São Cipriano de Cartago nasceu
entre 200 e 210 dC; converteu-se ao Cristianismo em 246, recebendo o batismo;
elevado a bispo em 249, teve sua atividade pastoral interrompida em 250 em
virtude da violenta perseguição desencadeada pelo imperador Décio. Presidiu 3
concílios regionais em Cartago, entre os anos 251 e 256. Foi decapitado a 14 de
setembro de 258, durante a perseguição de Valeriano.
A obra "A Unidade da Igreja
Católica" (De Ecclesiae Unitate), deve ter sido composta durante o
concílio cartaginês de maio de 251. Nela, Cipriano impugna o cisma de
Novaciano, em Roma, e, ao mesmo tempo, o de Felicíssimo, em Cartago. Acentua,
incute e demonstra o dever de todo cristão de perseverar, para a salvação de
sua alma, na Igreja Católica, isto é, em união com um legítimo bispo católico.
Com a finalidade de combater o cisma de Novaciano, enviou logo sua obra a Roma.
Esta obra é de leitura
obrigatória para todos os cismáticos e hereges de plantão, para que reconheçam
a marca fundamental da verdadeira Igreja de Cristo, isto é, a Unidade, pois "todo reino dividido contra
si mesmo ficará deserto; e a casa dividida contra si mesma cairá" (Luc.
11,17).
I - VIGIAI: O INIMIGO VEM
DISFARÇADO
1. "Vós sois o sal da
terra" (Mt 5,3), diz o Senhor, e ainda nos recomenda que seijamos simples
pela inocência e prudentes na simplicidade [Mt 10,16]. Nada pois é mais
importante para nós, irmãos diletíssimos, quanto vigiar com todo o cuidado para
descobrir logo e, ao mesmo tempo, compreender e evitar as ciladas do inimigo
traiçoeiro. Sem isso, embora sejamos revestidos de Cristo [Rom 13,14; Gál
3,27], que é a Sabedoria de Deus Pai [1Cor 1,24], nos mostraríamos menos sábios
na defesa da salvação.
2. De fato, não devemos temer só a perseguição e os vários ataques que se
desencadeiam abertamente para arruinar e abater os servos de Deus. Quando o
perigo é manifesto, a cautela é mais fácil. O nosso espírito está mais pronto
para lutar contra um adversário abertamente declarado. É mais necessário ter
medo e guardar-nos do inimigo que penetra às escondidas, e se vai insinuando
oculta e tortuosamente com falsas imagens de paz. Bem lhe convém o nome de
serpente! Essa foi sempre a sua astúcia, esse foi sempre o tenebroso e pérfido
engano com que tenta seduzir o homem.
3. Já no começo do mundo mentiu e enganou as almas crédulas e ingênuas (dos
nossos primeiros pais), acariciando-as com palavras falazes [Gên 3,1ss] .
Igualmente ousou tentar a Cristo, nosso Senhor, e se aproximou dele insinuando,
disfarçando, mentindo. Foi contudo desmascarado e repelido. Desta vez, foi
derrotado porque foi reconhecido e descoberto [Mt 4,1ss].
II - ACIMA DE TUDO, CUMPRIR OS
MANDAMENTOS DE CRISTO
1. Sirvam-nos estes exemplos.
Evitemos o caminho do homem velho, para não cair no laço da morte. Sigamos as
pisadas de Cristo vencedor, para que, usando cautela diante do perigo,
alcancemos a verdadeira imortalidade.
2. Mas, como poderíamos chegar à imortalidade, sem observar os mandamentos de
Cristo? São eles os únicos meios para combater e vencer a morte. Ele nos avisa:
"Se queres chegar à vida, observa os mandamentos" (Mt 19,17), e, de
novo: "Se fizerdes o que vos mando, já não vos chamarei servos, mas
amigos" (Jo 15,15).
3. Esses são os que ele diz serem fortes e firmes. Esses têm fundamento sólido
na pedra, e gozam de inabalável resistência contra todas as tempestades e as
rajadas do século. "Quem ouve as minhas palavras - diz ele - e as cumpre é
semelhante ao homem sábio que construiu a sua casa sobre a pedra. Desceu a
chuva, desabaram as correntes, sopraram os ventos, batendo contra aquela casa,
e ela não caiu porque fora fundada na pedra" (Mt 7,25).
4. Devemos, pois, prestar atenção às suas palavras, devemos aprender e praticar
o que ele ensinou e o que fez. Como poderia asseverar que acredita em Cristo
aquele que não cumpre o que Cristo mandou? E como conseguirá o prêmio da fé
aquele que recusa a fé no que foi mandado? Fatalmente ele irá vacilando, à
ventura, e, arrastado pelo espírito do erro, será varrido como pó agitado pelo
vento.
5. Nunca poderão conduzir à salvação os passos daquele que não adere à verdade
da única via que salva.
III - O DEMÔNIO É O AUTOR DOS
CISMAS
1. Devemos pois guardar-nos,
irmãos caríssimos, não só dos males que aparecem claramente como tais, mas
também, como já disse, daqueles que nos enganam pela sutileza da astúcia e da
fraude.
2. Pois bem, vede agora a que ponto chega a astúcia e a sutileza do inimigo.
Veio Cristo ao mundo. Veio a luz para os povos e resplandeceu para a salvação
dos homens [Lc 2,32]. Com isto ficou descoberto e derrotado o antigo
adversário. Os surdos abrem os ouvidos às graças espirituais, os cegos abrem os
olhos a Deus, os enfermos ficam são ao ganhar a saúde eterna, os coxos correm à
Igreja, os mudos soltam as suas línguas na oração [Mt 11,5; Lc 7,22]. Aumenta
dia a dia o povo fiel, abandonam-se os velhos ídolos, tornam-se desertos os
seus templos.
3. Então, o que faz o malvado? Inventa nova fraude para enganar os incautos com
o próprio título do nome cristão. Introduz as heresias e os cismas para
derrubar a fé, para contaminar a verdade e dilacerar a unidade. Assim, não
podendo mais segurar os seus na cegueira da antiga superstição, os rodeia, os
conduz ao erro por novos caminhos. Rouba à Igreja os homens e, fazendo-lhes
acreditar que alcançaram a luz e se subtraíram à noite do século, envolve-os
ainda mais nas trevas: não observam a lei do Evangelho de Cristo e se dizem
cristãos, andam na escuridão e pensam que possuem a luz, nisto são iludidos e
lisonjeados pelo adversário, que, como diz o Apóstolo, "se transfigura em
anjo de luz" (2Cor 11,14).
4. Disfarça seus ministros em ministros de justiça, ensina-lhes a dar à noite o
nome de dia, à perdição o nome de salvação, ensina-lhes a propalar o desespero
e a perfídia sob o rótulo da esperança e da fé, a apregoar o Anticristo com o
nome de Cristo. Mestres na arte de mentir, diluem com as suas sutilezas toda a
verdade.
5. Isto acontece, irmãos caríssimos, porque não se bebe à fonte mesma da verdade,
não se busca aquele que é a Cabeça, nem se observam os ensinamentos do Mestre
celestial.
IV - "TU ÉS PEDRO, E SOBRE
ESTA PEDRA..."
1. Quem presta atenção a estes
ensinamentos não precisa de longo estudo, nem de muitas demonstrações. A prova
da nossa fé é fácil e compendiosa.
2. Assim fala o Senhor a Pedro: "Eu te digo que tu és Pedro e sobre esta
pedra edificarei a minha Igreja e as portas dos infernos não a vencerão.
Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus e tudo o que ligares na terra será ligado
também nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado também nos
céus" (Mt 16,18-19).
3. Sobre um só edificou a sua Igreja. Embora, depois da sua ressurreição, tenha
comunicado igual poder a todos os Apóstolos, dizendo: "Como o Pai me
enviou, eu vos envio a vós. Recebei o Espírito Santo, a quem perdoardes os
pecados ser-lhe-ão perdoados, a quem os retiverdes ser-lhe-ão retidos" (Jo
20,21-23), todavia, para tornar manifesta a unidade, dispôs com a sua
autoridade que a origem da unidade procedesse de um só.
4. É verdade que os demais Apóstolos eram o mesmo que Pedro, tendo recebido
igual parte de honra e de poder, mas a primeira urdidura começa pela unidade a
fim de que a Igreja de Cristo aparecesse uma só.
5. O Espírito Santo, falando na pessoa do Senhor, designa esta Igreja única
quando diz no Cântico dos Cânticos: "Uma só é a minha pomba, a minha
perfeita, única filha da sua mãe e sem igual para a sua progenitora" (Cânt
6,9).
6. Aquele que não guarda esta unidade poderá pensar que ainda guarda a fé?
Aquele que resiste e faz oposição à Igreja poderá confiar que ainda está na
Igreja?
7. Paulo apóstolo inculca o mesmo ensinamento e mostra o sacramento da unidade,
dizendo: "Um só corpo e um só espírito, uma é a esperança da vossa
vocação, um Senhor, uma fé, um Batismo, um só Deus" (Ef 4,4-5).
8. E, depois da ressurreição, diz ao mesmo: "Apascenta as minhas
ovelhas" (Jo 21,17). Sobre ele só constrói a Igreja e lhe manda que
apascente as suas ovelhas. Embora comunique a todos os Apóstolos igual poder,
todavia institui uma só cátedra, determinando assim a origem da unidade.
9. É verdade que os demais [Apóstolos] eram o mesmo que Pedro, mas o primado é
conferido a Pedro para que fosse evidente que há uma só Igreja e uma só
cátedra. Todos são pastores, mas é anunciado um só rebanho, que deve ser
apascentado por todos os Apóstolos em unânime harmonia.
10. Aquele que não guarda esta unidade, proclamada também por Paulo, poderá
pensar que ainda guarda a fé? Aquele que abandona a cátedra de Pedro, sobre o
qual foi fundada a Igreja, poderá confiar que ainda está na Igreja?
V - A IGREJA ÚNICA E UNIVERSAL:
MUITOS SÃO OS RAIOS, UMA A LUZ...
1. Esta unidade devemos guardar e
exigir com firmeza, especialmente nós, bispos, que na Igreja presidimos, para
dar prova de que o episcopado também é um e indiviso. Ninguém engane os irmãos
com mentiras, ninguém corrompa a pureza da fé com pérfidos desvios.
2. Uma só é a ordem episcopal e cada um de nós participa dela completamente.
Mas a Igreja também é uma, embora, em seu fecundo crescimento, se vá dilatando
numa multidão sempre maior.
3. Assim muitos são os raios do sol, mas uma só é a luz, muitos os ramos de uma
árvore, mas um só é o tronco preso à firme raiz. E quando de uma única nascente
emanam diversos riachos, embora corram separados e sejam muitos, graças ao
copioso caudal que recebem, todavia permanecem unidos na fonte comum.
4. Se pudéssemos separar o raio do corpo do sol, na luz assim dividida já não
haveria unidade. Quando se quebra um ramo da árvore, o ramo quebrado já não
pode vicejar. Se separamos um regato da fonte, ele secará.
5. Igualmente a Igreja do Senhor, resplandecente de luz, lança seus raios no
mundo inteiro, mas a sua luz, difundindo-se em toda a parte, continua sendo a
mesma e, de modo nenhum, é abalada a unidade do corpo.
6. Na sua exuberante fertilidade, estende os seus ramos em toda a terra,
derrama as suas águas em vivas torrentes, mas uma só é a cabeça, uma a fonte,
uma a mãe, tão rica nos frutos da sua fecundidade. Do parto dela nascemos, é
dela o leite que nos alimenta, dela o Espírito que nos vivifica.
VI - ÚNICA ESPOSA DE CRISTO: NÃO
PODE TER DEUS POR PAI, QUEM NÃO TEM A IGREJA POR MÃE
1. A Esposa de Cristo não pode
tornar-se adúltera, ela é incorruptível e casta [Cf Ef 5,24-31]. Conhece só uma
casa, observa, com delicado pudor, a inviolabilidade de um só tálamo. É ela que
nos guarda para Deus e torna partícipes do Reino os filhos que gerou.
2. Aquele que, afastando-se da Igreja, vai juntar-se a uma adúltera, fica
privado dos bens prometidos à Igreja. Quem abandona a Igreja de Cristo não
chegará aos prêmios de Cristo. Torna-se estranho, torna-se profano, torna-se
inimigo.
3. Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe. Como ninguém se
pôde salvar fora da arca de Noé, assim ninguém se salva fora da Igreja.
4. O Senhor nos alerta e diz: "Quem não está comigo está contra mim, quem
comigo não recolhe, dissipa" (Mt 12,30). Quem rompe a paz e a concórdia de
Cristo trabalha contra Cristo. Quem faz colheita alhures, fora da Igreja, esse
dissipa a Igreja de Cristo.
5. Diz ainda o Senhor: "Eu e o Pai somos um" (Jo 10,30), e do Pai, do
Filho e do Espírito Santo está escrito: "Estes três são um" (1Jo
5,7). Como poderá alguém pensar que esta unidade da Igreja, decorrente da
própria firmeza da unidade divina, e tão conforme com este celeste mistério,
pode ser rompida e sacrificada ao arbítrio de vontades opostas? Quem não
observa esta unidade não observa a lei de Deus, não observa a fé do Pai e do
Filho, não possui nem a vida, nem a salvação.
VII - A TÚNICA INCONSÚTIL DE
CRISTO
1. Este sacramento da unidade,
este vínculo de concórdia inviolada e sem rachadura, é figurado também pela
túnica do Senhor Jesus Cristo. Como lemos no Evangelho, ela não foi dividida,
nem, de modo algum, rasgada, mas sorteada. Isto quer dizer que quem toma a
veste de Cristo e tem a dita de se revestir do próprio Cristo [Rom 13,14; Gál
3,27], deve receber a sua túnica toda inteira e possuí-la intacta e sem
divisão.
2. Diz a divina Escritura: "Quanto à túnica, visto que, desde a parte
superior, era feita de uma única tecedura, sem costura alguma, disseram: não a
dividamos, mas lancemos-lhe a sorte para ver a quem toca" (Jo 19,23-24). A
unidade da túnica derivava da sua parte superior - em nosso caso, do céu e do
Pai celeste. Aquele que a recebia e guardava não podia rasgá-la de modo nenhum,
de fato ela era resistente e sólida por ser constituída de um modo inseparável.
3. Não pode possuir a veste de Cristo aquele que rasga e divide a Igreja de
Cristo.
4. O contrário aconteceu à morte de Salomão, quando o seu reino e o povo deviam
ser divididos. O profeta Aías, indo ao encontro do rei Jeroboão no campo,
cortou o seu manto em doze partes, dizendo: "Toma para ti dez partes,
porque assim diz o Senhor: eis que eu divido o reino da mão de Salomão, a ti
darei dez cetros e dois ficarão para ele, por causa do meu servo Davi e de
Jerusalém, a cidade eleita em que eu pus o meu nome" (1Rs 11,30-36). Para
separar as doze tribos de Israel, o profeta dividiu O seu manto
5. Mas o povo de Cristo não pode ser dividido, e por isso a sua túnica, que era
um todo feito de uma só tecedura, não foi dividida por aqueles que a deviam
possuir. Ficando uma só, bem firme na sua contextura, ela mostra a união e a
concórdia do nosso povo, isto é, daqueles que são revestidos de Cristo. Por
este sinal sagrado da sua veste, proclamou ele a unidade da Igreja.
VIII - FIGURAS DO ANTIGO
TESTAMENTO: RAABE, O CORDEIRO PASCAL
1. Portanto quem será tão
celerado e pérfido, tão louco pelo furor da discórdia, para pensar como
possível ou até para ousar romper a unidade de Deus, a veste do Senhor, a
Igreja de Cristo?
2. Ainda uma vez nos avisa ele no Evangelho dizendo: "E haverá um só
rebanho e um só pastor" (Jo 10,16). E como se pode pensar que, num mesmo
lugar, existam muitos pastores e muitos rebanhos?
3. O apóstolo Paulo, por sua vez, inculcando esta mesma unidade, suplica e
exorta: "Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que
todos digais as mesmas coisas e não se dêem cismas entre vós. Sede unidos no
mesmo sentimento e no mesmo pensamento" (1Cor 1,10) E de novo:
"Sustentando-vos mutuamente no amor, esforçando-vos por conservar a
unidade do Espírito na união da paz" (Ef 4,2-3).
4. Achas tu que alguém pode afastar-se da Igreja, fundar, a seu arbítrio,
outras sedes e moradias diversas e ainda perseverar na vida? Ouve o que foi
dito a Raabe, na qual era prefigurada a Igreja: "Recolhe teu pai, tua mãe,
teus irmãos e toda a tua família junto de ti, na tua casa, e qualquer um que
ouse sair fora da porta da tua casa, será ele próprio culpado da sua
perda" (Jos 2,18-19).
5. Igualmente o sacramento da Páscoa [antiga], como lemos no Êxodo, exigia que
o cordeiro, morto como figura de Cristo, fosse comido numa só casa. Eis as
palavras de Deus: "Seja comido numa só casa, não jogueis fora da casa
carne alguma dele" (Ex 12,46). A carne de Cristo, o Santo do Senhor, não
pode ser jogado fora. Para os que nele crêem, não há outra casa a não ser a
única Igreja.
6. O Espírito Santo anuncia e significa esta casa, esta morada da união dos
corações, dizendo nos salmos: "Deus faz habitar na casa aqueles que são
unânimes" (Sl 67,7). Na casa de Deus, na Igreja de Cristo, os moradores são
unidos e perseveram na concórdia e na simplicidade.
IX - A POMBA, EXEMPLO DE
SOCIABILIDADE E CONCÓRDIA
1. Por isto também o Espírito
Santo desceu em forma de pomba [Mt 3,16; Mc 1,10], animal simples e alegre, sem
amargura alguma de fel, incapaz de se enfurecer; não morde, não arranha com as
unhas. Prefere as moradias dos homens e gosta de habitar numa mesma casa.
Quando criam, as pombas cuidam dos filhotes juntamente, quando viajam, voam
pertinho umas das outras. Passam o tempo em tranqüilos arrulhos, manifestam a
concórdia e a paz beijando-se no rosto. Enfim, em todas as coisas seguem a lei
da boa harmonia.
2. Esta é a simplicidade que deve reinar na Igreja, essa a caridade que devemos
realizar: o amor fraternal imite as pombas, a mansidão e a brandura sejam
iguais às dos cordeiros e das ovelhas.
3. Como podem estar no coração de um cristão a ferocidade dos lobos, a raiva
dos cães, o veneno mortífero das serpentes ou a crueldade sanguinária das
feras?
4. Devemos alegrar-nos quando os que têm esses sentimentos se separam da
Igreja. Assim as pombas e as ovelhas de Cristo não serão contagiadas pela sua
maldade e pelo seu veneno. Não podem conciliar-se e juntar-se amargura e
doçura, trevas e luz, chuva e céu sereno, guerra e paz, esterilidade e fecundidade,
secura e manancial, tempestade e bonança.
5. Não acreditem que os bons possam deixar a Igreja: não é o trigo que o vento
carrega, o furacão não arranca as árvores que têm sólidas raízes. Ao contrário
são as palhas vazias que a tormenta agita, são as árvores vacilantes que a
força dos turbilhões abate. Contra esses o apóstolo S. João manifesta a sua
repulsa, dizendo: "Saíram do nosso meio, mas não eram dos nossos. Se
tivessem sido dos nossos, sem dúvida teriam ficado conosco" (1Jo 2,19).
X - ORIGEM E MALDADE DAS HERESIAS
1. A origem de onde nasceram
freqüentemente e continuam nascendo as heresias é a seguinte: há mentes
perversas e sem paz, que, discordando em sua perfídia, não podem suportar a
unidade. O Senhor, por seu lado, respeita a liberdade do arbítrio humano,
permite e tolera que isto aconteça, a fim de que o crisol da verdade purifique
os nossos corações e as nossas mentes, e, na provação, resplandeça com luz
inequívoca a integridade da fé.
2. O Espírito Santo nos previne, por meio do Apóstolo: "Convém que haja
heresias para que entre vós se tornem manifestos os que resistem à prova"
(1Cor 11,19). Assim, aqui mesmo, antes do dia do juízo, são divididas as almas
dos justos e dos perversos e as palhas são separadas do trigo.
3. Esses são os que, por própria iniciativa e sem chamamento divino, se põem a
encabeçar temerários grupinhos. Contra toda a lei da ordenação, se constituem
superiores e, sem que ninguém lhes dê o episcopado, se atribuem a si mesmos o
nome de bispos. A eles faz alusão o Espírito Santo, no Salmo, falando dos que
estão sentados em cátedras de pestilência, porque são peste infecciosa da fé.
Mestres na arte de corromper a verdade, eles enganam com bocas de serpente,
vomitando de suas línguas pestilentas peçonhas mortíferas. Os seus discursos
brotam como chaga cancerosa, o trato com eles deixa no fundo de cada coração um
veneno mortal.
XI - O BATISMO CISMÁTICO
1. Contra esses homens brada o
Senhor, para afastar ou retirar deles o seu povo desviado: "Não escuteis
os sermões dos pseudoprofetas, porque vivem iludidos pelas alucinações do seu
coração. Falam, mas não as palavras do Senhor. Aos que rejeitam a palavra de
Deus dizem eles: tereis a paz, vós e todos os que andam segundo as próprias
vontades. Não virá mal algum, ainda sobre aqueles que seguem os erros do
próprio coração. Eu não lhes falei e eles vão profetando. Se tivessem atendido
ao meu conselho, ouvido as minhas palavras e as tivessem ensinado ao meu povo,
eu os teria convertido dos seus perversos pensamentos" (Jer 23,16-22).
2. E de novo fala deles o Senhor: "Abandonaram a mim, que sou a fonte da
água viva, e escavaram para si covas escuras, que nem podem dar água" (Jer
2,13).
3. Enquanto não pode haver senão um Batismo, eles pensam que podem batizar.
Abandonaram a fonte da vida e ainda prometem a graça da água que dá a vida e a
salvação. Lá os homens não são purificados, mas, ao contrário, mais poluídos.
Lá os pecados não são perdoados, mas, antes, aumentados. Aquele nascimento não
gera filhos para Deus, mas para o demônio.
4. Os que pretendem nascer por meio da mentira não recebem absolutamente as
promessas da verdade. Gerados pela perfídia, não alcançam a graça da fé.
Aqueles que, no delírio da discórdia, quebraram a paz do Senhor, não podem
chegar ao prêmio da paz.
XII - "ONDE DOIS OU
TRÊS..." (Mt 18,20)
1. Alguns se enganam a si mesmos
com uma presunçosa interpretação das palavras do Senhor, que disse: "Onde
quer que se encontrem dois ou três reunidos em meu nome, eu mesmo estou com
eles" (Mt 18,20).
2. São falsificadores do Evangelho e intérpretes mentirosos. Apegam-se ao que é
dito depois, esquecendo o que foi dito antes, lembram-se de uma parte da frase
e, astutamente, deixam do lado a outra. Assim como eles se separaram da Igreja,
do mesmo modo truncam o sentido de uma única sentença.
3. De fato, o que queria dizer nosso Senhor? Para inculcar aos seus discípulos
a união e a paz, diz ele: "Eu vos afirmo que, se dois de vós concordarem
na terra em pedir qualquer coisa, ela lhes será outorgada por meu Pai que está
nos céus" (Mt 18,19). E continua: "Onde quer que se encontrem dois ou
três reunidos em meu nome, eu mesmo estou com eles", mostrando que o que
mais vale na oração não é o número dos que oram, mas a sua união de espírito.
4. "Se dois de vós concordarem na terra", diz ele. Antes exige a
união, põe na frente a paz: o seu primeiro e mais firme preceito é que entre
nós haja acordo. E como poderá estar de acordo com alguém aquele que está em
desacordo com o corpo da Igreja e a totalidade dos irmãos?
5. Como poderão estar reunidos dois ou três em nome de Cristo, se é patente que
estão separados de Cristo e do seu Evangelho? De fato não somos nós que nos
apartamos deles, mas eles de nós. E quando, em seguida, formando entre si
vários grupos, deram origem a heresias e cismas, abandonaram a cabeça e a fonte
da verdade.
6. O Senhor quer falar da sua Igreja e dirige aquelas palavras àqueles que
estão na Igreja, dizendo que, se dois ou três deles estiverem concordes, como
ele ensinou e mandou, e se reunirem em um só espírito para rezar, embora sejam
só dois ou três, impetrarão da majestade de Deus o que pedem.
7. "Onde quer que se encontrem reunidos em meu nome dois ou três, eu mesmo
estou com eles", quer dizer com os simples, com os pacíficos, com os que
temem a Deus e observam os seus preceitos. Com esses, ainda que não fossem mais
do que dois ou três, prometeu que estaria, assim como esteve com os três jovens
na fornalha ardente, e, porque permaneciam simples com Deus e unidos entre si,
até no meio das chamas, os animou com uma brisa de orvalho (Dan 3,50).
8. Do mesmo modo esteve presente aos dois Apóstolos encerrados na cadeia,
porque eram simples e unânimes. Ele mesmo abriu as portas do cárcere e os
conduziu de novo à praça para que pregassem à multidão a palavra que tão
fielmente anunciavam.
9. Por conseguinte, quando o Senhor coloca entre os seus preceitos estas
palavras: "Onde quer que se encontrem dois ou três reunidos em meu nome,
eu mesmo estou com eles", não quer separar os homens da Igreja, pois ele
mesmo instituiu e formou a Igreja, mas ao contrário, repreendendo os pérfidos
pela discórdia e encarecendo, com a sua própria voz, a paz aos fiéis, quer
mostrar que ele está mais com dois ou três que oram unânimes, do que com muitos
que oram na dissidência, e que obtém mais a prece concorde de poucos que a
oração sediciosa de muitos.
XIII - NÃO ACHARÁ A DEUS PROPÍCIO
QUEM NÃO ESTÁ EM PAZ COM O IRMÃO
1. Por isto, quando ensinou o
modo de orar, acrescentou: "Quando estiverdes em pé para orar, perdoai, se
por acaso tendes mágoa contra alguém, a fim de que o vosso Pai que está nos
céus vos perdoe também os pecados" (Mc 11,25). E se alguém vier ao
sacrifício, estando de mal com alguém, ele o afasta do altar e ordena que,
antes, se ponha de acordo com o irmão, e só depois volte em paz para oferecer a
Deus a sua dádiva [Cf Mt 5,24].
2. Deus não olhou aos presentes de Caim [Gên 4,5], porque aquele que, pelo
rancor da inveja, não tinha paz com o irmão, não podia encontrar a Deus
propício.
3. Que espécie de paz podem pretender os inimigos dos irmãos? Que sacrifício
pensam eles oferecer, enquanto não são que rivais dos sacerdotes? Julgam que
Cristo esteja presente nas suas reuniões, enquanto se reúnem fora da Igreja de
Cristo?
XIV - NEM O MARTÍRIO LAVA A
MANCHA DA DISCÓRDIA
1. Ainda que esses homens fossem
mortos pela confissão do nome cristão, o seu sangue não lavaria esta mancha. O
pecado da discórdia é tão grande e tão imperdoável, que não se apaga nem pelos
tormentos. Não pode ser mártir quem não está na Igreja, não pode alcançar o
Reino quem abandonou aquela que nasceu para reinar.
2. Cristo nos deu a paz. Ele nos mandou que fôssemos concordes e unidos,
ordenou que os laços do amor e da caridade fossem conservados intactos e sem
rachadura. Não pode iludir-se de ser mártir aquele que não conservou a caridade
fraterna.
3. O apóstolo Paulo ensina e testemunha isto mesmo quando diz: "Ainda que
eu tivesse fé para remover as montanhas, mas não tivesse a caridade, eu nada
seria, ainda que distribuísse em alimento dos pobres tudo o que é meu, e
entregasse o meu corpo às chamas, mas não tivesse a caridade de nada
adiantaria. A caridade é magnânima, a caridade é benigna, a caridade não
rivaliza, não faz mal, não se pavoneia, não se irrita, não pensa com maldade,
tudo ama, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade jamais termina"
(1Cor 13,1-9).
4. A caridade nunca termina, ela estará sempre no Reino, durará eternamente
pela unidade dos irmãos em mútua harmonia. A discórdia não entra no Reino dos
céus. Quem, com pérfida divisão, violou a caridade de Cristo, não poderá chegar
aos prêmios do mesmo Cristo, que disse: "Este é o meu mandamento, que vos
ameis mutuamente como eu vos amei" (JO 15,12).
5. Quem vive sem caridade está sem Deus. Eis a voz do bem-aventurado apóstolo
João: "Deus é amor. Quem permanece no amor permanece em Deus e Deus
nele" (1Jo 4,16). Não podem permanecer com Deus os que não quiseram estar
unidos na Igreja de Deus. Ainda que, lançados no fogo, fossem consumidos pelas
chamas ou perdessem a vida sendo expostos às feras, tudo isto não seria unia
coroa da fé, mas, antes, um castigo da sua perfídia, não seria o desfecho
glorioso de uma vida religiosa intrépida, mas um fim sem esperança.
6. Um homem assim poderia ser morto, mas não coroado. Ele confessa que é
cristão do mesmo modo que o diabo, muitas vezes, engana dizendo ser ele o
Cristo. Escutemos o aviso do Senhor: "Muitos virão com o meu nome,
dizendo: sou eu o Cristo, e enganarão a muitos" (Mc 13,16). Como o diabo
não é Cristo, embora tome este nome, assim não pode passar por cristão aquele
que não permanece na verdade do Evangelho e na fé de Cristo.
XV - A LEI DO AMOR E A UNIDADE
1. É certamente coisa incomum e
admirável profetizar, expulsar demônios e fazer obras portentosas aqui na
terra, mas quem faz todas essas coisas não conseguirá o Reino celeste se não
anda no caminho reto e certo.
2. Ouçamos ainda o Senhor: "Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor,
não te lembras que em teu nome profetizamos e em teu nome expulsamos demônios e
em teu nome fizemos obras portentosas? Eu porém lhes direi: jamais vos conheci,
apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade" (Mt 7,21-23). É
necessária a justiça para que alguém possa ser premiado por Deus. É necessário
obedecer aos seus mandamentos e aos seus avisos, para que os nossos méritos alcancem
a recompensa.
3. O Senhor, no Evangelho, querendo mostrar-nos em breve resumo a senda da
nossa fé e da nossa esperança, disse: "O Senhor, teu Deus, é um só",
e continua: "Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a
tua alma, de todas as tuas forças" (Mc 12,29-31). "Eis o primeiro
mandamento. O segundo é semelhante a ele: amarás ao teu próximo como a ti
mesmo. Nestes dois preceitos funda-se toda a lei e também os profetas" (Mt
22,39-40).
4. Com a sua autoridade ensinou, ao mesmo tempo, a unidade e o amor. Em dois
preceitos compendiou a lei e todos os Profetas. Mas que unidade observa, que
amor pensa praticar aquele que, como doido pelo furor da discórdia, divide a
Igreja, destrói a fé, perturba a paz, aniquila a caridade, profana o Sacramento?
XVI - ESSAS ABERRAÇÕES FORAM
PREDITAS
1. Este mal, ó irmãos
fidelíssimos, já tinha começado algum tempo atrás, mas agora, como triste
calamidade, foi crescendo dia a dia e a venenosa praga da heresia e dos cismas
aparece e pulula sempre mais. Assim deve acontecer no fim do mundo, como nos
vaticina e nos avisa o Espírito Santo por meio do Apóstolo: "Nos últimos
dias, diz ele, chegarão tempos difíceis e haverá homens que só buscam os
próprios gostos, soberbos, arrogantes, avarentos, blasfemos, desobedientes aos
pais, ingratos, desalmados, sem afeição e sem respeito de compromisso,
caluniadores, incontinentes, violentos, sem nenhum amor ao bem, traidores,
atrevidos, estupidamente altivos, amando mais os prazeres que Deus, ostentando
um verniz de religiosidade, mas conculcando todo valor religioso. Deles são os
que se insinuam nas casas e conquistam mulherzinhas carregadas de pecados, que
se deixam levar por várias volúpias e se mostram sempre curiosos de saber, mas
nunca chegam ao conhecimento da verdade. E como Jamnes e Mambres fizeram
resistência contra Moisés, assim estes resistem à verdade. Mas não serão bem
sucedidos, porque a sua incapacidade será a todos manifesta, como aconteceu
àqueles" (2Tim 3,1-9).
2. Tudo o que tinha sido preanunciado se está cumprindo e, enquanto se aproxima
o fim do mundo, tudo se realiza nas pessoas e nos acontecimentos.
3. O adversário está solto. Cada vez mais, o erro vai espalhando os seus
enganos. A insensatez gera orgulho, arde a inveja, a cobiça chega até à
cegueira, a impiedade deprava, a soberba incha, a discórdia exaspera, a ira
enfurece.
XVII - NÃO CEDER AO ESCÃNDALO.
EVITAR OS HEREGES
1. Porém não nos impressione nem
perturbe essa desmedida e temerária perfídia de muitos. Ao contrário, torne-se
mais forte a nossa fé ao constatarmos a verdade do que foi profetizado. Alguns
fizeram-se traidores, porque assim fora predito; os demais irmãos, em virtude
da mesma profecia, acautelem-se contra essas coisas, escutando a voz do Senhor,
que diz: "Vós, porém, acautelai-vos, porque eis que eu vos predisse
tudo" (Mc 13-23).
2. Evitai, pois, eu vo-lo peço, irmãos, esses homens e repeli, de vosso lado e
de vossos ouvidos suas perniciosas conversas, como se repele um contágio
mortífero. Está escrito: "Cerca os teus ouvidos com uma sebe de espinhos e
não ouças a língua maldosa" (Eclo 28,24). E ainda: "As péssimas
conversas corrompem até as pessoas de boa índole" (1Cor 15,33). O Senhor
nos recomenda que evitemos essa gente. "São cegos, diz ele, e guias de
cegos. Quando é um cego que conduz outro cego, caem juntos na fossa" (Mt
15,14).
3. Convém estar longe e fugir de qualquer um que se separou da Igreja. É um
transviado, um culpado, ele se condena por si próprio [Cf Ti 3,11]. Poderá
pensar que está com Cristo aquele que está tramando contra os sacerdotes de
Cristo e se separa da comunidade do seu clero e do seu povo? Ele levanta armas
contra a Igreja e resiste às ordens de Deus. Adversário do altar, rebelde
contra o Sacrifício de Cristo, traidor na fé, sacrílego na religião, servo
intratável, filho ímpio, irmão inimigo, despreza os bispos e abandona os
sacerdotes de Deus e ousa erguer um outro altar, pronunciar com voz ilícita uma
outra prece, profanar, com falsos sacrifícios, a Hóstia do Senhor, e esquece
que quem vai contra as ordens de Deus será punido com os divinos castigos pela
sua atrevida audácia.
XVIII - CASTIGOS DOS PROFANADORES
DO CULTO
1. Assim Coré, Datã e Abirão
receberam, sem demora, o castigo da sua presunção, porque, violando as ordens
de Moisés e do sacerdote Aarão, pretenderam usurpar o direito de oferecer
sacrifícios [Cf Num 16,31-35]. A terra perdeu a sua firmeza, fendeu-se numa
profunda voragem, e o chão, assim aberto, os engoliu vivos e em pé. A justiça
indignada de Deus não atingiu só os autores daquele gesto, mas também os outros
duzentos e cinqüenta, seus companheiros, que foram cúmplices e solidários com
eles. De repente saiu do Senhor um fogo punitivo e os consumiu. Isto deve valer
como demonstração e sinal de que foi ofensa contra Deus tudo o que aqueles
perversos tentaram, com suas vontades humanas, para frustrar as ordens do
próprio Deus.
2. Assim aconteceu também ao rei Ozias, quando segurou o turíbulo e, com
violência, pretendeu oferecer ele mesmo o incenso, violando a lei de Deus e
desobedecendo ao sacerdote Azarias, que a isto se opunha [Cf 2Crôn 26,16-20].
Lá mesmo foi confundido pela divina indignação e acometido por uma espécie de
lepra na fronte. Pela sua ofensa a Deus, foi punido justamente naquela parte do
corpo, onde recebem o sinal (da cruz) os eleitos de Deus.
3. Também os filhos de Aarão, por ter colocado no altar um fogo profano, contra
os preceitos do Senhor, foram mortos no mesmo instante pela divina vingança [Cf
Lev 10,1-2; Num 3,4].
XIX - MENOS GRAVE É O PECADO DOS
LAPSOS
1. São esses os exemplos que
seguem e imitam os que buscam doutrinas estranhas, introduzem ensinamentos de
invenção humana e desprezam a divina tradição. A eles aplicam-se as repreensões
e as censuras do Evangelho: "Rejeitais o mandamento de Deus para
apegar-vos à vossa própria tradição (pagã)" (Mc 7,90).
2. Este crime é pior do que aquele que se pensa terem cometido os lapsos, ao
menos se falarmos dos que estão arrependidos e rogam a Deus perdão do seu
pecado, dispostos a dar completa satisfação. Os lapsos, com súplicas, procuram
a Igreja, os cismáticos combatem-na. Os primeiros podem ter sido vítimas de
alguma pressão, os segundos erram no pleno uso da sua liberdade. O lapso,
pecando, se prejudicou unicamente a si mesmo, ao passo que aquele que tenta
criar heresias e cismas engana a muitos, arrastando-os à sua seita. Lá há
detrimento de uma só alma, aqui o perigo é de muitos. O lapso reconhece que
certamente pecou, disto lamenta-se e chora, o cismático, cheio de orgulho no
seu coração e comprazendo-se dos seus próprios erros, arranca os filhos à mãe,
afasta, com aliciamentos, as ovelhas do Pastor, arrasa os divinos Sacramentos.
3. O lapso pecou só uma vez, o outro continua pecando a cada dia. Por fim, o
lapso, mais tarde, poderá enfrentar o martírio e conseguir as promessas do
Reino, o cismático, ao contrário, se for morto enquanto está fora da Igreja,
não alcançará os prêmios da Igreja.
XX - CONFESSORES QUE NÃO
PERSEVERARAM
1. Não deveis estranhar, irmãos
diletíssimos, que até entre os confessores haja alguns que caíram nestes
crimes. Acontece também que alguns deles cometam outros pecados graves e
vergonhosos. A confissão da fé não torna uma pessoa imune das ciladas do
demônio. A quem ainda vive neste mundo ela não comunica uma perpétua segurança
contra as tentações, os perigos e o ímpeto dos ataques mundanos. Se assim
fosse, não veríamos, em confessores, os roubos, os estupros e os adultérios,
que agora, com imensa tristeza, devemos lamentar em alguns deles.
2. Quem quer que seja um confessor, ele não poderá ser maior, melhor e mais
amigo de Deus que Salomão. Entretanto, este, durante o tempo em que se manteve
nos caminhos do Senhor, conservou a benevolência com que o mesmo Senhor o tinha
favorecido, mas quando se desviou destes caminhos, perdeu também a benevolência
do Senhor [3Rs 11,9].
3. Por isto diz a Escritura: "Segura o que tens, para que um outro não
tome a tua coroa" (Ap 3,11). Se lá o Senhor ameaça tirar a alguém a coroa
da justiça, é sinal que quem renuncia à justiça fica privado também da coroa.
XXI - A HONRA DA
"CONFISSÃO" AUMENTA O DEVER DO BOM EXEMPLO
1. A confissão da fé é um
preâmbulo da glória, mas não é ainda a posse da coroa. Não é a glória
definitiva, mas só o início do mérito. Está escrito: "O que perseverar até
o fim, este será salvo" (Mt 10,22). Tudo pois o que fazemos antes do fim é
só um passo com o qual vamos subindo ao monte da salvação, mas só ao fim da
subida chegaremos à posse perfeita do cume.
2. Trata-se de um confessor? Ora, depois da confissão da fé, o perigo torna-se
maior, porque o adversário está mais enraivecido contra ele.
3. É confessor? Por isto, mais do que nunca, deve permanecer fiel ao Evangelho
do Senhor, ele que pelo Evangelho conseguiu esta honra. Diz o Senhor: "A
quem muito é dado, muito será pedido e a quem é concedida maior dignidade,
deste exigem-se maiores serviços" (Lc 12,48). Ninguém se deixe levar à
perdição pelo mau exemplo de algum confessor. Ninguém aprenda, do seu modo de
proceder, a injustiça, a arrogância ou a perfídia.
4. É confessor? Seja humilde e tranqüilo em todo o seu comportamento, seja
disciplinado e modesto, de modo que, como é chamado confessor de Cristo, imite
também aquele Cristo que confessa "Quem se exalta será humilhado e quem se
humilha será exaltado" (Lc 18,14). Assim disse ele, e foi exaltado pelo
Pai, porque, sendo ele a Palavra, a Virtude e a Sabedoria de Deus Pai, se
humilhou a si mesmo na terra. E como poderia amar a altivez, ele que, com a sua
lei nos preceituou a humildade, e, em prêmio da sua humildade, recebeu do Pai o
nome mais sublime? [Cf Flp 2,9]
5. Alguém foi confessor de Cristo? Muito bem, mas, depois, por sua culpa, não
sejam blasfemadas a majestade e a santidade do próprio Cristo. A língua que
confessou a Cristo não seja maldizente nem sediciosa, não se ouça vociferando em
altercações e brigas; depois de palavras tão divinas de louvor não vá vomitando
veneno de serpente contra os irmãos e contra os sacerdotes de Deus.
6. Em suma, se alguém, depois da confissão, se tornou culpável e detestável, se
aviltou a sua confissão com maus comportamentos, se manchou a sua vida com
torpezas indignas, se, afinal, abandonou a Igreja, na qual se tornara
confessor, e, quebrando a harmonia da unidade, trocou a fé de então com a
perfídia, um tal homem não pode lisonjear-se, presumindo da sua confissão, de
ser como que predestinado ao prêmio da glória. Ao contrário, por isto mesmo,
aumentaram seus títulos para o castigo.
XXII - ELOGIO DOS CONFESSORES
1. Vemos também que chamou a
Judas entre os Apóstolos, e este Judas, em seguida, traiu o Senhor. A fé e a
perseverança dos Apóstolos não esmoreceram pelo fato que Judas traidor tinha
pertencido ao seu grupo. Igualmente em nosso caso: a santidade e a dignidade
dos confessores não ficam destruídas, se naufragou a fé em alguns deles.
2. O bem-aventurado apóstolo Paulo diz numa das suas cartas: "Se alguns
decaíram da fé, será que a sua infidelidade tornou vã a fidelidade de Deus? De
modo algum. De fato, Deus é verídico e todo homem é mentiroso" (Rom 3,3-4;
Sl 115,11).
3. A maioria e a parte melhor dos confessores mantém-se no vigor da sua fé e na
verdade da lei e da disciplina do Senhor. Lembrando-se de ter alcançado a graça
e a benevolência de Deus na Igreja, não se afastam da paz da mesma Igreja.
Nisto merecem mais amplo louvor pela sua fé, porque, desligando-se da perfídia
daqueles que já foram seus companheiros na confissão, resistiram ao contágio do
mal. Iluminados pela luz verdadeira do Evangelho, brilhando na pura e cândida
claridade do Senhor, mostram-se tão dignos de encômio na conservação da paz de
Cristo, quanto o foram no combate, quando se tornaram vencedores do demônio.
XXIII - APELO AOS QUE FORAM
ENGANADOS
1. Quanto a mim, irmãos
diletíssimos, não deixo de exortar e insistir, porque desejo que, se for
possível, nenhum dentre os irmãos pereça, e a mãe feliz (a Igreja) abranja no
seu regaço o seu povo, unido na concórdia como um só corpo. Se, todavia, este
salutar conselho não consegue reconduzir ao caminho da salvação certos chefes
de cismas e certos autores de dissensão, preferindo eles obstinar-se em sua
cega demência, ao menos os demais, os que foram surpreendidos na sua
simplicidade, ou se deixaram desviar por algum equívoco, ou foram enganados
pelo ardil de uma astúcia dissimulada, ao menos vós sacudi os laços falaciosos,
livrai dos erros os vossos passos extraviados, sabei reconhecer o caminho reto
que conduz ao céu.
2. Ouvi a voz do Apóstolo, que clama: "Em nome de nosso Senhor Jesus
Cristo, nós vos mandamos, diz ele, que vos afasteis de todos os irmãos que
andam desordenadamente e não segundo a tradição que receberam de nós"
(2Tes 3,6). E de novo: "Ninguém vos engane com vãs palavras. Por causa
disto veio a ira de Deus sobre os filhos da contumácia. Não estejais, pois, ao
lado deles" (Ef 5,6-7).
3. Deveis evitar os delinqüentes e até fugir deles, para que não aconteça que,
juntando-se aos que trilham os caminhos do erro e do crime, alguém se desvie
também da verdade e se torne culpado de igual delito.
4. Deus é um, Cristo é um, uma é a sua Igreja, uma a fé e o povo (cristão) é
também um, aglutinado pela concórdia como na compacta unidade de um corpo. Esta
unidade não pode ser quebrada. Um corpo não pode ser dividido, desarticulando
as suas junturas. Não pode ser reduzido a pedaços, dilacerando e arranhando as
suas vísceras. Tudo o que se separa do centro vital não pode continuar a viver
ou a respirar porque fica privado do alimento indispensável à vida.
XXIV - BEM-AVENTURADOS OS
PACÍFICOS
1. O Espírito Santo assim nos
fala: "Quem é o homem que quer viver e deseja ver dias excelentes? Refreia
do mal a tua língua, e os teus lábios não falem insidiosamente. Evita o mal e
faze o bem, busca a paz e segue-a" (Sl 33,13-15). O filho da paz deve buscar
a paz, deve procurá-la. Quem conhece e ama o vínculo da caridade deve guardar a
sua língua do flagelo da dissensão.
2. O Senhor, já próximo à paixão, entre outros preceitos e ensinamentos
salutares, acrescentou o seguinte: "Eu vos entrego a paz, eu vos dou a
minha paz" (Jo 14,27). Esta é a herança que nos deixou. Todos os dons e
todos os prêmios das suas promessas estão incluídos nisto: a inviolabilidade da
paz.
3. Se somos co-herdeiros de Cristo [Cf Rom 8,17], permaneçamos na paz de
Cristo. Se somos filhos de Deus, sejamos pacíficos. "Bem-aventurados os
pacíficos, diz, porque serão chamados filhos de Deus" (Mt 5,9). Convém,
pois, que os filhos de Deus sejam pacíficos, mansos de coração [Cf Mt 11,29],
simples quando falam, concordes nos afetos, sempre ligados uns aos outros pelos
laços da unidade de espírito.
XXV - O EXEMPLO DOS PRIMEIROS
CRISTÃOS
1. Essa unidade reinou ao tempo
dos Apóstolos e a nova plebe, o povo dos que acreditaram, guardava os preceitos
do Senhor e ficava fiel à sua caridade. Prova-o a divina Escritura, dizendo:
"A multidão daqueles que acreditaram se comportava como se fossem todos
uma só alma e uma só mente" (At 4,32).
2. E antes: "Estavam perseverando todos unânimes na oração com as mulheres
e Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos" (At 1,14). Por isto oravam de modo
eficaz e podiam confiar em alcançar o que estavam pedindo à misericórdia
divina.
XXVI - EXORTAÇÃO PARA UMA VIDA
CRISTÃ INTEGRAL
1. Entre nós, ao contrário, esta
união está demasiado relaxada, e ao mesmo tempo aparece muito enfraquecida a
generosidade nas obras (boas). Então vendiam as suas casas e as suas
propriedades e entregavam o preço aos Apóstolos, para que fosse distribuído aos
pobres: assim colocavam seus tesouros no céu [Cf Mt 6,19]. Hoje nem se dão os
dízimos dos patrimônios e, enquanto o Senhor diz "vendei" [Cf Lc
12,33], nós preferimos comprar e possuir mais. Como, entre nós, murchou o vigor
da fé, como esmoreceu a força daqueles que crêem!
2. Por isto o Senhor, falando destes nossos tempos, diz no Evangelho: "Quando
vier o Filho do homem, pensas que encontrará fé na terra?" (Lc 18,8).
Vemos que está acontecendo o que ele predisse. No que diz respeito ao temor de
Deus, à lei da justiça, ao amor, às obras, não há mais fé. Ninguém se preocupa
com as coisas que hão de vir, ninguém pensa no dia do Senhor, na ira de Deus,
nos futuros suplícios dos incrédulos, nos eternos tormentos destinados aos
pérfidos. Se crêssemos, a nossa consciência teria medo de tudo isto. Se não
temos medo é sinal que não cremos. Quem acredita se acautela, quem se acautela
se salva.
3. Despertemos, irmãos diletíssimos, quebremos o sono da inércia rotineira e,
por quanto for possível, sejamos vigilantes em guardar e cumprir os preceitos
do Senhor. Sejamos prontos, como ele seja, quando diz: "Estejam cingidos
os vossos rins, e as lâmpadas acesas nas vossas mãos, e vós sede semelhantes a
homens que esperam o seu dono, quando voltar das núpcias, para lhe abrirem logo
que ele chegar e bater. Bem-aventurados os servos que o Senhor, chegando,
encontrar vigilantes" (Lc 12,35-37). É necessário que estejamos cingidos,
a fim de que, quando vier o dia da partida, não sejamos surpreendidos cheios de
impedimentos e de embaraços. Fique sempre viva a nossa luz e brilhe em boas
obras, para nos guiar da noite deste mundo aos esplendores da claridade eterna.
Sempre solícitos e cautos, fiquemos à espera da chegada repentina do Senhor.
Quando ele bater, encontre a nossa fé vigilante com uma tal vigilância que
mereça receber o prêmio do mesmo Senhor.
4. Se forem observados esses mandamentos, se forem postas em prática essas
exortações, não acontecerá que sejamos vencidos, no sono, pela falácia do
demônio, mas, como servos bons e vigilantes, reinaremos com Cristo glorioso.