“Nenhum homem, portanto, ficou excluído dos benefícios da redenção, a não
ser por culpa sua e pela sua resistência à graça; e cada um será julgado segundo a que houver recebido”.
Entre os que atacam a
Igreja a propósito deste dito levam a dianteira os protestantes. Ora, este
princípio, de que eles se servem para acusar a Igreja, não é senão uma
conseqüência lógica e necessária da doutrina dos seus principais mestres; pelo
que estão em contradição consigo mesmo. Com que direito nos podem eles argüir
com o que eles próprios devem admitir e o que explicitamente professam os
formulários de fé dos primeiros tempos do protestantismo? Eis o que, por
exemplo, lemos na confissão helvética: “Não há salvação fora da Igreja, assim
como a não houve fora da arca; quem quiser ter a vida, é preciso não se separar
da verdadeira Igreja de Jesus Cristo”. Não são menos explícitas as
confissões da Saxônia, da Bélgica e da Escócia. Fora da Igreja, diz também o
catecismo calvinista do século XVII, não há senão condenação; e todos os que se
separarem da comunhão dos fiéis para formarem uma seita à parte, não podem
esperar salvar-se enquanto assim estiverem separados”. E é o que afirma o
próprio Calvino nas suas Instituições, dizendo: Fora do seio da Igreja não
se pode esperar a remissão dos pecados nem a salvação”.
* * *
“Mas pelo menos”,
dirão, “não se pode a Igreja livrar da nota de intolerante e de cruel, em ela
declarar que fora da Igreja não há salvação. Que de homens, pois, destinados à
condenação eterna, só por não pertencerem à Igreja romana!”
Já nós, ainda que de
passagem, respondemos a esta acusação. Bom será, porém, dar-lhe mais algum
desenvolvimento; e assim se verá, como aquele velho de que fala Rousseau, de
nenhum modo é digno de piedade.
Se, com efeito, a
verdadeira religião, a religião de Jesus Cristo é obrigatória para todos os
homens, e, se esta religião, a única, é professada e ensinada só pela
Igreja católica, apostólica, romana, força é reconhecer que fora desta
Igreja não há salvação, e que ninguém pode alcançar o céu sem a ela de algum
modo pertencer. Não é, portanto, a Igreja que há de ser acusada por falar
assim; se algum fosse digno de censura, seria o seu divino Fundador, que tornou
a sua religião indispensável para todos.
O que, pois,
sobremaneira importa é precisar bem o sentido desta máxima. “Há, observa o
cardeal Deschamps, nestas palavras, assim como em todas as de uma lei penal,
uma palavra, que sempre se há de subentender, e é a palavra voluntariamente;
porque sempre a lei penal supõe culpabilidade; e a culpabilidade
supõe sempre duas condições: o fato e a intenção.
E, por isso, a pergunta: ‘crê a Igreja na condenação dos que, sendo
nascidos e educados lá onde a não puderam conhecer, se acham em ignorância
invencível a respeito da lei de Jesus Cristo, mas praticaram fielmente tudo o
que eles viram ser bom’, é necessário responder: ‘Não crê’”.
“Pode-se, pois,
pertencer à alma, ainda que se não pertença ao corpo da Igreja, diz o mesmo
cardeal. Não é evidente que pertence à alma da Igreja um homem que está de boa
fé e que entraria nela se a conhecesse? Não estão realmente nesta disposição
todos os que têm um desejo sincero e geral de aderirem à verdade e de fazerem a
vontade de Deus? É esta uma questão semelhante a do batismo de desejo, do qual,
como diz São Tomás de Aquino, se acha implícita e suficientemente contido
na vontade geral de empregar todos os meios de salvação concedidos aos homens
pela Providência divina. Os que, por conseguinte, estão pela sua parte
dispostos a, conhecendo a Igreja, fazerem parte dela, já por isso mesmo são aos
olhos de Deus considerados como filhos dela, e certamente receberão dele as
luzes necessárias à sua salvação”.
“Morreu Jesus Cristo
por todos os homens; e as graças liberalizadas em atenção a esta vítima, que a
justiça eterna previu desde o princípio haver de ser imolada no correr dos
tempos, occisus ab origine mundi, redundaram em benefício de todos,
sem exceção alguma. Nenhum homem, portanto, ficou excluído dos benefícios
da redenção, a não ser por culpa sua e pela sua resistência à graça; e
cada um será julgado segundo a que houver recebido. Haverá
porventura doutrina mais terna e juntamente mais terrível; mais terna para com
os pobres ignorantes, que não têm culpa, na sua ignorância, e mais terrível
para com os ingratos, que, para se esquivarem à luz, que os inunda, vão buscar
as trevas de sofismas contra a justiça de Deus?”
Este é também o
sentir unânime da Tradição, que ensina como coisa certa, dar Deus a todos os
homens as graças suficientes para se salvarem, e que ninguém se condena a não
ser por um ato livre da alma que, ingrata, recusa os dons divinos. “Deus não
recusa a sua graça a quem da sua parte faz tudo o que de si depende”, diz um
muito conhecido axioma teológico, a que já nos referimos1.
Para que melhor se
compreenda o sentido desta máxima, distingamos, como fazem os teólogos, o corpo
e a alma na Igreja. O corpo ou parte visível da Igreja é o
conjunto dos membros, unidos entre si pelo assentimento às mesmas verdades,
pela participação dos mesmos sacramentos, e pela obediência aos mesmos
pastores, daqueles que pelo batismo se inscreveram oficialmente entre os seus
súditos. A alma ou a parte invisível é a graça santificante,
princípio da vida sobrenatural, que torna o homem agradável aos olhos de Deus.
Para de todo se
pertencer, tanto de direito como de fato, ao corpo da Igreja,
é primeiramente preciso entrar nela pelo batismo; e mais, é necessário, depois
do uso da razão, prestar o seu assentimento, voluntário e feito com
conhecimento de causa, por meio de um ato de fé católica; nem, enfim, deve
fazer-se expulsar dela pela excomunhão, nem sair-se dela, abraçando algum erro.
Para se pertencer
à alma da Igreja ou para se salvar, basta estar em estado de
graça, quer se faça, ou não, parte do corpo da Igreja; ou, por outra, podem,
segundo a doutrina católica, os hereges, os cismáticos e até os gentios possuir
a graça santificante e merecer o céu. Mas, está claro, se alguém conhecesse a
necessidade de fazer parte da Igreja, era impossível pertencer à alma da
Igreja, e conservar a graça santificante, sem também pertencer ao corpo dela,
pois faltaria voluntariamente a uma obrigação, que ele reconhece como grave2.
Ninguém, pois, se
perde senão por culpa sua, menosprezando a lei, a qual, porém, não obriga senão
depois de conhecida ou promulgada, pois não obriga em consciência a quem a
desconhece. E, por isso é que o Senhor só depois de haver dito aos apóstolos:
“Ide por toda a terra e ensinai o Evangelho a toda a gente”, é que acrescentou:
“Quem não crer será condenado”. Supõe, pois, conhecer-se a verdade, quando se
incorre em condenação por causa da incredulidade.
Desçamos, porém, para
maior clareza desta matéria, a alguns casos particulares.
1. Quanto ás
crianças, nascidas de pais cismáticos, hereges ou infiéis, se elas receberam o
batismo, recebem também com ele a graça santificante, que subsiste enquanto não
caírem em falta grave. Pertencem estas à alma da Igreja, e certamente se salvam
se morrerem neste estado. Supõe este caso que a criança, chegada ao uso da
razão, persiste numa ignorância invencível acerca da verdadeira religião, ou
por se achar na impossibilidade de se informar dela, ou por lhe não prestar
atenção, visto não ter dúvida sobre a verdade da que professa.
Suponhamos agora que
esta criança, depois homem, veio por mal seu a perder a graça santificante,
caindo em pecado grave; poder-se-á ainda reconciliar com Deus. E, para este
fim, se a seita a que pertencer guardar o sacramento da penitência, tem a
obrigação de confessar-se, isto é, de empregar o meio por ele reconhecido como
necessário; mais, para alcançar o perdão deste pecado precisa ter uma contrição
perfeita. A razão é clara; pois que por uma parte este homem iria contra a sua
consciência, se não acudisse a este meio, e por outra a contrição perfeita é
absolutamente necessária, pois esta confissão é por si mesma ineficaz.
2. Quanto às
crianças, que morrem sem terem recebido o batismo (e o mesmo se diga dos
adultos que nunca tiveram o uso da razão), já acima dissemos, o que acerca da
sua sorte se há de pensar: gozarão uma felicidade natural, cuja fruição seria a
reservada a todos nós, se não tivéssemos sido elevados à ordem sobrenatural; e
ficarão unicamente privadas do grau de felicidade
correspondente à visão beatífica de Deus, visões indébitas a qualquer pura
criatura3.
3. Vejamos agora o
que se há de pensar acerca dos adultos não batizados ou infiéis, que fizeram
uso da razão, como são os judeus, os maometanos e os pagãos. Eis, em resumo,
qual é sobre este ponto a doutrina da Igreja: não ficam excluídos, por causa da
sua infidelidade, senão quando ela é voluntária; e quando àqueles,
cuja infidelidade provém de uma ignorância invencível, se eles se
vierem a perder, não será por terem ignorado o que lhes era impossível
conhecer, mas por faltas graves por eles próprios cometidas.
Se se governarem pela
lei natural em seus corações gravada, se aceitarem as tradições primitivas,
posto que muitas vezes deturpadas, acerca de Deus e da sua providência, da
promessa de um Redentor, assim como das recompensas e castigos reservados aos
homens numa outra vida, pertencem à alma da Igreja e podem salvar-se.
Para eles o batismo
pela água, que é necessário a todos os que conhecem a necessidade dele, e estão
em condições de o receberem, fica sendo substituído pelo batismo de sangue ou
pelo de desejo. Este batismo de desejo supre também o batismo da água para os
que, conhecendo a necessidade deste e não podendo, por qualquer causa
recebê-lo, têm um desejo explícito dele, acompanhado da
contrição perfeita dos pecados graves atuais. Quanto ao desejo implícito do
batismo ou ato perfeito de amor a Deus, é certo ter ele bastado nos primeiros
tempos da Igreja para os pagãos, que ainda não tinham ouvido a pregação do
Evangelho. Não considera a Igreja, de fato, como necessário à salvação, o
batismo da água senão depois do Evangelho ter sido promulgado, segundo
expressamente declara o Concílio de Trento. Ora, esta pregação do Evangelho só
se fez e não podia fazer-se senão progressivamente. Se, pois, existiam meios de
salvação distintos do batismo, para os infiéis daqueles tempos, pois que ainda
o Evangelho lhes não tinha sido pregado, também hão de existir para os infiéis
dos séculos seguintes, que, sem culpa sua, se achavam em circunstâncias iguais4.
Não ficam, portanto,
segundo a doutrina da Igreja, excluídos da salvação os gentios, os hereges e os
cismáticos, que não abraçaram a verdadeira fé, a não ser os que não conheceram
a verdade revelada porque não a quiseram conhecer, ou os que, tendo-a
bastantemente conhecido, se recusaram a abraça-la. Só, de fato, estão obrigados
a entrar na Igreja Católica os que a reconhecem como o único meio necessário
para alcançarem a sua salvação. É, portanto, sob todos os respeitos muito
racional e lógica a fórmula: “Fora da Igreja não há salvação”: e, se a acusam
por este lado, é porque ou estão de má fé ou estão iludidos; iludidos, por lhe
não conhecerem o sentido adequado e preciso; de má fé, por se recusarem a
reconhecê-lo.
É verdade, observemos
ainda, que, se a salvação é possível fora do corpo da Igreja, não deixa, no
entanto, de ser mais difícil. A inteligência não possui, neste caso, a verdade
íntegra nem o magistério infalível; e a vontade carece também de um grande
número de auxílios, como são, os sacramentos, o culto externo, etc. Têm, pois,
muitíssima razão os ministros do Evangelho, que, possuídos de um zelo ardente e
de um amor generoso para com seus próximos, se não poupam a trabalhos e nem
mesmo aos perigos da vida para a toda a parte levarem o conhecimento de Jesus
Cristo e para dilatarem as fronteiras da Igreja por Ele fundada. Além de que,
se a sorte dos que morrem só com a culpa original não é para causar dó, é, contudo,
mil vezes mais invejável a sorte e felicidade dos escolhidos para o céu, a qual
consiste na visão e fruição de Deus por todo sempre.
(Pe. W. Devivier,
S.J., Curso de Apologética Cristã. Editora Melhoramentos, São Paulo, 3a.
edição, 1925)
1. É coisa
certíssima que “O Senhor não quer que alguém se perca, mas sim que todos
recorram à penitência” (II Ped. III-9). “Quer o nosso Deus e Salvador que todos
os homens se salvem e que alcancem o conhecimento da verdade (I Tim. II-4). Não
há senão um Deus e um mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, que se
entregou pela redenção de todos” (I Tim. 5, 6). “Jesus Cristo deu a vida por
todos” (II Cor. V-15). “Jesus Cristo é a vítima propiciatória por nossos
pecados, e também pelos de todo o mundo”. (I Jo. II-2). “Deus não faz acepção
de pessoas. Quem, pois, pecou sem a lei, perecerá sem a lei”. (II Ped. II-12).
“Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rom. V-20).
2. Costumam os
teólogos dividir a infidelidade em negativa e positiva. A infidelidade negativa não
é um pecado; encontra-se na gente, que não crê na Revelação, porque a ignoram,
sem que tenham culpa nesta ignorância. A infidelidade positiva é
um pecado, porque há, nos que a têm, um suficiente conhecimento da Revelação,
que eles abandonam. Condenam-se estes por se recusarem a obedecer a uma ordem
expressa e formal de Deus. O homem, que nasce e se educou na infidelidade ou no
cisma, está obrigado a esclarecer-se e a procurar a verdadeira religião, no
caso de ter dúvida séria acerca da religião, que professa; e, se o não fizer,
deixa de estar na boa fé e ofende a Deus gravemente. Não há dúvida que entre os
cristãos, separados da Igreja, há um grande número, que estão de boa fé, e nem
sequer tem consciência do cisma ou da heresia, de que são vítimas. Newman,
apesar do seu talento e da integridade da sua vida, afirma ter vivido muitos
anos no anglicanismo sem lhe ocorrer dúvida alguma sobre a sua religião; e com
muitos outros passará a mesma coisa.
3. Uma boa parte
dos teólogos, e, certamente a mais numerosa, para não dizer a mais autorizada,
aponta como punição resultante do pecado original a privação somente da
felicidade sobrenatural (a vista de Deus), felicidade a que a natureza humana,
como tal, não tem direito. São Tomás afirma que as crianças que morrem sem
batismo, não só não sofrem as penas dos sentidos, mas nem sequer a tristeza
pela pena do dano, isto é, pela perda da visão beatífica... É, pois, de crer
que estas crianças gozem uma felicidade natural mais ou menos perfeita.
4. Vem aqui a propósito
as judiciosas palavras do abade A. Pirenne, na sua obra Etudes
philosophiques, etc. Suponhamos que o pagão (e o mesmo se diga dos hereges
e dos cismáticos) morre, amando a Deus em si mesmo e sobre todas as coisas;
está com isso salvo, porque com a caridade (sobrenatural) tem tudo; a caridade
por si justifica. E, note-se, um grau ínfimode caridade é quanto
basta, porque a essência duma virtude não consiste na sua intensidade:
uma gota de água é água, como é um oceano; nem a quantidade de
uma coisa influi na sua natureza. E assim a caridade subsiste, não obstante o
apego ao pecado venial, e subsiste sem haver devoção alguma sensível. Estais,
pois, salvo, contanto que, ao deixar esta vida ameis a Deus por si
mesmo e sobre todas as coisas, que possam levar ao pecado mortal; estais
salvo, sejam quais forem as circunstâncias em que vos possais encontrar. Ou
sejais pagão ou herege ou pecador, se, no momento supremo, receberdes de Deus o
dom da caridade, por menor que seja e compatível até com o pecado venial,
tereis feito o bastante para vos salvardes; porque a caridade torna a contrição
perfeita; e a caridade e a contrição perfeita encerram, ao menos implicitamente
o desejo do batismo e da confissão. “Se se quiser saber o modo como a caridade
se comunica aos infiéis, explica-o Leibnitz, que o tomou dos católicos, Deus
dará o necessário a todos os que fazem o que humanamente depende deles, ainda
quando fosse necessário fazer um milagre”. “Se houvesse de perecer uma alma
inocente, diz São Tomás, proveria Deus, mandando até um anjo para lhe revelar
as verdades divinas”.
Fonte:
http://acruzadafinal.blogspot.com.br/
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