Réginald Garrigou-Lagrange, O.P.
Maria recebeu,
segundo a Tradição, não somente o título de nova Eva, senão o de Mãe da Divina
Graça, Mãe Amável, Mãe Admirável, como a chamam as ladainhas, e ainda Mãe de
Misericórdia. Os Padres chamam-na muitas vezes de Mãe de todos os cristãos e
mesmo de todos os homens. Em que sentido deve-se entender essa maternidade?
Quando Maria tornou-se a nossa Mãe? Como sua maternidade se estende a todos os
fiéis, mesmo que não estejam em estado de graça, e como a todos os homens,
mesmo aqueles que não possuem a fé? Essas são as questões que convém examinar
aqui.
Em que sentido Maria é nossa Mãe?
Ela não é,
evidentemente, nossa mãe do ponto de vista natural, pois não nos deu a vida
corporal. Sob esse aspecto, Eva é que merece ser chamada de mãe de todos os
homens, pois todos descendemos dela mediante gerações sucessivas.
No entanto, Maria é
nossa mãe espiritual e adotiva, no sentido em que, por sua união ao Cristo
Redentor, comunicou-nos a vida sobrenatural da graça. A partir desse ponto de
vista, ela é muito mais que nossa irmã, e pode ser chamada, por analogia com a
vida natural, nossa Mãe, pois nos gerou para a vida da graça.
Se São Paulo pode
dizer aos Coríntios, falando de sua paternidade espiritual: “Eu os gerei em Jesus Cristo por meio do
Evangelho”, e a Filêmon: “Rogo-te por
meu filho, Onésimo, que eu gerei nas prisões (convertendo-o a Cristo)”,
com muito mais razão podemos falar da maternidade espiritual de Maria,
maternidade que transmite uma vida que deve durar não sessenta ou oitenta anos,
mas para sempre, eternamente.
Essa é uma
maternidade adotiva, como a paternidade espiritual de Deus com respeito aos
justos, mas essa adoção é muito mais íntima e fecunda que a adoção humana, pela
qual um rico sem descendência declara considerar um pobre órfão como seu filho
e herdeiro. Essa declaração é sempre de ordem jurídica e, ainda que seja o
sinal da afeição daquele que adota, não produz o menor efeito na alma da
criança adotada. Ao contrário, a paternidade adotiva de Deus com relação ao
justo produz na alma do adotado a graça santificante, a participação da
natureza divina ou da vida íntima de Deus e germe da vida eterna, germe pela
qual o justo é agradável aos olhos de Deus como um filho chamado a vê-lo
imediatamente e a amá-lo por toda a eternidade. Nesse sentido, diz-se no
Prólogo de São João que aqueles que crêem no Filho de Deus feito homem são
“nascidos não da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus”. Isso nos mostra a
fecundidade da paternidade espiritual; dessa fecundidade participa a
maternidade espiritual e adotiva de Maria, porque, em união com o Cristo
Redentor, ela nos tem comunicado verdadeira e realmente a vida da graça, germe
da vida eterna. Ela pode, portanto, e deve ser chamada de Mater gratiae, Mater Misericordiae. É isso que
querem dizer os Padres ao chamá-la de nova Eva, dizendo que tem voluntariamente
cooperado para a nossa salvação, como Eva o fez para a nossa ruína.
Esse ensinamento é
parte da pregação universal a partir do século II e se encontra em São Justino,
Santo Irineu, Tertuliano, São Cirilo de Jerusalém, Santo Epifânio, São João
Crisóstomo, São Proclo, São Jerônimo, Santo Ambrósio e Santo Agostinho, onde
eles falam da nova Eva nas passagens citadas no artigo precedente. Essa
doutrina foi particularmente desenvolvida no século IV por Santo Efrém, que
chama Maria de “a Mãe da vida e da salvação, a Mãe dos viventes e de todos os
homens”, porque nos deu o Salvador e uniu-se a Ele no Calvário. Falam no mesmo
sentido São Germano de Constantinopla, São Pedro Crisólogo, Eadmero, São
Bernardo, Ricardo de São Lorenzo e Santo Alberto Magno, que chamam Maria
de: Mater misericordiae, Mater regenerationis, totius humani generis mater spiritualis 10, e igualmente São Boaventura.
A liturgia diz
todos os dias: “Salve, Regina, Mater misericordiae...; Monstra te esse Matrem...; Salve, Mater misericordiae, Mater Dei et Mater veniae, Mater spei et Mater gratiae”.
Quando Maria tornou-se nossa Mãe?
Segundo os
testemunhos que acabamos de citar, Maria tornou-se nossa Mãe ao consentir
livremente em ser a Mãe do Salvador, o autor da graça, que nos regenerou
espiritualmente. Nesse instante, ela concebeu-nos espiritualmente, de tal
maneira que teria sido nossa mãe adotiva por esse fato, ainda que tivesse
morrido antes de seu Filho.
Quando depois Jesus
consumou a sua obra redentora pelo sacrifício da Cruz, Maria, ao unir-se a esse
sacrifício pelo imenso ato de fé, confiança e amor a Deus e às almas, tornou-se,
de um modo mais perfeito, nossa Mãe, por uma cooperação mais direta, mais
íntima e mais profunda em nossa salvação.
Ademais, nesse
momento foi proclamada nossa Mãe por Nosso Senhor, quando Ele lhe disse, ao
falar de São João, que personificava a todos os que deveriam ser resgatados
pelo seu sangue: “Mulher, eis aqui seu filho”, e a João: “Eis aqui a Sua Mãe”. É assim que a Tradição
tem entendido essas palavras, porque nesse momento e diante de tantas
testemunhas o Salvador de todos os homens não concedia somente uma graça
particular a São João, mas considerava nele todos aqueles que deveriam ser
regenerados pelo sacrifício da Cruz.
Essas palavras de
Jesus em seus derradeiros instantes, como as palavras sacramentais, produziram
o que significavam: na alma de Maria um grande aumento de caridade ou de amor
maternal por nós; na alma de João um afeto filial profundo e cheio de respeito
pela Mãe de Deus. Essa é a origem da grande devoção a Maria.
Finalmente, a
Santíssima Virgem continua exercendo sua função de Mãe com relação a nós,
velando sobre nós para que cresçamos na caridade e perseveremos nela,
intercedendo por nós e distribuindo-nos todas as graças que recebemos.
Qual é a extensão de sua maternidade?
Maria é, em
primeiro lugar, a Mãe dos fiéis, de todos os que crêem em Seu Filho e recebem
por Ele a vida da graça. Mas é também a Mãe de todos os homens, uma vez que nos
deu o Salvador de todos e uniu-se à oblação de seu Filho, que derramou seu
sangue por todos. Isso é o que afirmam os Papas Leão XIII, Bento XV e Pio XI.
Ademais, não é
somente Mãe dos homens em geral, como se pode dizer de Eva do ponto de vista
natural, mas é Mãe de cada um em particular, porque intercede em favor de cada
um e obtém as graças que cada um de nós recebe no transcurso das gerações
humanas. Jesus diz de si mesmo que é o Bom Pastor “que chama as suas ovelhas,
cada uma pelo seu nome, nominatim”;
algo semelhante acontece com Maria, a Mãe espiritual de cada homem em
particular.
No entanto, Maria
não é da mesma maneira Mãe dos fiéis e dos infiéis, dos justos e dos pecadores.
Deve-se fazer aqui a distinção admitida a respeito de Jesus Cristo em
comparação aos diversos membros de Seu Corpo Místico. Em relação aos infiéis,
ela é sua Mãe enquanto está destinada a gerá-los para a vida da graça, e
enquanto lhes obtém graças atuais que os dispõem à fé e à justificação. Em
relação aos fiéis que estão em estado de pecado mortal, ela é sua Mãe enquanto
vela atualmente por eles obtendo-lhes graças necessárias para fazer atos de fé,
de esperança e dispô-los à conversão; no que diz respeito aos que morrem na
impenitência final, Maria não é mais sua Mãe, mas o foi. Em relação aos justos,
é perfeitamente sua Mãe, uma vez que eles têm recebido, por sua cooperação
voluntária e meritória, a graça santificante e a caridade; vela por eles com
terna solicitude para que permaneçam em estado de graça e que cresçam na
caridade. É finalmente a Mãe por excelência dos bem-aventurados que não podem
perder a vida da graça.
Vê-se agora todo o
sentido das palavras que a Igreja canta todas as noites na oração de Completas:
“Salve, Rainha, Mãe de misericórdia; vida, doçura e esperança nossa, salve. A
vós bradamos os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos gemendo e chorando
neste vale de lágrimas...”.
*
* *
São Luís Grignion
de Montfort expôs admiravelmente as conseqüências dessa doutrina em seu
belíssimo livro Tratado da
verdadeira devoção à Santíssima Virgem: Deus quer se servir de
Maria na santificação das almas. Isso se resume assim em O segredo de Maria: “Ela deu a vida ao Autor
de toda graça, e por isso é chamada de Mãe da graça. Deus Pai, de quem
procedem, como de sua fonte essencial, todo dom perfeito e toda graça, deu-lhe
seu Filho, deu-lhe todas as graças; de modo que, como diz São Bernardo, a
vontade de Deus lhe é dada n'Ele e com Ele.
“Deus a escolheu
para tesoureira, ecônoma e dispensadora de todas as suas graças, de maneira que
todas as suas graças e todos os seus dons passam por suas mãos... Uma vez que
Maria formou Jesus Cristo, a Cabeça dos predestinados, a Ela também compete formar
os membros dessa Cabeça, que são os verdadeiros cristãos... Maria recebeu de
Deus um domínio particular sobre as almas para alimentá-las e fazê-las crescer
em Deus. Santo Agostinho chega mesmo a dizer que, neste mundo, os predestinados
estão todos guardados no seio de Maria, e que não nascem senão quando essa boa
Mãe os gera para a vida eterna... Foi a ela que o Espírito Santo disse: In electis meis mitte radices (Ecl
24,13): Lançai raízes em meus eleitos... as raízes de uma profunda humildade,
de uma ardente caridade e de todas as virtudes.
“Maria é chamada
por Santo Agostinho, e é, com efeito, o molde vivo de Deus, forma Dei, o que quer dizer que
foi nela somente que Deus feito homem foi formado... e é assim nela somente que
o homem pode ser formado em Deus... Todo aquele que é lançado nesse molde
e se deixa modelar,
recebe todos os traços de Jesus Cristo, verdadeiro Deus, de uma maneira
proporcionada à fraqueza humana, sem muitas penalidades e trabalhos; de uma
maneira segura, sem temor de ilusões, pois o demônio nunca teve e jamais terá
acesso a Maria, santa e imaculada, sem sombra da menor mancha de pecado.
“Quanta diferença
existe entre uma alma formada em Jesus Cristo pelas vias ordinárias dos que,
como escultores, confiam na própria habilidade e apóiam-se em sua indústria, e
outra alma bem manejável, bem desligada, bem fundida, e que, sem nenhum apoio em si mesma,
lança-se em Maria e nela se deixa conduzir pela operação do Espírito Santo!
Quantas faltas e defeitos, quantas trevas e ilusões, quanto de natural e de
humano há na primeira alma, enquanto que a segunda é pura, divina e semelhante a Jesus Cristo!...
“Feliz, mil vezes
feliz, é a alma, aqui na Terra, a quem o Espírito Santo revela o segredo de
Maria, para conhecê-la, e à qual abre esse jardim fechado, para aí penetrar;
essa fonte selada, para dela extrair e saborear a grandes sorvos as águas vivas
da graça! Essa alma achará somente a Deus, sem criatura alguma, nessa amável
criatura; Deus, que é ao mesmo tempo infinitamente santo e infinitamente
condescendente e proporcionado à sua fraqueza... É Deus somente que vive nela
[em Maria] e, longe de deter uma alma para si, lança-a, pelo contrário, em Deus
e a une a Ele”.
Assim, a doutrina
cristã sobre Maria torna-se, com o Santo de Montfort, o objeto de uma fé
penetrante e deleitável, de uma contemplação que leva por si mesma a uma
verdadeira e vigorosa caridade.
Maria, causa
exemplar dos eleitos
Cristo é o nosso
modelo e sua predestinação à filiação divina natural é a causa exemplar de
nossa predestinação à filiação adotiva, pois “Deus nos predestinou para sermos feitos em conformidade à imagem
de seu Filho, para que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos”.
Assim também Maria, nossa Mãe, associada a seu Filho, é a causa exemplar da
vida dos eleitos, e é nesse sentido que Santo Agostinho e depois dele São Luís
de Montfort dizem que ela é o molde ou
o modelo à imagem
do qual Deus forma os eleitos. É necessário estar marcado com seu sinal e
reproduzir seus traços para ter lugar entre os prediletos do Senhor; e por isso
os teólogos ensinam comumente que uma verdadeira devoção a Maria é um dos
sinais de predestinação. O bem-aventurado Hugo de São Caro chega a dizer que
Maria é como o livro da
vida, ou um reflexo desse livro eterno, porque Deus escreveu nela o
nome dos eleitos, como quis formar nela e por ela a Cristo, seu primeiro
eleito.
São Luís Grignion
de Montfort escreveu que Deus Filho diz à sua Mãe: “‘In Israel hereditare ―
Possui tua herança em Israel’ (Eclo 24, 13), como se dissesse: Deus, meu Pai,
deu-me por herança todas as nações da Terra, todos os homens bons e maus,
predestinados e réprobos. Eu os conduzirei, uns pela vara de ouro, outros pela
vara de ferro; serei o pai e advogado de uns, o justo vingador para outros, e o
juiz de todos; mas vós, minha querida Mãe, só tereis por herança e possessão os
predestinados, figurados por Israel. Como sua boa mãe vós lhes dareis a vida,
os nutrireis, educareis; e, como sua soberana, os conduzireis, governareis e
defendereis”.
É nesse mesmo
sentido que se deve entender o que diz o próprio autor, um pouco adiante 22, ao mostrar que Maria, assim como Jesus, escolhe sempre em
conformidade ao beneplácito divino que inspira sempre a sua eleição: “O
Altíssimo a fez tesoureira de todos os seus bens, dispensadora de suas graças,
para enobrecer, elevar e enriquecer a quem ela quiser, para fazer entrar quem
ela quiser no caminho estreito do Céu, para deixar passar, apesar de tudo, quem ela quiser
pela porta estreita da vida eterna. E para dar o trono, o cetro, e a coroa de
rei a quem ela quiser... A Maria somente Deus confiou as chaves dos celeiros
(Ct 1, 3) do divino amor, e o poder de entrar nas vias mais sublimes e mais
secretas da perfeição, e de nesses caminhos fazer entrar os outros”.
Vemos nisso toda a
extensão da maternidade espiritual, pela qual Maria modela os eleitos e os
conduz ao término do seu destino.
Fonte: https://permanencia.org.br/drupal/node/5582
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