"Há coisa que, em sua extrema ignorância, você nunca leu e, portanto, você negligenciou toda a imensidade da Escritura e usou sua maldade para ultrajar a Virgem"
» CAPÍTULO XIII
A última proposição de Helvídio era esta, e
era o que ele queria demonstrar quando tratou dos primogênitos, afirmando que
são citados nos Evangelhos os irmãos de Jesus. Por exemplo: "Ora,
sua mãe e seus irmãos permaneciam procurando falar com Ele". E em
outro lugar: "Depois disso Ele foi para Cafarnaum, com sua mãe e
seus irmãos". E de novo: "Seus irmãos então lhe disseram:
'Parte daqui e vai para a Judéia, porque teus discípulos podem também
testemunhar as obras que fazes. Porque ninguém faz nada em segredo, mas procura
ser conhecido abertamente. Se realizas tais coisas, manifesta-te ao mundo".
E João acrescenta: "Porque mesmo seus irmãos não acreditavam
nele".
Também Marcos e Mateus: "E
indo à sua própria terra, ensinava em suas sinagogas, tanto que [sua gente]
ficava atônita e dizia: 'De onde tirou este homem tal sabedoria e miraculosas
obras? Não é o filho do carpinteiro. Não é sua mãe chamada Maria e seus irmãos
Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs não moram conosco?'". Lucas,
também, nos Atos dos Apóstolos relata: "Todos aqueles com um só
propósito continuaram firmes na oração, com as mulheres e Maria, a mãe de
Jesus, e com seus irmãos".
Paulo, o Apóstolo, também uma vez esteve com
eles, e testemunha sua precisão histórica: "E cresci pela
revelação, mas não vi os outros apóstolos, a não ser Pedro e Tiago, o irmão do
Senhor". E de novo, em outro lugar: "Não temos o direito
de comer e beber? Não temos o direito de trabalhar com as viúvas, assim como o
resto dos Apóstolos, os irmãos do Senhor e Pedro?"
E, por medo, ninguém aceitou o testemunho
dos judeus, pois foi de sua boca que ouvimos o nome de Seus irmãos, mas
mantivemos que seus conterrâneos ficaram decepcionados com esse mesmo erro a
respeito dos irmãos pelo qual [os judeus] passaram a acreditar sobre o pai,
Helvídio profere uma dura observação de advertência e grita: "Os
mesmos nomes estão repetidos pelos Evangelistas em outro lugar e as mesmas
pessoas são ali irmãos do Senhor e filhos de Maria".
Mateus diz: "E muitas mulheres
estavam ali (sem dúvida ao pé da cruz do Senhor), observando de alguma
distância, e elas tinham seguido Jesus desde a Galiléia, ajudando-o, entre as
quais estava Maria Madalena, Maria a mãe de Tiago menor e de José, e
Salomé"; e no mesmo lugar, logo depois: "E muitas outras
mulheres que subiram com Ele a Jerusalém".
Lucas também diz: "Ali estavam
Maria Madalena e Joana, e Maria, a mãe de Tiago, e as outras mulheres com
elas".
» CAPÍTULO XIV
Minha razão para repetir sempre a mesma
coisa é para adverti-lo para não fazer uma falsa afirmação, divulgando que eu
deixei de lado tais passagens, como propícias a você, e que essa interpretação
foi desfigurada e desfeita não pela evidência da Escritura, mas por argumentos
evasivos.
"Observe:" - diz ele - "Tiago e José são
filhos de Maria, e são as mesmas pessoas que são chamadas irmãos pelos judeus.
Note que Maria é a mãe de Tiago o menor e de José. E Tiago é chamado o menor
para distingui-lo de Tiago o maior que era filho de Zebedeu, como Marcos afirma
em outro lugar; E Maria Madalena e Maria a mãe de José estavam onde ele
(=Jesus) fora colocado. E quando passou o Sábado, elas compraram essências para
irem ungi-lo". E, como era de se esperar, ele diz: "Quão
pobre e ímpia visão temos de Maria, se afirmamos que quando outras mulheres
estavam ocupadas com o sepultamento de Jesus, ela, Sua mãe, estava ausente; ou
se inventamos alguma outra Maria; e tudo o mais porque o Evangelho de São João
testemunha que ela estava ali presente, quando o Senhor, do alto da cruz a
recomendou como Sua mãe, agora uma viúva, aos cuidados de João. Ou deveríamos
supor que o Evangelista caiu em tamanho erro e nos induziu a tamanho erro,
chamando Maria a mãe daqueles que eram conhecidos dos judeus como irmãos de
Jesus?"
» CAPÍTULO XV
Que cegueira, que raivosa loucura o leva à
sua própria destruição! Você (Helvídio) diz que a mãe do Senhor estava presente
ao pé da cruz; diz que ela foi confiada ao discípulo João por causa de sua
viuvez e condição de soledade, como se no ponto de vista de sua própria
afirmação, ela não tivesse quatro filhos e numerosas irmãs, com o conforto dos
quais ela poderia se apoiar? Você também lhe dá o nome de viúva, que não se
encontra na Escritura. E embora cite, a cada momento, o Evangelho, somente as
palavras de João lhe desagradam. Você diz, de passagem, que ela estava presente
ao pé da cruz porque parece que você não a omitiu de propósito, e contudo [não
diz] nenhuma palavra sobre as mulheres que estavam com ela. Poderia perdoá-lo
se fosse ignorante, mas vejo que você tem uma razão para suas omissões.
Deixe-me destacar então o que João
disse: "Mas estavam de pé junto à cruz de Jesus sua mãe, a irmã de
sua mãe, Maria, a esposa de Cléofas, e Maria Madalena".
Não há nenhuma dúvida que existiam dois
apóstolos chamados pelos nomes de Tiago: Tiago, o filho de Zebedeu, e Tiago, o
filho de Alfeu. Por acaso você tem em vista que o comparativamente desconhecido
Tiago o menor, que é chamado nas Escrituras filho de Maria, não contudo de
Maria a mãe do Nosso Senhor, era apóstolo ou não ? Se era um apóstolo, devia
ser o filho de Alfeu e um crente em Jesus, "porque nem seus irmãos
acreditavam n'Ele". Se não era um apóstolo mas um terceiro Tiago (que
possa ser, não sei), como poderia ser tido como o irmão do Senhor, e como,
sendo um terceiro, poderia ser chamado "menor" para ser destinguido
do "maior" , porquanto maior e menor são usados para mostrar relação
existente não entre três, mas entre dois? Observe, ainda mais, que o irmão do
Senhor é um apóstolo, uma vez que Paulo diz: "Então depois de três
dias eu fui a Jerusalém para visitar Pedro e fiquei com ele quinze dias. Mas
não vi nenhum outro dos apóstolos, a não ser Tiago, irmão do Senhor".
E na mesma Epístola: "E quando eles perceberam a graça que me foi
concedida, Tiago, Pedro e João que eram considerados os pilares" etc.
E você não poderá supor que esse Tiago
fosse o filho de Zebedeu, bastando para isso ler os Atos dos Apóstolos, onde
você encontrará que esse último já tinha sido trucidado por Herodes. A única
conclusão é que a Maria que é descrita como a mãe de Tiago o menor era a esposa
de Alfeu e irmã de Maria, a mãe do Senhor, aquela que é chamada por João
Evangelista "Maria de Cléofas", seja por filiação, seja por parentesco,
seja por outra razão.
Mas se você julga que são duas pessoas
porque em outro lugar lemos: "Maria a mãe de Tiago menor" e
aqui: "Maria de Cléofas", você terá a aprender ainda que
era costume na Escritura dar diferentes nomes ao mesmo indivíduo. Raguel, sogro
de Moisés, é chamado também de Jetro. Gedeão, sem nenhuma outra razão aparente
para a troca, de repente se torna Jerubbaal. Ozias, rei de Judá, tem, como nome
alternativo, Azarias. O Monte Tabor é chamado Itabyrium. Igualmente, o Hermon é
chamado pelos fenícios Sanior, e pelos amorreus Sanir. O mesmo pedaço do país é
conhecido por três nomes: Negebb, Teman e Darom, em Ezequiel. Pedro é também
chamado Simão e Cefas. Judas, o zelote, em outro Evangelho é chamado Tadeu. Há
numerosos outros exemplos que o leitor pode por si mesmo colecionar, em toda a
Escritura.
» CAPÍTULO XVI
Agora aqui temos a explicação do que eu me
esforcei por mostrar, como foi que os filhos de Maria, a irmã da mãe de Nosso
Senhor, que anteriormente eram tidos por não crentes, e que depois passaram a
acreditar, podem ser chamados irmãos do Senhor. Possivelmente, o caso foi que
um dos irmãos acreditou imediatamente enquanto os outros não acreditaram senão
muito depois, e que uma Maria era a mãe de Tiago e José, chamada "Maria de
Cléofas", que é a mesma dita esposa de Alfeu, e a outra, a mãe Tiago o
menor. De qualquer modo, se ela (esta última) fosse a mãe do Senhor, São João
teria lhe concedido seu sublime título, como em todos os demais lugares, e não
teria passado uma impressão errônea, chamando-a mãe de outros filhos. Mas neste
ponto não desejo argüir a favor ou contra a suposição de que Maria, a esposa de
Cléofas, e Maria, a mãe de Tiago e José, eram mulheres diferentes, uma vez que
está claramente entendido que Maria, a mãe de Tiago e José não era a mesma
pessoa que a mãe do Senhor.
Como, então - pergunta Helvídio - explica
você que eram chamados irmãos do Senhor aqueles que não eram seus irmãos?
Mostrarei como.
Na Sagrada Escritura há quatro espécies de
irmãos: pela natureza, pela raça, pelo parentesco e pelo amor.
Exemplos de irmãos pela natureza foram Esaú
e Jacó, os doze patriarcas, André e Pedro, Tiago e João.
Irmãos de raça, eram todos os judeus que
assim se chamavam um ao outro, como no Deuteronômio: "Se teu
irmão, um homem hebreu, ou uma mulher hebréia, te for vendida, ele servirá por
seis anos; então, no sétimo ano, deixarás que ele se vá livre". E
antes, no mesmo livro: "Deverás de qualquer maneira fazê-lo teu
rei aquele que o Senhor teu Deus escolher: um dentre teus irmãos deverá ser
feito teu rei; não porás um estrangeiro acima de ti, que não é teu irmão".
E de novo: "Não deverás ver o boi ou a ovelha de teu irmão se
extraviar e ficares omisso; deverás com segurança levá-los de novo para teu
irmão. E se teu irmão não morar perto de ti, ou se não o conheces, então deves
trazê-los para tua casa, e ficarão contigo até que teu irmão venha procurá-los,
e tu deves devolvê-los a ele de volta". E o Apóstolo Paulo diz: "Desejaria
eu mesmo ser reprovado por Cristo pela salvação de meus irmãos, meus próximos
pela carne, que são os israelitas".
E ainda mais: são chamados irmãos por
parentesco aqueles que são de uma família, que é pátrio, que corresponde à
palavra latina "paternidade", porque de uma única raiz procede uma
numerosa progênie. No Gênese, lemos: "E Abraão disse a Lot: 'Que
não haja luta, eu te peço, entre mim e ti, e entre meus pastores e os teus,
porque somos irmãos'". E de novo: "Assim Lot escolheu
para si toda a planície do Jordão, e se direcionou para leste. E eles se
separaram, um irmão do outro". Certamente Lot não era irmão de Abraão,
mas o filho do irmão Aram de Abraão. Porque Terah gerou Abraão, Nahor e Arão. E
Arão gerou Lot. De novo, lemos: "E Abraão tinha setenta e cinco
anos quando partiu de Haram. E Abraão levou Sarai sua esposa, e Lot, filho de
seu irmão".
Mas se você (Helvídio) ainda duvida que um
sobrinho possa ser chamado filho, permita-me dar-lhe um outro exemplo: "E
quando Abraão ouviu que seu irmão fora feito escravo, tomou seus experimentados
homens, nascidos em sua casa, trezentos e dezoito". E depois de
descrever o ataque e o massacre noturno ele acrescenta: "E trouxe
de volta todos os bens, assim como seu irmão Lot". Que isso seja
suficiente como prova de minha afirmação. Mas por medo, você pode levantar
alguma objeção cavilosa, e se contorcer em seu aperto como uma cobra; assim
devo imobilizá-lo rapidamente com as garantias de provas para fazê-lo parar de
sibilar e murmurar, porque sei que você gostaria de dizer que está baseado não
tanto na verdade da Escritura mas em complicados argumentos.
Jacó, o filho de Isaac e Rebeca, quando por
medo da perfídia de seu irmão tinha ido para a Mesopotâmia, retirou-se para
perto [de Labão], rolou a pedra da tampa do poço e bebeu da fonte de Labão,
irmão de sua mãe."E Jacó beijou Raquel, ergueu sua voz e chorou. E Jacó
disse a Raquel que ele era irmão de seu pai, que era filho de Rebeca".
Aqui está um exemplo da regra já referida, pela qual um sobrinho é chamado de
irmão. E mais: "Labão disse a Jacó: 'Porque tu és meu irmão,
poderias doravante trabalhar para mim sem pagamento? Diga-me qual o teu
propósito'". E assim, quando ao fim de 12 anos, sem conhecimento de
seu tio e acompanhado por suas esposas e filhos estava retornando para sua
terra, quando Labão os alcançou na montanha de Gilead e não conseguiu encontrar
os ídolos que Raquel escondera em sua bagagem, Jacó fez uma pergunta a
Labão: "Qual é minha transgressão? Qual é meu pecado, para que tu
me venhas tão irado e me persigas? Procuraste tudo em minhas bagagens! O que
encontraste em todos meus utensílios? Digas aqui, irmãos perante irmãos, para
que eles julguem a nós dois".
Diga-me [Helvídio] quem são esses irmãos de
Jacó e Labão que estão aqui presentes? Esaú, irmão de Jacó, certamente não
estava lá, e Labão, o filho de Bethuel, não tinha irmãos, embora tivesse uma
irmã, Rebeca.
» CAPÍTULO XVII
Inumeráveis exemplos da mesma espécie podem
ser vistos nos Livros Sagrados.
Mas, para abreviar, volto à última das
quatro espécies de irmãos, aqueles, esclareço, que são irmãos por afeição, e
estes novamente são de duas espécies: aqueles por um relacionamento espiritual e
aqueles por um relacionamento geral. Digo espiritual porque todos nós cristãos
somos chamados irmãos, como no verso: "Veja como é bom e agradável
para os irmãos viverem juntos na unidade". E em outro Salmo, o
Salvador diz:"Eu enumerarei teu nome entre meus irmãos". E ,
em outro lugar: "Vá a meus irmãos e dize-lhes..."
Eu disse - por relacionamento geral -
porque nós somos todos filhos de um mesmo Pai, há como um penhor de irmandade
entre nós todos. "Dizei àqueles que vos odiarem:" -
diz o profeta - "vós sois nossos irmãos". E o Apóstolo
escrevendo aos Coríntios: "Se algum homem que é chamado irmão for
um fornicador, ou avarento, ou idólatra, ou caluniador, ou beberrão, ou autor
de extorsões, com alguém assim, não se deve comer".
Agora eu pergunto à que classe você
considera que devem pertencer os irmãos do Senhor, no Evangelho. Eles são
irmãos por natureza, você responde. Mas a Escritura não diz isso. Não os chama
nem filhos de Maria, nem de José. Poderíamos dizer que eles eram irmãos pela
raça? No entanto, seria absurdo supor que uns poucos judeus fossem chamados
irmãos quando todos os judeus daquele tempo poderiam, a esse título,
reivindicar o nome. Eram eles irmãos pela virtude de intimidade estreita e de
união de coração e pensamento? Se eram assim, quais eram exatamente seus irmãos
mais do que os apóstolos que receberam sua instrução privada e eram chamados
por Ele Sua mãe e Seus irmãos? Novamente, se todos os homens, como visto, eram
seus irmãos, seria loucura dar uma mensagem especial: "Vede, seus
irmãos o procuram" porque todos os homens semelhantemente
mereceriam esse nome.
A única alternativa é adotar a explicação
anterior e considerar que são chamados irmãos em virtude do vínculo de
parentesco, não de amor e simpatia, nem por prerrogativa de raça, nem pela
natureza. Exatamente como Lot foi chamado irmão de Abraão, e Jacó, de Labão,
exatamente como as filhas de Zelophehad receberam um lote entre seus irmãos,
exatamente como o próprio Abraão tinha a esposa Sarai por sua irmã, porque ele
diz:"Ela é de fato minha irmã, por lado de pai, não pelo lado da
mãe" o que quer dizer, ela era filha de seu irmão e não de sua
irmã. De outro modo, o que diremos de Abraão, um homem justo, falando que a
esposa era filha de seu próprio pai?
A Escritura, relatando a história dos
homens nos tempos primitivos, não ultraja nossos ouvidos falando da amplitude
em termos expressos, mas prefere deixá-la ser inferida pelo leitor. Deus mais
tarde aplicou a sanção de lei à proibição, estabelecendo: "Quem
toma sua irmã, filha de seu pai, ou de sua mãe, e mostra sua nudez, comete
abominação, deverá ser morto. Aquele que descobre a nudez de sua irmã, deverá
pagar seu pecado".
» CAPÍTULO XVIII
Há coisa que, em sua extrema ignorância,
você nunca leu e, portanto, você negligenciou toda a imensidade da Escritura e
usou sua maldade para ultrajar a Virgem, como o homem da história que sendo
desconhecido de todo mundo e achando que poderia tramar um mau ato pelo qual
ganhasse renome, incendiou o templo de Diana; e quando ninguém revelou o ato
sacrílego, diz-se que ele próprio apareceu e se proclamou como aquele que nele
pusera fogo. Os administradores de Éfeso ficaram curiosos em saber o que o
levara a agir de tal modo, quando então ele respondeu que se não tinha fama por
boas obras, todos poderiam lhe dar crédito por uma má. A história grega relata
o incidente.
Mas você fez pior. Você pôs fogo no templo
do corpo do Senhor, você aviltou o santuário do Espírito Santo, do qual se
propôs a fazer gerar um grupo de quatro irmãos e uma porção de irmãs. Numa
palavra, juntando-se ao coro dos judeus, você diz: "Não é este o
filho do carpinteiro Não é sua mãe chamada Maria? E seus irmãos Tiago, José,
Simão e Judas? E suas irmãs não moram todas conosco?". A palavra
"todas" não seria usada se não houvesse um grande número delas.
Rogo-te: diga-me quem, antes de você surgir, tinha conhecimento desta
blasfêmia? Quem imaginou essa teoria digna de dois centavos? Você obteve seu
propósito e se tornou notório por um crime. Pois eu mesmo que sou seu oponente,
embora vivamos na mesma cidade, eu não o conheço como o autor disso, não sei se
você é branco ou negro.
Omito as faltas de dicção que abundam em
todos os livros que escreveu. Não digo nada sobre sua introdução absurda. Bons
céus! Eu não procuro eloquência, embora você mesmo não a tenha; você contou
para isso com a ajuda de seu irmão, Cratério. Eu não procuro graça e estilo,
mas busco pureza de alma, porque entre cristãos é o maior dos solecismos e dos
vícios de estilo fundamentar algo na palavra ou ação. Chego à conclusão de meu
argumento. Concordarei com você em que eu não ganhei nada; e você se encontrará
num dilema.
É claro que os irmãos de Nosso Senhor
usaram o nome da mesma maneira como José era chamado seu pai: "Eu
e teu pai te procurávamos preocupados"; foi Sua mãe que disse isso,
não os judeus. O Evangelista relata que Seu pai e Sua mãe ficaram admirados com
as coisas que se falavam a Seu respeito, e há uma passagem semelhante, que já
citamos, na qual José e Maria são chamados Seus pais. Sabendo que você tem sido
louco o bastante para se persuadir que os manuscritos gregos estão corrompidos,
agora você talvez alegue a diversidade de interpretações.
Então procuro o Evangelho de João e ali
está claramente escrito: "Filipe encontrou Natanael, e lhe disse,
nós encontramos aquele de quem Moisés na lei, e os profetas escreveram, Jesus
de Nazaré, o filho de José". Você encontrará certamente isso em seu
manuscrito. Agora me diga: como Jesus é filho de José quando está claro que Ele
fora gerado pelo Espírito Santo? Era José seu verdadeiro pai? Obtuso como você
é, não se aventurará a dizer isso. Era seu suposto pai? Se era, que a mesma
regra que você aplica a José, seja aplicada àqueles que eram chamados irmãos,
assim como você chama José de pai.
Parte IV
O estado virginal é superior ao estado matrimonial
» CAPÍTULO XIX
Agora que ultrapassei as pedras e encolhos,
devo me por ao largo e ir a toda velocidade para chegar ao destino. Você, se
sentindo uma pessoa sem conhecimentos, usou Tertuliano como sua testemunha e
citou as palavras de Vitorino, bispo de Perávio. De Tertuliano não direi senão
que não pertenceu à Igreja. Mas com respeito a Vitorino, afirmo que já ficou
provado pelo Evangelho - que ele falou dos irmãos de Nosso Senhor não como
sendo filhos de Maria, mas irmãos no sentido que expliquei, ou seja, irmãos sob
o ponto de vista de parentesco, não de natureza.
Estamos, contudo, desperdiçando nosso
percurso com ninharias e deixando a fonte da verdade, estamos seguindo insignificantes
pontos de opinião. Não deveríamos arrolar contra você toda a série de
escritores antigos? Inácio, Policarpo, Irineu, Justino Mártir e muitos outros
homens apostólicos e eloqüentes, que expuseram as mesmas explicações contra
Ebião, Theodoto de Bizâncio e Valentino, escreveram volumes repletos de
conhecimentos. Se você alguma vez lesse o que eles escreveram, você se tornaria
um homem sábio. Mas eu penso que é melhor refutar brevemente cada ponto do que
prolongar meu livro por uma extensão indevida.
» CAPÍTULO XX
Agora dirijo meu ataque contra a passagem
na qual, desejando mostrar seu talento você faz uma comparação entre virgindade
e casamento. Eu não poderia deixar de rir, e penso no provérbio: viu você
alguma vez uma dança cautelosa?
Você pergunta: "São as virgens
melhores do que Abraão, Isaac e Jacó, que foram casados? Não são as crianças
diariamente moldadas pelas mãos de Deus no útero de suas mães? E se assim é,
somos constrangidos a nos ruborizarmos pelo pensamento de Maria tendo um marido
depois do parto? Se julgam que há alguma desgraça nisto, não deviam
coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem por parto normal. Porque de
acordo com esses, há mais desonra numa virgem dando à luz a Deus pelos órgãos
geradores, do que numa virgem que se juntou a seu próprio esposo depois que deu
à luz".
Acrescente, se quiser, Helvídio, as outras
humilhações da natureza, o útero de nove meses se tornando cada vez maior, a
doença, o parto, o sangue, os cueiros. Imagine você mesmo o menino envolto na
placenta. Imagine a dura manjedoura, o choro do menino, a circuncisão no oitavo
dia, o tempo de purificação, de modo que possa ficar comprovado que tudo era
impuro. Não enrubescemos, você não nos impõe silêncio. Maior humilhação Ele
sofreu por mim, a maior que o atingiu. E quando você tiver dado todos os
detalhes, não estará apto a apontar nada mais vergonhoso do que a cruz que
confessamos, na qual acreditamos e pela qual triunfamos sobre todos nossos
inimigos.
» CAPÍTULO XXI
Mas como não negamos o que está escrito,
assim também rejeitamos o que não está escrito. Acreditamos que Deus nasceu de
uma Virgem, porque lemos assim. Não acreditamos que Maria teve união marital
depois que deu à luz porque não lemos isso. Nem afirmamos tal para condenar o casamento,
porque a virgindade é o fruto do casamento; mas porque quando estamos tratando
de santos não devemos julgar apressadamente. Pois se adotássemos a
possibilidade como padrão de julgamento, poderíamos sustentar que José teve
várias esposas porque Abraão teve, e também Jacó, e que aqueles que eram irmãos
do Senhor nasceram daquelas esposas, uma criação imaginária que alguns
sustentam com uma temeridade que nasce da audácia e da piedade.
Você diz que Maria não continuou virgem. Eu
brado ainda mais que José, ele mesmo, aceitou que Maria era virgem, de modo que
de um casamento virgem nasceu um filho virgem. Porque se, como um homem santo,
ele não se apresentou com a acusação de fornicação, e está escrito que ele não
teve outra esposa, mas foi o guardião de Maria, aquela que foi tida por sua
esposa mas não ele por seu marido; a conclusão é que aquele que foi julgado
digno de ser chamado pai do Senhor, permaneceu casto.
» CAPÍTULO XXII
E agora que vou fazer uma comparação entre
virgindade e casamento, rogo a meus leitores para não suporem que louvando a
virgindade, tenho em menor grau o casamento, e discrimino os santos do Antigo
Testamento com relação àqueles do Novo, isto é, aqueles que tinham esposas
daqueles que se mantiveram livres dos laços de mulheres; antes, penso que de
acordo com a diferença de tempo e circunstâncias, uma regra foi aplicada aos
primeiros, uma outra a nós, sobre quem sobrevirá o fim do mundo.
Tanto que continua vigorando a lei : "Sede
férteis e multipliquai-vos e povoai a terra"; e: "Amaldiçoada
é a mulher estéril que não gerou semente em Israel"; elas todas que
casaram e foram dadas em matrimônio, deixaram pai e mãe, e se tornaram uma só
carne.
Mas de repente com a força do trovão se
fizeram ouvir essas palavras: "O tempo está se acabando, em que
doravante aqueles que têm esposas sejam como se não tivessem";
aderindo ao Senhor, nós somos feitos um espírito com Ele. E por quê?
Porque "aquele que é solteiro
está preocupado com as coisas do Senhor, de modo que poderá agradar ao Senhor;
mas aquele que é casado está preocupado com as coisas do mundo, do modo como
agradará a sua esposa. E aqui está a diferença também entre a esposa e a
virgem. Aquela que é solteira está preocupada com as coisas do Senhor, porque
será santa tanto no corpo como no espírito; mas aquela que é casada, está
preocupada com as coisas do mundo, do modo como agradará a seu marido".
Por que você sofisma? Por que resiste? O
vaso de eleição disse isso. Disse-nos que há uma diferença entre a esposa e a
virgem. Observe qual deva ser a felicidade daquele estado no qual mesmo a
distinção de sexo desaparece. A virgem não é mais chamada mulher. "Aquela
que é solteira está preocupada com as coisas do Senhor, de modo que é santa no
corpo e no espírito".
A virgem é definida como aquela que é santa
no corpo e no espírito, porque não é bom ter uma carne virgem se a mulher se
põe casada no espírito. "Mas aquela que é casada está preocupada
com as coisas do mundo, do modo como agradará a seu marido". Julga
você que não há diferença entre uma que gasta seu tempo em oração e jejuns
daquela que se sente impelida, ao aproximar-se seu marido, a arranjar sua
aparência, andar com passos afetados, e demonstrar atos de carinho?
O objetivo da virgem é aparecer menos
faceira; ela quer se guardar de modo a esconder suas atrações naturais. A
mulher casada tem seu pincel preparado ante seu espelho, e em desacordo com seu
Criador, esforça-se para adquirir algo mais do que sua beleza natural. Então
lhe chegam as conversas de seus filhos, o barulho da casa, as crianças buscando
sua palavra e pedindo seus beijos, a lista das despesas, o cuidado para acertar
as despesas. De um lado você a vê na companhia dos cozidos, cercada de gritos e
preparando o alimento; você ali ouve o barulho de uma multidão de fiandeiras.
Enquanto isso, chega uma mensagem que o marido e seus amigos estão chegando. A
esposa, como uma andorinha, voa por toda a casa. Ela deve cuidar de todas as
coisas. Está o sofá arrumado? Está o piso varrido? Estão as flores nas jarras?
E o jantar está pronto?
Diga-me, rogo-lhe, onde entre tudo isso há
lugar para pensar em Deus? São essas casas tranqüilas? Onde há as batidas do
tambor, o barulho e a algazarra do órgão e do alaúde, o tinir dos címbalos,
pode se encontrar alguma preocupação com o temor de Deus? O parasita é
repreendido e se sente orgulhoso da honra. Entram depois as vítimas meio
despreparadas para as paixões, uma referência para todo olhar lúbrico. A
infeliz esposa ou deve achar prazer neles e perecer, ou ficar desgostosa e
provocar seu marido. Disso surge a discórdia, a semente conspiratória do
divórcio.
Ou suponha que você encontre uma casa onde
essas coisas são desconhecidas, o que acontece em pequena proporção! Contudo,
mesmo ali, o desempenho do dono da casa, a educação das crianças, as
necessidades do marido, a correção dos servos, não falham em afastar a mente do
pensamento de Deus. "Deixou de ficar com Sara como se fica com as
mulheres" - assim diz a Escritura, e mais tarde Abraão recebeu a
ordem:"Presta atenção em tudo o que Sara te disser". [Porque]
ela não está tomada de ansiedades e dor de parto e, tendo passado pela mudança
de vida [sexual], deixou de exercer as funções de uma mulher, estando liberta
do esquecimento de Deus; não tem desejo por seu marido, mas, pelo contrário,
seu marido se torna sujeita a ela, e a voz do Senhor lhe ordena: "Presta
atenção em tudo o que Sara te disser". Então, começam a ter tempo para
rezar. Porque enquanto demorou a ser pago o dever do matrimônio, a determinação
de rezar foi negligenciada.
» CAPÍTULO XXIII
Não nego que se encontram mulheres santas
entre as viúvas e aquelas que têm marido; mas se tornam santas logo que deixam
de ser esposas, ou se no estrito dever do matrimônio imitam a castidade
virginal. O Apóstolo, como se Cristo falasse por sua boca, brevemente deu
testemunha disso quando disse: "Aquela que é solteira está
preocupada com as coisas do Senhor, como poderá agradar ao Senhor; mas aquela
que é casada está preocupada com as coisas do mundo, como poderá agradar a seu
marido".
Ele nos deixa ao livre exercício de nossa
razão a esse respeito. Não determina obrigação a ninguém nem induz alguém em
cilada; somente persuade àquilo que é próprio quando deseja que todos os homens
sejam como ele mesmo. Não emitiu, é verdade, um mandamento do Senhor a favor da
virgindade, porque essa graça sobrepuja o poder do homem desassistido, e seria
usar um ar de imodéstia forçar os homens a se porem a voar em face de sua
natureza, e dizer em outras palavras: "Quero que você seja como
são os anjos do céu". É essa angélica pureza que assegura à virgindade
a mais alta recompensa, e o Apóstolo poderia parecer desprezar um sistema de
vida que não é culposo.
Não obstante, no contexto a seguir
diz: "Mas presto meu julgamento como alguém que obteve
misericórdia do Senhor para ficar fiel. Penso, portanto, que isso é bom em
razão da atual aflição, ou seja, que é bom para um homem ser como ele é".
O que quer dizer com "a atual aflição"?
"Haverá aflição para aqueles que
tiverem crianças e para aquelas que amamentarem naqueles dias!" A razão por que a madeira cresce é que poderá
ser cortada. O campo é semeado porque poderá ser segado. O mundo está já
repleto, e a população está demasiado grande para a terra. A cada dia somos
dizimados pela guerra, levados pelas doenças, tragados pelos naufrágios, embora
continuemos a levar alguém a juízo por causa dos muros de nossa propriedade.
É somente uma adição à regra geral que é
feita por aqueles que seguem o Cordeiro, e que não desvestiram seus ornamentos,
que continuam em seu estado de virgindade. Preste atenção ao significado de
desvestir. Eu não me aventuro a explicá-lo, por medo de que Helvídio possa se
tornar abusivo.
Concordo com você, quando diz que algumas
virgens não são senão mulheres de taverna; digo ainda mais, que mesmo o pecado
do adultério pode ser encontrado entre elas, e você ficará sem dúvida mais
surpreso de ouvir que alguns do clero são taberneiros e alguns monges não são
castos. Quem não entende logo que uma mulher de taverna não persistirá virgem,
nem adúltero um monge, nem taberneiro um clérigo? Exigiremos virgindade se a
virgindade corrompida é um pecado?
De minha parte, me omitindo das outras
pessoas, e tratando dos castos, afirmo que aquela que trabalha como vendeira,
embora sem provas, poderá ser virgem no corpo, porém não mais será casta em
espírito.
Parte V
Conclusão
» CAPÍTULO XXIV
Eu me tornei retórico e agi um pouco como
orador de plataforma. A isso me levou você, Helvídio; porque, da forma lúcida
como brilha o Evangelho atualmente, você quer que se dê uma glória igual à
virgindade e ao estado matrimonial. E porque penso que, sentindo a verdade
muito forte, você virá aviltar minha vida e abusar de meu caráter (este é o
modo das mulheres fracas cochicharem nos cantos quando são repreendidas por
seus senhores), vou me antecipando a você:
- Asseguro que darei atenção às suas
injúrias como a uma elevada distinção, uma vez que os mesmos lábios que me
atacam aviltaram Maria, e eu - um servo do Senhor - sou favorecido com a mesma
brava eloquência de Sua mãe.
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