Réginald Garrigou-Lagrange, O.P
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A Igreja chama
Maria não só de Mãe de Deus, mas também de Mãe do Salvador. Nas ladainhas
lauretanas, por exemplo, após as invocações de Sancta Dei Genitrix e Mater Creatoris, lê-se Mater Salvatoris, ora pro nobis.
Não há aqui, como
alguns poderiam pensar e o veremos melhor depois, uma dualidade que
diminuiria a unidade da Mariologia como que dominada por dois princípios
distintos: “Mãe de Deus” e “Mãe do Salvador, associada à sua obra redentora”. A
unidade da Mariologia é mantida porque Maria é “Mãe de Deus Redentor ou
Salvador”. Da mesma forma, os dois mistérios da Encarnação e da Redenção não
constituem uma dualidade que diminuiria a unidade do tratado de Cristo ou
Cristologia, porque se trata da “Encarnação Redentora”; o motivo da Encarnação
está suficientemente indicado no Credo, onde
se diz do Filho de Deus que desceu do Céu para a nossa salvação: “E por nós,
homens, e para nossa salvação, desceu do Céu” (Símbolo
Niceno-Constantinopolitano).
Vejamos como Maria
tornou-se a Mãe do Salvador por seu consentimento e, em seguida, como, em
virtude de ser Mãe do Salvador, foi associada à sua obra redentora.
Maria tornou-se a Mãe do Redentor pelo seu consentimento
No dia da
Anunciação, a Santíssima Virgem deu o seu consentimento à Encarnação redentora quando
o arcanjo Gabriel lhe disse: “eis que
conceberás no teu ventre e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus”,
que quer dizer salvador.
Maria não ignorava
as profecias messiânicas, principalmente as de Isaías, que anunciavam
claramente os sofrimentos redentores do Salvador prometido. Ao dizer seu fiat, no dia da Anunciação,
ela generosamente aceitou de antemão todos os sofrimentos que a obra da
redenção acarretaria para seu Filho e para si mesma.
Ela conheceu esses
sofrimentos mais explicitamente alguns dias depois, quando o santo Simeão
disse-lhe: “Agora, Senhor, podes deixar
partir o teu servo em paz, segundo a tua palavra. Porque os meus olhos viram a
tua salvação, a qual preparastes ante a face de todos os povos”.
Ela compreendeu mais profundamente ainda a parte que devia tomar nos
sofrimentos redentores, quando o santo ancião acrescentou, referindo-se a
ela: “Eis que este (menino) está posto
para ruína e para ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo de
contradição ― e uma
espada de dor transpassará a tua alma”. Lê-se um pouco adiante que “Maria guardava todas essas coisas em seu coração”; o plano divino
esclarecia-se cada vez mais para sua fé contemplativa, que se tornava mais
penetrante e aguda pela iluminação e pelas luzes do dom da inteligência.
Maria tornou-se,
portanto, voluntariamente a Mãe do Redentor como tal; e compreendia mais e mais
que o Filho de Deus se tinha feito homem para nossa salvação, como diria
posteriormente o Credo. Desde
então, uniu-se a Jesus como só uma Mãe, e uma Mãe tão santa como ela, poderia
fazer, numa perfeita conformidade de vontade e de amor a Deus e às almas. Essa
é a forma especial que toma nela o supremo mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu
entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. Nada mais simples,
mais profundo, nem maior.
A Tradição
compreendeu isso muito bem, uma vez que não cessou de dizer: como Eva esteve
unida ao primeiro homem na obra da perdição, Maria devia estar unida ao
Redentor na obra da reparação.
Mãe do Salvador,
ela percebeu, de forma cada vez mais completa, como Ele devia cumprir Sua obra
redentora. Bastava-lhe apenas recordar as profecias messiânicas bem conhecidas
de todos. Isaías anunciou as humilhações e os sofrimentos do Messias, que
as suportaria para expiar as nossas faltas, que seria a própria inocência, e
que conquistaria, por sua morte generosamente oferecida, grandes multidões.
Davi, no Salmo 21:
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”,
descreveu a súplica suprema do Justo por excelência, o seu grito de angústia na
mais profunda prostração, e ao mesmo tempo a sua confiança em Yahweh, seu apelo
supremo, seu apostolado e seus efeitos em Israel e entre as nações. Maria
conhecia evidentemente esse salmo e o meditava em seu coração.
O profeta Daniel
descreveu também o reino do Filho do Homem e o poder que lhe será conferido: “E ele lhe deu o poder, a honra e o reino; e
todos os povos, tribos e línguas o serviram; o seu poder é um poder eterno que
não lhe será tirado; e o seu reino não será jamais destruído”.
Toda a Tradição tem
visto nesse Filho do Homem, como no homem das dores de Isaías, o Messias
prometido como Redentor.
Maria, que não
ignorava essas promessas, tornou-se, por seu consentimento no dia da
Anunciação, a Mãe do Redentor como tal. Deste consentimento: “fiat mihi secundum verbum tuum”, depende tudo o
que se segue na vida da Santíssima Virgem, como toda a vida de Jesus depende do
consentimento que Ele deu “ao entrar neste mundo”, quando afirmou: “não quiseste hóstia, nem oblação, mas me
formaste um corpo; os holocaustos pelo pecado não te agradaram. Então eu disse:
Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade”.
Também os Padres
disseram que a nossa salvação dependia do consentimento de Maria, que concebeu
seu Filho em espírito antes de concebê-Lo corporalmente.
Pode-se objetar que
um decreto divino, como aquele da Encarnação, não pode depender do livre
consentimento de uma criatura, que poderia recusá-lo.
A teologia
responde: segundo o Dogma da Providência, Deus quis eficazmente e previu
infalivelmente todo o bem que acontecerá de fato no decorrer dos tempos. Quis,
pois, eficazmente e previu infalivelmente o consentimento de Maria, condição
prévia da realização do mistério da Encarnação. Desde toda a eternidade, Deus,
que opera tudo “com força e suavidade”, decidiu outorgar a Maria uma graça
eficaz que lhe fará dar esse consentimento livre, salutar e meritório. Da mesma
forma que faz florescer as árvores, Deus faz florescer também nossa livre
vontade fazendo-a produzir seus atos bons; longe de violentá-la nisso, Ele a
atualiza e produz nela, e com ela, o modo livre de nossos atos, que é ainda
ser. Esse é o segredo do Deus Onipotente. Da mesma maneira que, por obra do
Espírito Santo, a Virgem Maria concebeu o Salvador sem perder a virgindade,
assim também, pela moção da graça eficaz, disse infalivelmente o seu fiat sem que sua liberdade
fosse em nada lesada ou diminuída; ao contrário, por esse contato virginal da
moção divina e da liberdade de Maria, esta floresceu muitíssimo espontaneamente
nesse livre consentimento dado em nome da humanidade.
Esse fiat era totalmente de Deus,
como causa primeira, e totalmente de Maria, como causa segunda. Da mesma
maneira, uma flor ou um fruto são totalmente de Deus, como autor da natureza, e
totalmente da árvore que os carrega, como causa segunda.
Nesse consentimento
de Maria, vemos um perfeito exemplo do que diz Santo Tomás: “Ora, a vontade
divina, sendo eficacíssima, não somente produz as coisas que quer que se façam,
mas, também do modo pelo qual assim as quer. Ora, Deus quer que algumas se
façam necessariamente, outras, contingentemente”. “Como nada resiste à vontade
divina, resulta que, não somente se farão as coisas que Deus quer que se façam,
mas se farão contingente ou necessariamente, conforme ele o quiser”.
Maria, por
seu fiat no dia da
Anunciação, tornou-se, portanto, voluntariamente a Mãe do Redentor como tal.
Toda a Tradição o
reconhece ao chamá-la de a Nova Eva. Ela só o pode ser
efetivamente porque, por seu consentimento, tornou-se Mãe do Salvador para a
obra redentora; do mesmo modo que Eva, ao consentir na tentação, induziu o
primeiro homem ao pecado que o fez perder para si e para nós a justiça original.
Os protestantes têm
objetado: os antepassados da Santíssima Virgem podem, desse modo, ser chamados
pai ou mãe do Redentor, e dizer-se deles que estiveram “associados à sua obra
redentora”. É fácil responder que somente Maria foi iluminada para consentir em
se tornar a Mãe do Salvador e estar associada à sua obra de salvação, porque
seus antepassados sequer sabiam que o Messias nasceria de sua própria
família.
Santa Ana não podia
prever que a sua filha tornar-se-ia um dia a mãe do Salvador prometido.
Como a Mãe de Redentor esteve
associada à Sua obra?
Conforme isso que
os Padres da Igreja nos transmitiram sobre Maria, a Nova Eva, que muitos dentre
eles vêem anunciado nas palavras divinas do Gênesis: “A posteridade da mulher esmagará a cabeça da
serpente”, é uma doutrina comum e certa na Igreja, e
mesmo próxima da fé, a que afirma que a Santíssima Virgem, Mãe do
Redentor, foi associada a Ele na obra da redenção como causa segunda e
subordinada, da mesma
maneira que Eva esteve associada a Adão na obra da perdição.
De fato, já no
século II, essa doutrina de Maria, a nova Eva, está universalmente admitida, e
os Padres que a expõem não o fazem como se fosse uma especulação pessoal, mas
como doutrina tradicional da Igreja que se apóia nas palavras de São Paulo,
onde o Cristo é chamado de novo Adão e é contraposto ao primeiro, como a causa
da salvação opõe-se à da queda. Os Padres aproximam dessas palavras de São
Paulo o relato da queda, a promessa da redenção, da vitória sobre o demônio e
o relato da Anunciação, onde se fala do consentimento de Maria para a
realização do mistério da Encarnação redentora. Pode-se, portanto, e mesmo
deve-se ver nessa doutrina de Maria ― a nova Eva associada à obra redentora de
seu Filho ― uma tradição divino-apostólica.
Os Padres que a
expõem mais explicitamente são: São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, São Cipriano, Orígenes,
São Cirilo de Jerusalém, Santo Efrém, Santo Epifânio, São João Crisóstomo, São
Proclo, São Jerônimo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho, Basílio de Selêucia, São
Germano de Constantinopla, São João Damasceno, Santo Anselmo e São
Bernardo. Posteriormente, todos os doutores da Idade Média e os teólogos
modernos falam no mesmo sentido.
Em que sentido,
segundo a tradição, Maria, a nova Eva, esteve associada, aqui na Terra, à obra
redentora de seu Filho?
Não só esteve
associada por tê-lo fisicamente
concebido, dado à luz e o alimentado, mas moralmente por seus atos
livres, salutares e meritórios.
Assim como Eva
cooperou moralmente com a queda, cedendo à tentação do demônio, por um ato de
desobediência e induzindo Adão ao pecado, Maria, a nova Eva, pelo contrário,
segundo o plano divino, cooperou moralmente em nossa redenção, acreditando nas
palavras do arcanjo Gabriel, consentindo livremente no mistério da Encarnação
redentora e em todos os sofrimentos que esse mistério acaretaria para seu Filho
e para si mesma.
Maria certamente
não é a causa principal e efetiva da redenção; não podia nos resgatar de condigno, por justiça, porque
faltava a ela um ato teândrico de valor intrinsecamente infinito, que só podia
pertencer a uma pessoa divina encarnada. Mas Maria é realmente causa secundária, subordinada a Cristo e dispositiva de nossa
redenção. Ela é mesmo dita “subordinada a Cristo,” não só no sentido de que lhe
é inferior, mas também porque contribui com a nossa salvação por uma graça proveniente dos méritos de Cristo, e então age n'Ele,
com Ele e por Ele, in ipso, cum ipso et per ipsum. Não se deve nunca
perder de vista que Cristo é o mediador universal supremo e que Maria foi
resgatada pelos méritos do Salvador, por uma redenção não libertadora, mas
preservadora, uma vez que foi preservada do pecado original e também de toda
falta pelos méritos futuros do Salvador de todos os homens. Ela também não
contribui para a nossa redenção mais que por Ele, no sentido em que é causa
secundária, subordinada, e não perfectiva, mas dispositiva, pois nos dispõe a
receber a influência de seu Filho que, por ser o autor de nossa salvação, deve
completar em nós a redenção.
Maria está, então,
associada à obra de seu Filho, não como o foram os Apóstolos, mas em sua
qualidade de Mãe do Redentor como tal, depois de ter dado seu consentimento ao
mistério da Encarnação redentora e a todas as conseqüências que esse mistério
comportaria; esteve, portanto, associada a Ele da maneira mais íntima, como só
uma Mãe santa pode estar, com todo o seu coração e toda a sua alma
sobrenaturalizada pela plenitude da graça. Isso é o que afirma em termos muito
exatos Santo Alberto Magno, numa fórmula que já citamos: “Beata Virgo Maria non est assumpta in
ministerium a Domino, sed in consortium et in
adjutorium, secundum illud: Faciamus
ei adjutorium simile sibi”.
*
* *
Vê-se, portanto, que a unidade da Mariologia não é
diminuída como se estivesse dominada por dois princípios (Mãe de Deus e
Corredentora) e não por um somente. O princípio que a domina é o
seguinte: Maria é a Mãe do Deus Redentor, e por esse mesmo
título está associada à sua obra. Da mesma forma, os dois mistérios da
Encarnação e da Redenção não constituem uma dualidade que diminuiria a unidade
da Cristologia, porque os dois unem-se na Encarnação redentora; essa união está
expressa no próprio Credo nestes
termos: “Filius Dei qui propter nos
homines et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est”
(Símbolo Niceno-Constantinopolitano).
Ademais, como em Jesus Cristo a Filiação divina
natural ou a graça da união hipostática é superior à plenitude de graça
habitual e à nossa redenção, assim também em Maria a Maternidade Divina é
superior à plenitude de graça que se derrama sobre nós, como demonstramos no
primeiro capítulo deste livro. A unidade da ciência teológica contribui para
essa certeza; essa ciência não pode ser dominada por primeiros princípios coordenados, mas por
princípios subordinados. E
o mesmo acontece com cada um de seus tratados, uma vez que todos eles em
conjunto estão subordinados a uma verdade suprema.
Fonte: https://permanencia.org.br/drupal/node/5581
Postagem posterior: A Mãe de todos os homens
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