"A árvore do erro parece ter chegado hoje à sua madureza providencial; plantado pela primeira geração de audazes heresiarcas, regado depois por outras e outras gerações, vestiu-se de folhas nos tempos de nossos avós, de flores nos tempos de nossos pais, e hoje aí está, diante de nós e ao alcance de nossas mãos, carregada de frutos."
Donoso Cortés
CARTA AO CARDEAL FORNARI
Eminentíssimo Senhor:
Antes de submeter à alta penetração de
Vossa Eminência as breves indicações que houve por bem pedir-me em carta de
maio último, parece-me conveniente assinalar aqui os limites que me impus a mim
mesmo na redação destas indicações.
Entre os erros contemporâneos não há
nenhum que não se reduza a uma heresia; e entre as heresias contemporâneas não
há nenhuma que não se reduza a outra, condenada de há muito pela Igreja. Nos
erros passados, a Igreja condenou os erros presentes e os erros futuros.
Idênticos entre si quando considerados sob o prisma de sua natureza e de sua
origem, os erros oferecem, todavia, o espetáculo de uma variedade portentosa
quando vistos através de suas aplicações. Meu propósito hoje é considerá-los
mais pelo lado de suas aplicações do que pelo de sua natureza e origem; mais
pelo que tem de político e social do que pelo que tem de puramente religioso;
mais pelo que tem de diverso do que pelo de idêntico; mais pelo que tem de
mutável do que pelo de absoluto.
Duas poderosas considerações me
inclinaram a seguir este caminho, uma tirada de minhas circunstâncias pessoais,
e a outra, da índole própria do nosso século. No que tange a mim, penso que
minha qualidade de leigo e homem público me impõe a obrigação de recusar
competência para resolver as temerosas questões concernentes aos pontos de
nossa Fé e às matérias de dogma. No tocante ao século em que estamos, basta olhar
em volta de nós para ver que o que o faz tristemente famoso entre todos os
séculos não é a arrogância em proclamar teoricamente seus erros e heresias, mas
antes a audácia satânica com que aplica à sociedade presente as heresias e os
erros dos séculos passados.
Houve um tempo em que a razão humana,
comprazendo-se em loucas especulações, se mostrava satisfeita de si quando
lograva opor uma negação a uma afirmação, nas esferas intelectuais; um erro a
uma verdade, nas idéias metafísicas; uma heresia a um dogma, nas esferas
religiosas. Hoje em dia, essa mesma razão não se satisfaz enquanto não desce às
esferas políticas e sociais, para conturbar tudo, fazendo sair, como por
encanto, de cada erro um conflito, de cada heresia uma revolução, e uma
catástrofe gigantesca de cada uma de suas soberbas negações.
A árvore do erro parece ter chegado
hoje à sua madureza providencial; plantado pela primeira geração de audazes
heresiarcas, regado depois por outras e outras gerações, vestiu-se de folhas
nos tempos de nossos avós, de flores nos tempos de nossos pais, e hoje aí está,
diante de nós e ao alcance de nossas mãos, carregada de frutos. Seus frutos
devem ser malditos com uma especial maldição, como o foram outrora as flores
com que se perfumou, as folhas que a cobriram, o tronco que as susteve e os
homens que a plantaram.
Não quero dizer com isto que o que foi
condenado uma vez não o deva ser de novo; quero dizer tão somente que uma
condenação especial, análoga, à especial transformação porque vão passando, à
nossa vista, os antigos erros no presente século, me parece assaz necessária; e
que, em todo o caso, este aspecto da questão é o único para o qual reconheço em
mim certo gênero de competência.
Descartadas assim as questões puramente
teológicas, pus minha atenção naquelas outras que, sendo teológicas na sua
origem e na sua essência, vieram, no entanto, em virtude de transformações
lentas e sucessivas, a se converter em questões políticas e sociais.
Ainda entre estas, senti-me na
necessidade de descartar, por excesso de ocupações e falta de tempo, as que me
pareceram de transcendência menos grave, embora julgasse de meu dever tocar em
alguns pontos a respeito dos quais não fui consultado. Pelos mesmos motivos de
ocupações e de premência, vi-me na impossibilidade de tornar a ler os livros
dos heresiarcas modernos, para assinalar neles as proposições que devem ser
combatidas e condenadas. Sem embargo, meditando atentamente sobre este
particular, cheguei a convencer-me de que nos tempos passados era isto mais
necessário do que atualmente, havendo de ontem para hoje esta diferença muito
de se notar: antes, de tal maneira estavam nos livros os erros que, não os
buscando nos livros, não os poderíamos encontrar em parte alguma; ao passo que
hoje em dia o erro está neles e fora deles, pois está em todas as partes: nos
livros, nas instituições, nas leis, nos jornais, nos discursos , nas conversas,
nas aulas, nos clubes, no lar, na praça pública, no que se diz e no que se
cala. Premido pelo tempo, dirigi-me ao que está mais perto de mim, e a própria
atmosfera me respondeu.
Os erros contemporâneos são infinitos;
porém, devidamente considerados, todos eles têm sua origem e vão terminar em
duas negações supremas: uma, relativa a Deus e outra, relativa, ao homem. A
sociedade nega que Deus cuide de suas criaturas, e que o homem seja concebido
em pecado. Seu orgulho disse ao homem desses tempos duas coisas, e em ambas se
acreditou: que não têm mácula e que não necessita de Deus; que é forte e
formoso; e assim o vemos a acariciar o seu poder e enamorado da sua formosura.
A negação do pecado original acarreta,
entre outras, as negações de que a vida temporal seja uma vida de expiação e o
mundo, um vale de lágrimas; a luz da razão seja fraca e vacilante; a vontade do
homem esteja enferma; o prazer nos tenha sido dado na qualidade de tentação,
para que nos livremos do seu atrativo; a dor seja um bem, aceito por um motivo
sobrenatural, com uma aceitação voluntária; o homem necessite de ser
santificado.
Por sua vez, tais negações implicam,
entre outras muitas, as afirmações seguintes: a vida temporal nos foi dada para
nos elevarmos, por nossos próprios esforços, e através de um progresso
indefinido, às mais altas perfeições; o lugar em que decorre esta vida pode e
deve ser radicalmente transformado pelo homem; sendo sã a razão humana, não há
nenhuma verdade que ela não possa alcançar; não é verdade senão o que a razão
alcança; não há outro mal senão o que a razão julga que é mal, nem outro pecado
senão o que a razão nos diz que é pecado; quer dizer, não há outro mal e outro
pecado senão o mal e o pecado filosófico; a vontade do homem, sendo reta em si
mesma, não precisa ser ratificada; devemos fugir da dor e buscar o prazer; o
tempo nos foi dado para gozar dele; o homem é, por si mesmo, bom e são.
Estas negações e afirmações com
respeito ao homem conduzem a outras negações e a outras afirmações análogas com
respeito a Deus. Da suposição de que o homem não caiu em pecado, procede o
negar, e de fato se nega, que o homem tenha sido restaurado, da hipótese de não
ter sido o homem restaurado, decorre o negar, como se nega, o mistério da
Redenção e o da Encarnação, o dogma da personalidade exterior do Verbo e o
próprio Verbo. Presumida a integridade natural da vontade humana, por um lado,
e não sendo reconhecida, por outro, a existência de qualquer mal e de qualquer
pecado senão o mal e o pecado filosófico, resulta o negar, e se nega, a ação
santificadora de Deus sobre o homem, e com isto o dogma da personalidade do
Espírito Santo. De todas estas negações resulta a negação do dogma soberano da
Santíssima Trindade, pedra angular de nossa fé e fundamento de todos os dogmas
católicos.
Daí nasce e aí tem sua origem um vasto
sistema de naturalismo, contradição radical, universal, absoluta de todas as
nossas crenças. Nós, católicos, cremos e professamos que o homem pecador
necessita perpetuamente de socorro, e que Deus perpetuamente lhe outorga esse
socorro por meio de uma assistência sobrenatural, obra maravilhosa do seu
infinito amor e da sua misericórdia infinita. Para nós, o sobrenatural é a
atmosfera do natural; quer dizer, aquilo que, sem se fazer sentir, ao mesmo
tempo o envolve e o sustenta.
Entre Deus e o homem havia um abismo
insondável: o Filho de Deus se fez homem; e reunidas ambas as naturezas, o
abismo foi preenchido. Entre o Verbo Divino, Deus e o homem ao mesmo tempo, e o
homem pecador, havia ainda uma distância imensa; para reduzi-la, Deus colocou,
entre seu Filho e sua criatura, a Mãe de Seu Filho, a Virgem Santíssima, a
mulher sem pecado. Entre a mulher sem pecado e o homem pecador, a distância era
ainda grande, e Deus, em sua misericórdia infinita, colocou os santos pecadores
entre a Virgem e o homem pecador.
Quem não se admirará de tão grande, e
soberano, e maravilhoso, e perfeito edifício! O maior pecador não precisa senão
de estender sua mão pecadora para encontrar quem o ajude a subir, de degrau em
degrau, do abismo do seu pecado até aos cumes do céu.
E tudo isto não é outra coisa senão a
forma visível e exterior, e, por ser exterior e visível, até certo ponto
imperfeita, dos efeitos maravilhosos daquele socorro sobrenatural com que Deus
acode ao homem, para que percorra com pé firme os ásperos atalhos da vida.
Para se ter uma idéia deste
sobrenaturalismo maravilhoso, é necessário penetrar, com os olhos da fé, nas
mais altas e recônditas regiões; é mister ter os olhos voltados para a Igreja,
movida perpetuamente pela ação secretíssima do Espírito Santo; penetrar no
secretíssimo santuário das almas e ver ali como a graça de Deus as solicita e
busca, e como a alma do homem fecha ou abre seus ouvidos àquele chamamento
divino, e de que maneira se entabula e prossegue continuamente entre a criatura
e o seu Criador um silencioso colóquio; ver, por outro lado, o que faz ali, e o
que diz ali, e o que ali busca o espírito das trevas; e como a alma do homem
vai e vem, e se agita e se afana entre duas eternidades, para finalmente se
abismar, conforme o espírito a que segue, nas regiões da luz ou nas regiões
tenebrosas.
É mister considerar e ver ao nosso lado
o anjo da guarda, e como vai espantando com um sopro sutil os pensamentos
importunos, para que eles não nos molestem, e como nos sustenta os pés com as
suas mãos para que não levemos um tropeção. É mister por os olhos na História e
ver a maravilhosa maneira pela qual Deus dispõe os acontecimentos humanos, para
sua própria glória e para o bem dos seus eleitos, sem que, sendo Ele senhor dos
acontecimentos, o homem deixe de o ser de suas ações. É mister ver como
suscita, em tempo oportuno, os conquistadores e as conquistas, os capitães e as
guerras, e ainda restaura e pacifica tudo, derrubando os guerreiros e domando o
orgulho dos conquistadores; como permite que se levantam tiranos contra um povo
pecador, e consente que os povos rebeldes sejam o açoite dos tiranos; como
congrega as tribos, separa as castas ou dispersa as gentes; como dá e tira à
sua vontade os impérios da terra, fazendo-os cair por terra e levantando-os até
às alturas. É mister ver, por fim, como os homens andam perdidos e cegos no
labirinto da História, que as gerações humanas vão construindo sem ninguém
saber qual a sua estrutura, nem onde está a sua entrada e a sua saída.
Todo este vasto e esplêndido sistema de
sobrenaturalismo, chave universal e universal explicação das coisas humanas, é
implícita ou explicitamente negado pelos que afirmam a concepção imaculada do
homem, e os que hoje o afirmam não são apenas alguns filósofos, mas os
governadores dos povos, as classes influentes da sociedade e até a própria
sociedade, envenenada pelo veneno desta heresia perturbadora.
Eis a explicação de tudo o que
consideramos, até o ponto a que esta série de argumentos nos conduziu. Se a luz
da nossa razão não foi obscurecida, essa luz é suficiente, sem o auxílio da fé,
para descobrir a verdade. Se a fé não é necessária, a razão é soberana e
independente. Os progressos da verdade dependem dos progressos da razão; os
progressos da razão dependem do seu exercício; o seu exercício consiste na
discussão; por isso a discussão é a verdadeira lei fundamental das sociedades
modernas e o crisol único no qual se separam, depois de misturadas, as verdades
dos erros. Neste princípio tem sua origem a liberdade da imprensa, a
inviolabilidade da tribuna e a soberania real das assembléias deliberantes. Se
a vontade do homem não é enferma, basta-lhe o atrativo do bem para seguir o
bem, sem o auxílio sobrenatural da graça; se o homem não necessita desse
auxílio, tampouco necessita dos sacramentos que o ministram e das orações que o
proporcionam; se a oração não é necessária, é ociosa; se é ociosa, é ociosa e
inútil a vida contemplativa; se a vida contemplativa é ociosa e inútil, também
o são a maior parte das comunidades religiosas. Isto serve para explicar
porque, em toda parte onde tais idéias penetraram, foram extintas aquelas
comunidades. Se o homem não precisa de sacramentos, também não precisa de quem
os administre; e se não precisa de Deus, tampouco precisa de mediadores. Daí o
desprezo ou a proscrição do sacerdócio, onde essas idéias deitaram raízes. O
desprezo do sacerdócio redunda, em qualquer parte, no desprezo da Igreja, e o
desprezo da Igreja significa sempre o desprezo de Deus.
Negada a ação de Deus sobre o homem e
aberto outra vez (enquanto possível) entre o Criador e sua criatura um abismo
insondável, desde logo a sociedade se aparta instintivamente da Igreja nessa
mesma distância; por isso, onde Deus é relegado ao céu, a Igreja é relegada ao
santuário; e, ao contrário, onde o homem vive sujeito ao domínio de Deus,
também se sujeita natural e como que instintivamente ao domínio da Igreja.
Todos os séculos atestam esta verdade, testemunhando-o da mesma forma a nossa
época e as pretéritas.
Descartado assim tudo o que é
sobrenatural e transformada a religião num vago deísmo, o homem que não precisa
da Igreja, escondida no seu santuário, nem de Deus, atado ao seu céu como
Encelado à sua rocha, volta os olhos para a terra e se consagra exclusivamente
ao culto dos interesses materiais. Esta é a época dos sistemas utilitários, das
grandes expansões do comércio, das febres da indústria, das insolências dos
ricos e das impaciências dos pobres. Este estado de riqueza material e de
indigência religiosa é seguido sempre por uma daquelas catástrofes gigantescas
que a tradição e a história gravam perfeitamente na memória dos homens. Para
conjurá-las, reúnem-se em conselho os prudentes e os hábeis; mas o furacão, que
vem bramindo, dispensa o conselho e os leva juntamente com os seus esconjuros.
Isto quer dizer que é totalmente
impossível impedir a invasão das revoluções e o advento das tiranias, advento e
invasão que vêm a ser uma só coisa e a que se reduzem ao domínio da força,
quando a Igreja é relegada ao santuário e Deus ao céu. O intento de preencher
esse grande vazio na sociedade com certo sistema de distribuição artificial e
equilibrada dos Poderes públicos, é louca presunção e vã tentativa; semelhante
ao de quem quisesse, na ausência dos espíritos vitais, reproduzir com a
indústria, e por meios puramente mecânicos, os fenômenos da vida. Nada pode
ocupar o grande vazio que Deus e a Igreja deixam quando se retiram das
sociedades humanas. E ao revés, não há mentira nenhuma de governar
essencialmente perigosa quando Deus e a Igreja atuam livremente, sendo-Lhes
propícios os costumes e favoráveis os tempos.
Não há nenhuma acusação mais singular e
estranha do que afirmar, por um lado, com certas escolas, que o catolicismo é
favorável ao governo das multidões, e por outro, com alguns sectários, que ele
impede o advento da liberdade e favorece a expansão das grandes tiranias.
Quanto à primeira asserção, haverá maior absurdo do que investir assim contra o
catolicismo, perpetuamente ocupado em condenar as rebeldias e santificar a
obediência como obrigação comum a todos os homens? Quanto à segunda,
igualmente, como sustenta-la em face da única religião da terra a ensinar aos
povos que nenhum homem tem direito sobre o homem, pois toda autoridade vem de
Deus; que só os humildes serão exaltados; que os poderes são instituídos para o
bem; que mandar é servir, e que o principado é um ministério e, por
conseguinte, um sacrifício? Estes princípios, revelados por Deus, e antidos em
toda integridade pela Sua santíssima Igreja, constituem o Direito público de
todas as nações cristãs. Direito público que é afirmação perpétua da verdadeira
liberdade, por ser a perpétua negação, a condenação perpétua, ao mesmo tempo,
do direito dos povos a deixarem a obediência pela rebelião e do direito dos
príncipes a transformarem seu poder em tirania. A liberdade consiste
precisamente na negação de tais direitos vêm a ser uma e a mesma coisa,
expressa em termo diferentes e de diferente maneira. Donde se segue não só que
o catolicismo é avesso às tiranias e às revoluções, mas ainda que só ele as tem
verdadeiramente negado; não só que não é inimigo da liberdade, mas ainda que só
ele descobriu na referida negação a índole própria da liberdade autêntica.
Nem é menos absurdo supor, como supõem
alguns, que a religião santa por nós professada e a Igreja, que a contém e
prega, impedem ou consideram com maus olhos a livre expansão da riqueza
pública, a boa solução das questões econômicas e o crescimento dos interesses
materiais. É certo que a religião não se propõem tornar os povos poderosos, mas
felizes. Nem tampouco visa a enriquecer os homens, e sim a santifica-los. Mas
menos certo não é que um de seus nobres e grandes ensinamentos consiste em ter
revelado ao homem seu encargo providencial de transformar a Natureza toda,
pondo-a ao seu serviço através do esforço pessoal despendido com o próprio
trabalho. O que a Igreja procura é um certo equilíbrio entre os interesses
materiais e os morais e religiosos. O que procura nesse equilíbrio é que cada
coisa esteja no seu lugar, e haja lugar para todas as coisas. O que busca
finalmente é que o primeiro lugar seja ocupado pelos interesses morais e
religiosos, vindo depois os materiais.
E isto não só porque assim o exigem as
noções mais elementares da ordem, mas ainda porque a razão nos diz e a História
nos ensina que esta preponderância, condição necessária daquele equilíbrio, é a
única que pode conjurar e certamente conjura as grandes catástrofes, prontas
sempre a surgirem onde a primazia ou o crescimento exclusivo dos interesses
materiais põem em fermentação as grandes concupiscências.
Alguns há que, persuadidos da
necessidade da religião e da Igreja para o mundo, e por outro lado pesarosos
por terem de se submeter ao seu jugo, suave para a humildade mas gravíssimo
para o orgulho humano, buscam a saída numa transação, aceitando do catolicismo
certas coisas e rejeitando outras que consideram exageradas. São estes ainda
mais perigosos por tomarem certo ar de imparcialidade propício a enganar e
seduzir. Assim se fazem juizes do campo, obrigam o erro e a verdade a
comparecerem diante de si, e com falsa moderação procuram um meio termo
impossível entre ambos. A verdade, não resta dúvida, pode encontrar-se e se
encontra em meio aos erros, porém entre a verdade e o erro não há nenhum meio
termo: são dois pólos contrários, entre os quais não há senão um imenso espaço
vazio.
Eis aí os principais erros dos homens e
das classes que têm tido sobre si, nestes tempos, o triste privilégio da
governança das nações. Volvendo os olhos para outro lado, e considerando os que
se adiantam reclamando para si a grande herança dos governos, a razão ser
perturba e a imaginação se confunde em presença de erros ainda mais perniciosos
e abomináveis. Sem embargo, cumpre observar que estes erros, perniciosíssimos e
abominabilíssimos como são, não passam de conseqüências lógicas e, portanto,
inevitáveis dos erros mencionados acima.
Suposta a imaculada conceição do homem,
e com ela a beleza integral da natureza humana, alguns se perguntam a si
mesmos: se nossa razão é luminosa, e nossa vontade reta e excelente, então por
que nossas paixões, residindo em nós com nossa vontade e nossa razão, não hão
de ser excelentíssimas? E outros se perguntam: por que, se a discussão é boa
como meio para chegar à verdade, deve haver coisas subtraídas à sua jurisdição
soberana? Havendo também os que não atinam com o motivo porque, dados os
pressupostos anteriores, a liberdade de pensar, de querer e de agir não há de
ser absoluta. Os propensos a ontrovérsias religiosas suscitam a questão de
saber por que, se Deus não é bom na sociedade, deve ser admitido no céu, e por
que, se a Igreja não serve para nada, deve ser admitida no santuário. Outros
ainda propõem esta questão: por que, sendo indefinido o progresso, na direção do
bem, não se há de acometer a façanha de levantar os prazeres à altura das
concupiscências e transformar este vale de lágrimas num jardim de deleites. Os
filantropos ficam escandalizados ao encontrar um pobre pelas ruas, não
compreendendo como um pobre, sendo tão feio, pode ser homem, nem como o homem,
sendo tão formoso pode ser pobre.
Num ponto todos estão de acordo, sem
discrepância: a necessidade imperiosa de subverter a sociedade, suprimir os
governos, acabar com as riquezas e dar um golpe de morte em todas as
instituições humanas e divinas.
Há, entretanto, embora pareça
impossível, um erro que, considerado em si mesmo, parece não ser tão
detestável, e, não obstante, é mais transcendental, por suas conseqüências, que
todos os outros, a saber: a falsa idéia dos que crêem que tais erros não nascem
necessária e inevitavelmente uns dos outros. Se a sociedade não deixar
prontamente este erro, e se, deixando-o, não condenar a uns erros como
conseqüência e a outros como premissas, por uma condenação radical e soberana,
a sociedade, humanamente falando, está perdida.
O que leia o imperfeitíssimo catálogo
que acabo de fazer desses erros atrozes observará que uns deles levam a uma
confusão absoluta e a uma absoluta anarquia, enquanto outros tornam necessário,
para sua realização, um despotismo de proporções inauditas e gigantescas.
Correspondem à primeira categoria os concernentes à exaltação da liberdade
individual e à violentíssima destruição de todas as instituições; à segunda, os
que supõem uma ambição organizadora. No dialeto da escola se chamam socialistas
em geral os sectários que difundem os primeiros, e comunistas que propagam os
segundos. Aqueles buscam sobretudo a expansão indeterminada da liberdade
individual, às expensas da autoridade pública suprimida; ao passo que os
segundos visam à completa supressão da liberdade humana e à expansão gigantesca
da autoridade do Estado[1]. A fórmula mais completa da primeira destas
doutrinas se encontra nos escritos de Girardin e no último livro de Proudhon. O
primeiro descobriu a força centrífuga, e o segundo a força centrípeta da
sociedade futura, governada pelas idéias socialistas obedecendo a dois
movimentos contrários: o de repulsão, produzido pela liberdade absoluta, e o de
atração, produzido por um torvelinho de contratos. A essência do comunismo
consiste no confisco de todas as liberdades e de todas as coisas em proveito do
Estado.
O estupendo e monstruoso de todos estes
erros sociais provém do estupendo dos erros religiosos em que têm sua
explicação e sua origem. Os socialistas não se contentam com relegar a Deus
para o céu: vão além, fazem profissão de ateísmo e O negam em todas as partes.
Suposta a negação de Deus, fonte e origem de toda autoridade, a lógica exige a
negação da própria autoridade com uma negação absoluta; negação da autoridade
doméstica; a negação da autoridade religiosa traz consigo a negação da
autoridade política. Deixe ficar-se o homem sem Deus, e logo o súdito ficará sem
rei e sem pai.
Quanto ao comunismo, parece-me evidente
sua procedência das heresias panteístas e de todas as outras que lhe são
aparentadas. Quando tudo é Deus e Deus é tudo, Deus torna-se democracia e
multidão; os indivíduos, átomos divinos e nada mais, saem do todo, que
perpetuamente os gera, para volver ao todo, que perpetuamente os absorve. Neste
sistema, o que não é o todo não é Deus, embora participe da divindade; e o que
não é Deus não é nada, porque nada há fora de Deus que é tudo. Donde o soberbo
desprezo dos comunistas pelo homem e sua negação insolente da liberdade humana.
Daí essas aspirações imensas a um domínio universal por meio da futura
demagogia, que há de se estender por todos os continentes e tocar os últimos
confins da terra. E assim se explica também essa fúria insensata com que se
propõe confundir e triturar todas as famílias, todas as classes, todos os
povos, todas as raças das gentes no grande almofariz de suas triturações. Desse
obscuro e sangrentíssimo caos deve sair um vencedor de tudo o que é particular;
o Deus eterno, sem princípio nem fim, vencedor de tudo o que nasce e passa.
Esse Deus é a demagogia, a anunciada pelos últimos profetas, o único sol do
futuro firmamento, a que há de vir trazida pela tempestade, coroada de raios e
servida por furacões. Esse é o verdadeiro todo, Deus verdadeiro, armado de um
só atributo: a onipotência, e vencedor das três grandes debilidades do Deus
católico: a bondade, o amor e a misericórdia. Quem não reconhecerá nesse Deus o
Luzbel do orgulho?
Quando se consideram atentamente estas
abomináveis doutrinas é impossível deixar de ver nelas o sinal misterioso,
porém visível, que marca os erros nos tempos apocalípticos. Se um pavor
religioso não me impedisse de fixar os olhos nesses tempos formidáveis, não me
seria difícil apoiar em poderosas razões de analogia a opinião de que o grande
império anticristão será um colossal império demagógico, regido por um plebeu
de grandeza satânica, o homem do pecado.
Depois de haver considerado em geral os
principais erros destes tempos, e uma vez demonstrado que todos têm sua origem
em algum erro religioso, parece-me não só conveniente, mas também necessário,
descer a algumas aplicações que hão de tornar ainda mais clara essa dependência
em que todos os erros políticos e sociais estão dos erros religiosos. Assim,
por exemplo, parece-me fora de qualquer dúvida que tudo o que afeta o governo
de Deus sobre o homem afeta, no mesmo grau e do mesmo modo, os governos
instituídos nas sociedades civis. O primeiro erro religioso, nestes últimos
tempos, foi o princípio da independência e da soberania da razão humana; a este
erro na ordem religiosa correspondente, na política, a que consiste em afirmar
a soberania da inteligência; por isso a soberania da inteligência foi o fundamento
universal do Direito público nas sociedades combalidas pelas primeiras
revoluções. Aí está a origem das monarquias parlamentares, com o seu censo
eleitoral, a divisão de poderes, a sua imprensa livre e a sua tribuna
inviolável.
O segundo erro é relativo à vontade e
consiste, no concernente à ordem religiosa, em afirmar que a vontade, em si
mesma reta, não necessita do apelo nem do impulso da graça para chegar ao bem.
A este erro na ordem religiosa
corresponde, na política, o que consiste em afirmar que, não havendo vontade
que não seja reta, não deve haver nenhuma que seja dirigida e não dirigente.
Neste princípio se funda o sufrágio universal e tem origem o sistema
republicano.
O terceiro erro se refere aos apetites,
e consiste em afirmar, quanto à ordem religiosa, que suposta a imaculada
conceição do homem, seus apetites são excelentes; a este erro na ordem
religiosa corresponde, na política, o que consiste em afirmar que todos os
governos devem ordenar-se a um só fim: a satisfação de todas as concupiscências
e demagógicos, que hoje disputam o predomínio e que, a continuarem as coisas
como vão, chegará a alcança-lo.
Desta maneira a perturbadora heresia
que consiste, por um lado, em negar o pecado original, e por outro em negar que
o homem precise de uma direção divina, conduz primeiramente à afirmação da
soberania da inteligência e logo à afirmação da soberania da vontade, e por fim
à afirmação da soberania das paixões; quer dizer, as três soberanias
perturbadoras. Não há como saber o que se afirma ou se nega de Deus em matéria
religiosa para saber o que se afirma ou se nega de Deus em matéria política.
Quando, no primeiro caso, prevalece um
vago deísmo, afirma-se de Deus que reina sobre todas as coisas criadas, e
nega-se que as governe. Prevalece, então, em matéria política, a máxima
parlamentarista o rei reina e não governa.
Quando se nega a existência de Deus,
nega-se todo o governo, e até mesmo a sua existência. Nestas épocas de maldição
surgem e se propagam, com espantosa rapidez, as idéias anarquistas das escolas
socialistas. Finalmente, quando a idéia da divindade e da criação se confundem,
ao ponto de se afirmar que as coisas criadas são Deus e que Deus é a
universalidade das coisas criadas, então o comunismo prevalece em matéria
política, como o panteísmo em matéria religiosa; e Deus, cansado de sofrer,
entrega o homem à mercê de abjetos e abomináveis tiranos. Voltando agora os
olhos para a Igreja, ser-me-á fácil demonstrar que ela tem sido objeto dos
mesmos erros, os quais conservam sempre a sua identidade indestrutível, quer se
apliquem a Deus, quer conturbem a Igreja ou transtornem as sociedades civis.
De duas maneiras diferentes pode ser
considerada a Igreja: em si mesma, como sociedade independente e perfeita,
tendo em si tudo o que precisa para atuar com desenvoltura e mover-se
livremente, com relação às sociedades civis e aos governos da terra.
Considerada do ponto de vista de sua
organização interior, a Igreja viu-se na necessidade de resistir à grande
torrente de perniciosíssimos erros, sendo digno de nota que entre eles os mais
perniciosos são os que se dirigem contra o que sua unidade tem de maravilhosa e
perfeita; isto é, contra o Pontificado, pedra fundamental do prodigioso
edifício. No número destes erros está aquele pelo qual se nega ao Vigário de
Jesus Cristo na terra a sucessão única e indivisível do poder apostólico no que
teve de universal, supondo que os bispos são os seus co-herdeiros. Este erro,
caso viesse a prevalecer, introduziria a confusão e o desconcerto na Igreja do
Senhor, transformando-a, pela multiplicação do Pontificado, que é a autoridade
essencial, a autoridade indivisível, a autoridade incomunicável, numa
aristocracia turbulentíssima. Deixando-lhe a honra de uma vã presidência e
tirando-lhe a jurisdição real e o governo efetivo, o Sumo Pontífice, sob o
império deste erro, fica relegado inutilmente no Vaticano, como Deus, sob o
império do erro deísta, fica relegado inutilmente no céu, e como o rei, sob o
império do erro parlamentarista, fica relegado inutilmente no seu trono.
Os que mal avindos com o império da
razão, por si mesma aristocrática, a ele preferem o da vontade, democrática em
si, vão cair no presbiterianismo, que é a república na Igreja, como caem no
sufrágio universal, que é a república nas sociedades civis.
Os que enamorados da liberdade
individual a exageram até ao ponto de proclamar sua omnímoda soberania e a
destruição de todas as instituições repressoras, vão cair, no que tange à ordem
civil, na sociedade contratual de Proudhon, e no tocante à religião, na
inspiração individual, proclamada como um dogma por alguns fanáticos sectários
nas guerras religiosas da Inglaterra e da Alemanha.
Finalmente, os seduzidos pelos erros
panteístas vão chegar, na ordem eclesiástica, à soberania indivisível da
multidão dos fiéis, como na ordem divina à deificação de todas as coisas, e na
ordem civil à constituição da soberania universal e absorvente das falanges[2].
Todos estes erros relativos à ordem
hierárquica estabelecida pelo próprio Deus em sua Igreja, importantíssimos que
são na região das especulações, perdem em grande parte sua importância no
domínio dos fatos, por ser impossível, de uma total impossibilidade, que
cheguem a prevalecer numa sociedade protegida pelas divinas promessas contra os
estragos de tais erros.
O contrário sucede com aqueles outros
erros concernentes às relações entre a Igreja e a sociedade civil, entre o
sacerdócio e o Império, os quais foram poderosos em outros séculos para
perturbar a paz das gentes, e ainda hoje o são, se não para impedir a expansão
irresistível da Igreja pelo mundo, ao menos para lhe levantar obstáculos e
entraves tendentes a retardar o dia em que seus confins hão de ser os próprios
confins da terra.
Estes erros são de várias espécies,
segundo se afirma da Igreja ou que é igual ao Estado, ou que é inferior ao
Estado, ou que nada tem que ver com o Estado, ou ainda que a Igreja não serve
para nada. A primeira é a afirmação peculiar aos mais temperados regalistas; a
segunda é a dos regalistas mais extremados; a terceira, a dos revolucionários,
que propõem como primeira premissa de sua argumentação a última conseqüência do
regalismo; a última, a dos socialistas e comunistas, quer dizer, de todas as
escolas radicais, que tomam por premissa do seu argumento a última conseqüência
em que se detém a escola revolucionária.
A teoria da igualdade entre a Igreja e
o Estado dá ocasião aos mais moderados regalistas para proclamarem como sendo
de natureza leiga o que é de natureza mista, e de natureza mista o que é de
natureza eclesiástica, forçados a recorrer a estas usurpações para comporem com
elas o dote ou patrimônio que traz o Estado nesta sociedade igualitária. Em tal
sistema, quase todos os pontos são controvertíveis, e tudo o que é
controvertível se resolve por transações e ajustes. Nele torna-se de direito
comum o exequatur das bulas e dos breves apostólicos, bem como a vigilância,
inspeção e censura exercida sobre a Igreja em nome do Estado. A teoria da
inferioridade da Igreja diante do Estado dá ocasião aos regalistas extremados
para proclamarem o princípio das Igrejas nacionais, o direito do poder civil
revogar os acordos ajustados com o Sumo Pontífice, o de dispor por si mesmo dos
bens da Igreja e, por último, o de governar a Igreja através de leis ou
decretos feitos nas assembléias deliberantes.
A teoria que consiste em afirmar que a
Igreja nada tem que ver com o Estado leva a escola revolucionária a proclamar a
separação absoluta entre o Estado e a Igreja; e, como conseqüência forçosa
desta separação, o princípio de que a manutenção do clero e a conservação do
culto devem correr por conta exclusiva dos fiéis.
O erro que consiste em afirmar que a
Igreja não serve para nada, sendo a negação da própria Igreja, dá como
resultado a supressão violenta da Ordem sacerdotal por meio de um decreto que
encontra sua sanção naturalmente numa perseguição religiosa.
Por tudo isto se verifica que estes
erros não são senão a reprodução dos já mencionados noutras esferas. Às mesmas
afirmações e negações errôneas a que dá lugar a coexistência da Igreja e do
Estado, dá lugar, na ordem política, a coexistência da liberdade individual e
da autoridade pública; na ordem moral, a coexistência do livre arbítrio e da
graça; na intelectual, a da razão e da fé; na histórica, a da Providência
divina com a liberdade humana; e nas mais altas esferas da especulação, com a
coexistência da ordem natural e da sobrenatural, a coexistência de dois mundos.
Todos estes erros, idênticos em sua
natureza, ainda que vários em suas aplicações, produzem, pelo que têm de
nocivo, em todas as suas aplicações os mesmos resultados. Quando se aplicam à
coexistência da liberdade individual e da autoridade pública produzem a guerra,
a anarquia e as revoluções no Estado; quando têm por objeto o livre arbítrio e
a graça, produzem primeiro a divisão e a guerra interior, depois a exaltação
anárquica do livre arbítrio e logo a tirania das concupiscências no peito do
homem. Quando se aplicam à razão e à fé, produzem primeiro a guerra entre
ambos, depois a desordem, a anarquia, a vertigem nas regiões da inteligência
humana. Quando se aplicam à inteligência do homem e à Providência de Deus,
produzem todas as catástrofes de que estão semeados os campos da História.
Quando se aplicam, por último, a coexistência da ordem natural e da
sobrenatural, a anarquia, a confusão e a guerra se dilatam por todas as esferas
e se encontram em todas as regiões.
Por onde se vê que, em última análise e
com resultado final, todos estes erros, em sua variedade quase infinita, se
reduzem a um só, o qual consiste em haver desconhecido ou falseado a ordem
hierárquica, em si mesma imutável, estabelecida por Deus nas coisas. Esta ordem
consiste na superioridade hierárquica de tudo o que é sobrenatural sobre tudo o
que é natural, e, por conseguinte, na superioridade hierárquica da fé sobre a
razão, da graça sobre o livre arbítrio, da Providência Divina sobre a liberdade
humana e da Igreja sobre o Estado; e, para dizer tudo de uma só vez e numa só
frase, na superioridade de Deus sobre o homem.[3]
O direito reclamado pela fé, de
iluminar a razão e guiá-la, não é uma usurpação; é uma prerrogativa conforme a
sua natureza excelente; e ao contrário, a prerrogativa proclamada pela razão de
assinalar à fé seus limites e seus domínios, não é um direito, mas uma
pretensão ambiciosa, não conforme à sua natureza inferior e subordinada. A
submissão às inspirações secretas da graça é conforme à ordem universal, porque
não é outra coisa senão a submissão às solicitações divinas e aos divinos
chamamentos; e ao contrário, seu desprezo, sua negação, ou a rebeldia contra
ela, deixam o livre arbítrio num estado interior de indigência, e num estado
exterior contra o Espírito Santo. O domínio absoluto por Deus exercido sobre os
grandes acontecimentos históricos que d’Ele procedem ou que Ele permite é sua
prerrogativa incomunicável, sendo a História como que o espelho em que Deus
contempla exteriormente seus desígnios; e ao contrário, a pretensão do homem,
quando afirma que ele faz os acontecimentos e tece a maravilhosa trama da
História, é uma pretensão insustentável, pois ele efetivamente não faz outra
coisa senão tecer por si só a trama daquelas suas ações que são contrárias aos
divinos andamentos, e ajudar a tecer a trama daquelas outras, que são conformes
à vontade divina. A superioridade da Igreja sobre as sociedades civis é
conforme à reta razão, a qual nos ensina que o sobrenatural é sobre o natural e
o divino sobre o humano; e ao contrário, toda aspiração, por parte do Estado, a
absorver a Igreja, ou a separar-se da Igreja, ou a prevalecer sobre a Igreja,
ou a se igualar com a Igreja, é uma aspiração anárquica, prenhe de catástrofes
e provocadora de conflitos.
A salvação das sociedades humanas
depende exclusivamente da restauração destes princípios eternos da ordem
religiosa, da política e da social. Tais princípios, entretanto, não podem ser
restaurados senão por quem os conhece, e ninguém os conhece senão a Igreja
Católica; seu direito de ensinar a todas as gentes, que vem do seu Fundador e
Mestre, não se fundamenta só nessa origem divina, mas até justificada também
por aquele princípio da reta razão, segundo o qual cabe ao que ignora aprender
e ao que mais sabe, ensinar.
De maneira que, se a Igreja não tivesse
recebido do Senhor este soberano magistério, ainda assim estaria autorizada a
exercê-lo, pelo fato de ser a depositária dos únicos princípios que têm a
secreta e maravilhosa virtude de manter todas as coisas em ordem e arranjo, e
pôr arranjo e ordem e todas as coisas. Quando se afirma da Igreja que tem o
direito de ensinar, essa afirmação é legítima e racional, porém não é de todo
completa se não se afirma ao mesmo tempo do mundo, que tem direito a ser
ensinado pela Igreja. Sem dúvida, as sociedades civis estão de posse daquele
tremendo poder que consiste em não levantar os altíssimos montes das verdades
eternas e em deslizar brandamente pelos rápidos declives dos erros, até cair no
abismo; a questão está em averiguar se se pode dizer que exerce um direito
quem, perdida a razão, comete um ato de loucura; ou, para dizê-lo de uma vez e
com uma só palavra, se exerce um direito quem renuncia a todos os direitos por
meio do suicídio.
A questão do ensino, agitada nestes
últimos tempos pelos universitários e os católicos franceses, não foi colocada
pelos últimos em seus verdadeiros termos, e a Igreja universal não pode
aceita-la nos termos em que vem sendo colocada. Suposta, por um lado, a
liberdade de cultos, e supostas, por outro, as circunstâncias especialíssimas
de nação francesa, é meridianamente claro que os católicos franceses não se
achavam em estado de reclamar outra coisa para a Igreja senão a liberdade, que
é aqui direito comum, e que pelo fato de o ser podia servir à verdade católica
de amparo e refúgio. Mas o princípio da liberdade de ensino, considerado em si
mesmo, com abstração das circunstâncias especiais em que foi proclamado, é um
princípio falso e de impossível aceitação para a Igreja Católica[4]. A liberdade de ensino não pode ser aceita por ela
sem que ela se ponha em aberta contradição com todas as suas doutrinas. Com
efeito, proclamar que o ensino deve ser livre não vem a ser outra coisa senão
proclamar que não há uma verdade já conhecida que deva ser ensinada, e que a
verdade é coisa que não se encontrou e que se busca por meio da discussão ampla
de todas as opiniões; proclamar que o ensino deve ser livre é proclamar que a
verdade e o erro têm direitos iguais.
Ora, bem, a Igreja professa, por um
lado, o princípio de que o erro nasce sem direitos, vive sem
direitos e morre sem direitos, e que a
verdade está de posse do direito absoluto. A Igreja, pois, sem deixar de
aceitar a liberdade, onde não pode ser de outra forma, não a pode receber como
termo de seus desejos, nem saudar como o único alvo de suas aspirações.
Tais são as indicações que creio de meu
dever apontar sobre os mais perniciosos erros contemporâneos. De seu imparcial
exame, resultam, a meu ver, demonstradas estas duas coisas: a primeira, que
todos os erros têm uma origem comum e um mesmo centro; a segunda,
que, considerados em seu centro e em
sua origem, todos são religiosos. Tão certo é que a negação de um só dos
atributos divinos acarreta a desordem em todas as esferas e põe em transe de
morte as sociedades humanas.
Se eu tivesse a ventura de que não
parecessem estas indicações a Vossa Eminência inteiramente ociosas
atrever-me-ia a rogar-Lhe que as depusesse aos pés de Sua Santidade, juntamente
com a rendida homenagem de profundíssima veneração e altíssimo respeito que
professo, como católico, por sua pessoa, seus juízos infalíveis e suas
sentenças inapeláveis.
Deus guarde Vossa Eminência por muitos
anos.
Paris, 19 de junho de 1852. —
Eminentíssimo Senhor — Beija a mão de Vossa Eminência seu atento seguro
servidor.
O Marquês de Valdegamas.
[Fonte: Revista Permanência Nov.-Dez.
de 1977]
Tradução: José Pedro Galvão de Souza.
[1] N. do T.] É certo que o socialismo também
conduz à expansão gigantesca da autoridade do Estado. Prepara o caminho ao
comunismo. Note-se, porém, que Donoso Cortés tinha em vista o socialismo de
tipo proudhoniano, de sua época, tanto assim que cita, logo a seguir, Proudhon.
Dos socialistas destaca-se Proudhon com as suas ideias anarquistas, contrárias
à centralização estatal, e à própria ideia de autoridade. Depois dele
prevaleceu o “socialismo de Estado”, pregando o aumento das funções do Estado
em detrimento da liberdade. O nome citado ao lado de Proudhon é o de Emile
Girardin, publicista francês (1806-1881), autor de L’abolition de
l’autorité par la simplification du gouvernement.
[2] N. do T.] Alusão ao sistema socialista da s
“falanges” ou “falanstérias” de Fourier.
[3] [N. do T.] A propósito deste trecho, observa
Juan Juretschke, na edição das Obras Completas de Donoso Cortés por ele
anotadas (Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid): “Seria possível encontrar,
neste parágrafo e no seguinte, resíduos de fideísmo; porém sua forma logo se
explica, levando-se em conta sua finalidade polêmica contra o racionalismo da
época”.
[4] [N. do T.] É bem de ver que se refere o autor
à liberdade falseada pelo liberalismo, que equipara a verdade e o erro, o bem e
o mal, a virtude e o vício: a liberdade considerada um valor absoluto, como fim
e não meio, o que aliás não tem sentido e termina por ser a negação da
liberdade. É o que explica o malogro da pseudo-liberdade dos liberais, e é
também o que explica a passagem do liberalismo para o totalitarismo, com a
direção total da vida humana pelo Estado, suprimindo as liberdades. Donoso
Cortés, por várias vezes, refere-se à liberdade de imprensa: tornando-se a
liberdade como um “absoluto”, torna-se esta a licença desenfreada para se dizer
o que se quer, propagar a mentira e o erro incentivar a criminalidade através
dos noticiários sensacionalistas. Não é isto liberdade, mas libertinagem. E
qual a liberdade de imprensa que existe realmente no regime liberal, regime no
qual a liberdade econômica mais ampla assegura a formação dos grandes trustes e
o domínios da alta finança controladora do jornalismo. A liberdade sem limites
e sem estar sujeita à lei é uma liberdade suicida. Essa, a falsa liberdade
combatida por Donoso Cortés, vendo na Igreja a garantia da liberdade autêntica.
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