Réginald Garrigou-Lagrange, O.P.
Natureza e extensão desses méritos
Não é somente no Céu que a
Santíssima Virgem exerce suas funções de Medianeira universal pela intercessão
e distribuição de todas as graças; ela as exerceu já sobre a Terra, segundo a
expressão comum, “pela aquisição dessas graças”, cooperando com a nossa redenção
pelo mérito e pela satisfação. Nisso esteve associada a Nosso Senhor, que foi
inicialmente mediador durante sua vida terrena, sobretudo pelo sacrifício da
Cruz. Essa associação é também o fundamento da mediação que Ele exerce no Céu,
pela intercessão de Maria, para nos aplicar os frutos da redenção que Ele nos
transmite. Vejamos qual é o ensinamento comum dos teólogos sobre os méritos de
Maria para nós, partindo dos próprios princípios da teologia sobre os
diferentes gêneros de mérito.
Três gêneros de mérito propriamente dito
O mérito em geral é um
direito a uma recompensa; ele não a produz, mas a obtém; o ato meritório
confere direito. O mérito sobrenatural que pressupõe o estado de graça e a
caridade é um direito a uma recompensa sobrenatural. Distingue-se da
satisfação, que tem por objetivo reparar, pela expiação, a ofensa cometida pelo
pecado à majestade infinita de Deus e torná-lo favorável a nós. O mérito, que
pressupõe o estado de graça, distingue-se também da oração que, por uma graça
atual, pode existir no homem em estado de pecado mortal, e que se dirige não à
justiça divina, mas à misericórdia. Até mesmo no justo, ademais, a força
impetratória da oração distingue-se do mérito, e por isso a oração consegue
obter graças que não podem ser merecidas, como a da perseverança final, que é a
continuação do estado de graça no momento da morte.
Mas é preciso distinguir
três gêneros de mérito propriamente dito.
Existe primeiro, em sumo
grau em Cristo, o mérito perfeitamente digno de sua recompensa, ou mérito
perfeito de condigno, porque o valor da obra ou
do ato de caridade teândrica, que na alma de Jesus procede da divina pessoa do
Verbo, iguala ao menos o valor da retribuição em estrita justiça. Os atos meritórios de Cristo
que eram, em sua santa alma, atos de caridade ou inspirados por ela, têm um
valor infinito e superabundante em virtude da pessoa do Verbo da qual derivam.
E Ele pôde, em estrita justiça, merecer por nós as
graças da salvação, porque foi constituído Cabeça da humanidade, pela plenitude
de graça que devia derramar sobre nós para nossa salvação.
Em segundo lugar, é de fé que
todo justo ou toda pessoa em estado de graça que tem o uso da razão e do livre
arbítrio, e que está ainda em estado de viator, pode
merecer o aumento da caridade e a vida eterna por um mérito real, comumente chamado mérito de condigno, porque
é digno de sua recompensa. Não significa que o mérito do justo esteja em pé de
igualdade com a recompensa, como no Cristo, mas que ele lhe é proporcional,
enquanto procedendo da graça habitual, germe da vida eterna prometida por Deus
àqueles que observam os Seus mandamentos. Esse mérito de condigno tem, todavia,
um direito à recompensa em justiça distributiva, ainda que
não seja, segundo todo o rigor da justiça, como o de Cristo. Por isso a vida
eterna é chamada de coroa de justiça, uma retribuição que se deve fazer à obra
realizada, a recompensa de um trabalho que a justiça divina não pode esquecer.
Mas o justo não pode merecer
por um mérito de condigno baseado na justiça, a graça para um outro homem, a conversão de um pecador ou o
aumento da caridade em outra pessoa; a razão é que não foi constituído cabeça
da humanidade para regenerá-la e conduzi-la à salvação; isso pertence apenas a
Cristo. Em outros termos, o mérito de condigno dos justos, e mesmo o mérito da
Virgem Maria, contrariamente ao de Cristo, é incomunicável.
Não obstante, todo justo
pode merecer a graça para os outros por um mérito de conveniência, de congruo proprie, que está fundado não na
justiça, mas na caridade ou amizade que o une a Deus; os teólogos dizem que
está fundado nos direitos da amizade, in jure amicabili.
Santo Tomás o explica dizendo: “Pois o homem, constituído em graça, cumprindo a
vontade de Deus, é congruente que Deus, por uma amizade proporcional, cumpra a
vontade de um relativa à salvação de outro. Embora, às vezes, possa advir
impedimento por parte daquele a quem esse justo desejava a justificação”, de
tal modo que não se converterá de fato. Em outros termos: se o justo cumpre a
vontade de Deus, seu amigo, convém, segundo os direitos de amizade, que Deus,
seu amigo, cumpra o desejo de seu bom servidor. Assim, uma boa mãe cristã pode,
por suas boas obras, por seu amor a Deus e ao próximo, merecer de congruo proprie, com um
mérito de conveniência, a conversão de seu filho; assim Santa Mônica obteve a
conversão de Santo Agostinho, não somente por suas orações dirigidas à infinita
Misericórdia, mas por esse gênero de mérito: “O filho de tantas lágrimas ―
disse-lhe Santo Ambrósio ― não poderia perecer”.
Vemos aqui o que deve ser o
mérito de Maria para nós; deve-se notar a esse respeito que esse terceiro
gênero de mérito, chamado de congruo proprie, ou de
conveniência, é também um mérito propriamente dito, baseado in jure amicabili, sobre os
direitos da amizade divina, que pressupõe o estado de graça.
A razão é que a noção de mérito não é unívoca ou suscetível de ser tomada
num só sentido, mas é análoga, ou
seja, tem sentidos diversos, mas proporcionalmente semelhantes,
que são ainda sentidos próprios e não somente metafóricos ou em sentido lato,
da mesma maneira que a sabedoria dos santos, sem ser a de Deus, é também e em
sentido próprio, uma verdadeira sabedoria; igualmente a sensação, sem ser um
conhecimento intelectual, é, em sentido próprio, um verdadeiro conhecimento em
sua ordem.
Assim, abaixo dos méritos
infinitos de Cristo, que apenas em estrita justiça pôde nos merecer a salvação,
abaixo do mérito de condigno do justo para si mesmo, que lhe dá o direito em
justiça a um aumento da caridade e (se morre em estado de graça) para a vida
eterna, existe o mérito de conveniência de congruo proprie, baseado
nos direitos da amizade, que é ainda um mérito propriamente dito e que
pressupõe o estado de graça e a caridade.
Há ainda um mérito
impropriamente dito, que é aquele que se encontra na oração de um homem em
estado de pecado mortal, oração que tem um valor impetratório e que se dirige
não à justiça de Deus, mas à sua misericórdia, e que se funda não nos direitos
da amizade divina de caridade, mas na graça atual que o leva a rezar. Esse
último mérito é chamado de conveniência em sentido lato somente, de congruo improprie, não
sendo um mérito propriamente dito.
Tais são, pois, os três
gêneros de mérito propriamente dito: o de Jesus Cristo para nós, o do justo para
si mesmo e o do justo para outro homem.
O mérito propriamente dito de conveniência de Maria para nós
Se tal é o ensino geral dos
teólogos sobre os diferentes gêneros de mérito, se Santa Monica pôde merecer,
propriamente falando, com um mérito de conveniência, de congruo proprie, a conversão de Agostinho, como a
Santíssima Virgem, Mãe de todos os homens, pôde merecer por nós? Apresentada
assim a questão à luz dos princípios já enunciados, é mister resolvê-la.
Não é, pois, de admirar que
a partir sobretudo do século XVI, os teólogos ensinem comumente de forma
explícita que isso que Cristo nos mereceu de condigno, a
Santíssima Virgem nos mereceu por um mérito de conveniência, de congruo proprie.
Esse ensinamento foi
explicitamente formulado por Suárez, que demonstra, pelos múltiplos testemunhos
da Tradição, que Maria, embora não nos tenha nada merecido de condigno, porque não foi constituída cabeça
da Igreja, cooperou, no entanto, para nossa salvação pelo mérito de
conveniência, ou de congruo.
João de Cartagena, Novatov, Cristóvão de Veja, Teófilo de Raynaud e Jorge
de Rhodes reproduzem essa mesma doutrina.
O mesmo ensinamento é
comumente dado pelos teólogos posteriores, notadamente nos séculos XIX e XX,
como Ventura, Scheeben, Terrien, Billot, Lepicier, Campana, Hugon, Bittremieux,
Merkelbach, Friethoff e todos os que têm escrito nos últimos anos sobre a mediação
universal da Santíssima Virgem.
Finalmente, o Papa Pio X,
na encíclica Ad diem illum, de 2 de
fevereiro de 1904, diz: “Maria... porque supera todas as outras criaturas pela
santidade e união a Cristo, e porque foi associada por Ele à obra de nossa
salvação, nos mereceu por um mérito de conveniência, de
congruo, como dizem, o que Ele mesmo nos mereceu por um mérito de
condigno, e ela é a principal tesoureira das graças que são distribuídas”.
Como se observa, há uma
dupla diferença entre o mérito de conveniência de Maria e o nosso: a Santíssima
Virgem pôde assim nos merecer não apenas algumas graças, mas todas e cada uma
delas, e não só nos mereceu a aplicação, mas a aquisição, porque esteve unida a
Cristo Redentor no ato mesmo da redenção aqui na Terra, antes de interceder por
nós no Céu.
Essa conclusão, tal como
foi aprovada pelo Papa Pio X, é simplesmente a aplicação à Maria da doutrina
comumente admitida sobre as condições do mérito de conveniência, de congruo proprie, fundado in jure amicabili, na amizade que une o
justo com Deus. Portanto, certos teólogos consideram essa conclusão como
moralmente certa, outros como uma verdadeira conclusão teológica inteiramente
certa, e outros até como uma verdade formal e implicitamente revelada e
definível como dogma. É ao menos, pensamos, uma conclusão teológica certa.
Voltaremos a esse assunto no cap. III, art. III.
Qual é a extensão desse mérito de conveniência de Maria para nós?
Como a Virgem tem sido
associada à totalidade da obra redentora de Cristo, e como os teólogos que
acabamos de citar dizem geralmente que tudo o que
Cristo nos mereceu de condigno Maria
nos mereceu de congruo, e
como, enfim, o Papa Pio X, ao sancionar essa doutrina, não colocou nenhuma
restrição, bastará recordar o que Cristo nos mereceu.
Jesus nos mereceu em
justiça todas as graças suficientes necessárias
para que todos os homens possam realmente observar os preceitos, ainda que não os observem de fato, todas as graças eficazes com seu efeito conseqüente, ou seja, que alcançam o cumprimento
efetivo da vontade divina e, finalmente, mereceu para os eleitos todos
os efeitos da sua predestinação: a vocação cristã, a
justificação, a perseverança final e a glorificação ou a vida eterna.
Segue-se daqui que Maria
nos mereceu por um mérito de conveniência todas essas graças, e que no Céu pede
a aplicação das mesmas e as distribui.
*
* *
Tudo isso nos mostra em que
sentido tão elevado, tão íntimo e tão extenso Maria é nossa Mãe espiritual, a
Mãe de todos os homens, e, por conseguinte, quanto deve velar pelos que não só
a invocam às vezes, mas que se consagram a ela, para serem conduzidos por ela à
intimidade de Cristo, como explicou admiravelmente São Luís Grignion de
Montfort 19: “Maria
é necessária aos homens para chegarem ao seu fim último”. A devoção
à Virgem não é, pois, superrogatória, como a que se pode ter por este ou aquele
santo; ela é necessária e, quando verdadeira, fiel e perseverante, é um sinal
de predestinação. Essa devoção “é ainda mais [necessária] para aqueles que são
chamados a uma perfeição particular; nem creio ― diz São Luís ― que uma pessoa
possa adquirir uma união íntima com Nosso Senhor e uma perfeita fidelidade ao
Espírito Santo, sem uma grande união com a Santíssima Virgem e uma grande
dependência de seu socorro... Disse ― acrescenta ― que isso aconteceria
particularmente no fim do mundo... porque o Altíssimo e Sua Santa Mãe devem
suscitar grandes santos... Essas grandes almas, cheias de graça e de zelo, serão
escolhidas em contraposição aos inimigos de Deus a borbulhar em todos os
cantos, e elas serão especialmente devotas da Santíssima Virgem, esclarecidas
por sua luz, alimentadas de seu leite, conduzidas por seu espírito, sustentadas
por seu braço e guardadas sob sua proteção, de tal modo que combaterão com uma
das mãos e edificarão com a outra... Isso lhes há de atrair inimigos sem conta,
mas também vitórias inumeráveis e glória para o único Deus”.
Essa sublime doutrina
espiritual, cujos frutos veremos pouco a pouco, aparece a partir do cume da
contemplação e da união íntima com Deus como a conseqüência natural dessa
verdade admitida por todos os teólogos e afirmada hoje em todas as suas obras:
Maria nos mereceu por um mérito de conveniência tudo o que Nosso Senhor nos
mereceu em estrita justiça e, em particular para os eleitos, os efeitos de sua
predestinação.
Fonte: https://permanencia.org.br/drupal/node/5591
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