessariamente
tem que ser tentado pela gula.
Esse vício seduz o homem e o reduz a um nível inferior ao dos
animais. Aquele homem, pois, que quis se igualar a Deus colocando-se
orgulhosamente como causa do próprio bem, cai agora abaixo dos animais, que só
comem o que lhes é necessário.
Para combater este sexto e tão baixo mal, na oração dominical,
Cristo nos ensina a pedir: “Não nos deixeis cair em tentação”.
Note-se que não se pede para não ter a tentação da gula. Visto que
é necessário que o homem coma, todo homem estará exposto à tentação do comer
desregradamente. A gula explora o apetite natural de subsistência, levando-nos
ao excesso. A pretexto de necessidade, a gula nos induz a comer
irracionalmente.
Por isso, para combatê-la, pedimos a Deus, na sexta petição do Pai
Nosso, que nos conceda o dom da Inteligência. Porque é o apetite da palavra de
Deus que contém o homem na justa medida do apetite do pão material, pois “nem
só de pão vive o homem”. Mas só entende isso quem tem o espírito de
Inteligência, que faz compreender a superioridade dos bens espirituais sobre os
materiais, fazendo o homem vencer a gula pelo jejum e abstinência, e a avareza
acumuladora pela confiança na Providência.
É o espírito de Inteligência que clarifica a visão interior do
homem pelo conhecimento da palavra de Deus, que age como um colírio no olho da
sabedoria.
Seduzido pelo rio lamacento da gula, o homem pecador é arrastado
ao pântano final, onde fica atolado, sujo e preso: a luxúria escravizadora.
Quando o homem se entrega ao prazer da gula, a sua alma se torna
débil e já não consegue dominar o ardor das paixões carnais. Caindo na luxúria,
ele fica escravizado, porque nenhuma paixão tem maior poder de domínio sobre o
homem do que a impureza. Escravo dos amores impuros, o homem jaz na servidão do
demônio, da qual dificilmente se liberta, a não ser pela oração e penitência.
Este é o sétimo e fétido rio dos vícios de Babilônia, do qual, no
Pai Nosso, se pede apropriadamente a libertação: “Livrai-nos do mal”.
É bem natural que o homem escravizado suspire e implore por sua
liberdade. E a sétima petição do Pai Nosso nos implora de Deus Altíssimo o dom
da Sabedoria, que torna realmente o homem livre.
Ora, a palavra sabedoria tem a mesma raiz de sabor. Movida pela
graça e sentindo o gosto da Sabedoria, a alma se liberta da escravidão dos
prazeres materiais e pode, enfim, alçar voo para contemplar a Deus.
Portanto, é a doçura interior e espiritual que dá ao homem a força
de vencer a volúpia mentirosa dos sentidos.
Só então, na posse da Sabedoria e libertada dos vícios, terá a alma a paz de Cristo, que não é a deste mundo.
Fonte: https://floscarmeliestudos.com.br/o-pai-nosso-e-os-vicios-capitais/
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