Dom Lourenço Fleichman OSB
Em 1976, amigos franceses enviaram a Gustavo Corção notícias de um bispo italiano que escrevera para seus padres e fiéis denunciando o comunismo. Os amigos que enviaram a auspiciosa notícia ao jornalista e escritor católico estavam entusiasmados com a novidade, achando que aquela reação podia significar uma mudança de ares na Igreja.
Gustavo Corção escreveu sobre o fato um artigo em que mostrava aos seus amigos e leitores que o entusiasmo não era cabível. Antes de mostrar quão superficial era a crítica do bispo ao comunismo, Corção explicou:
“Depois do que escrevi no artigo da semana passada sobre o maior escândalo do século, e sobretudo depois de séculos de pronunciamentos da Igreja, eu só posso ter como séria a declaração anticomunista de um bispo quando vier acompanhada de um atestado provando que seu nome estava incluído entre os dos 400 padres conciliares que, em vão, tentaram erguer um baluarte ao avanço comunista, e não entre os nomes dos 3.600 que categoricamente recusaram esse tipo de resistência ou combate”[1].
Estamos assistindo, quarenta anos depois, a uma situação semelhante, por ocasião do Sínodo Extraordinário sobre a Família, que se realizou em Roma, em outubro de 2014.
Assim como os amigos franceses de Gustavo Corção eram “conservadores”, sem no entanto perceberem com a devida profundidade o que estava em jogo, hoje, muitos “conservadores” analisam de modo superficial o Sínodo que acaba de se realizar, deixando de lado o que há de essencial no drama que vivemos na Igreja.
O Cisma oculto
Comecemos, pois, pela principal realidade que importa manter viva e acesa em qualquer análise que se faça do Sínodo: há 50 anos atrás um Cisma monumental foi introduzido na Igreja, realizado por um imenso grupo de bispos que se uniu em uma nova Igreja, Anti-Igreja, Contra-Igreja, ou A Outra, como chamava Gustavo Corção, sem abandonarem a hierarquia católica, podendo assim agir de modo mais eficaz sobre os ingênuos católicos do mundo todo.
Em toda parte levantaram-se os católicos fiéis, na época, para denunciar os erros da nova pastoral introduzida no Concílio Vaticano II. Porém, pouco a pouco, a hierarquia os silenciou, quer pela falsa obediência, quer pelo ostracismo e a marginalidade.
Já não tinham voz ativa, e quando denunciavam os erros do pós-Concílio, não lhes davam crédito. Os papas que fizeram o Concílio, João XXIII e Paulo VI, repetiam que estavam apenas tratando da “pastoral”, abrindo as portas da Igreja aos novos tempos. E afirmavam, como hoje, não tratarem de dogmas e da doutrina. Esta é a segunda característica do cisma. Além de ter sido realizado por membros da própria hierarquia, acalmavam os conservadores com essa palavra de ordem: “pastoral”.
Dois resultados ou conseqüências se seguiram ao Concílio. O primeiro, imediato, rápido, fulminante: em poucos anos conseguiram introduzir tamanha quantidade de reformas nos ritos e costumes que logo já ninguém se lembrava como era a vida e a liturgia católica anterior ao cisma. O segundo, mais lento, penetrando mais profundamente, atingindo o âmago do catolicismo, seu dogma e sua doutrina, foi sendo instalado nas almas por livros, conferências, sermões, cursilhos, universidades. E a fé desapareceu das inteligências. Tudo foi transformado, deformado, destruído.
Partindo pois, de uma nova prática, de nova “pastoral”, facilmente aceita pelos incautos, chegaram à modificação da doutrina que afirmavam não querer mudar.
É conhecida a frase do Cardeal Kasper que reconhece o método utilizado para enganar a Cúria Romana, em 1962: no Concílio, não falaram de doutrina, apenas mudaram a práxis; introduziram uma super-heresia sem pronunciar uma única heresia, apenas inventando nova atitude, nova prática, nova moral. E isso torna uma passagem de S. Paulo verdadeira profecia: “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema. Assim, como já vo-lo dissemos, agora de novo também vo-lo digo. Se alguém vos anunciar outro evangelho além do que já recebestes, seja anátema”[2].
Kasper afirmou, em fevereiro de 2014, que o Sínodo deveria fazer com relação ao casamento, o que o Concílio fizera eficazmente com o catolicismo. Sem mudar a doutrina do casamento indissolúvel, sem tocar nesse assunto, mudar a mentalidade, a atitude dos padres e bispos diante dos divorciados, a ponto de liberar a comunhão sacramental para eles. O cisma oculto começava a ficar evidente.
O Cisma revelado
Ao final da primeira semana de discussões no Sínodo, o cardeal Erdö, relator, publicou um primeiro texto que serviria de base de discussões e emendas durante a segunda semana. Este documento tinha como função causar o choque inicial, quebrar parâmetros, assustar os mais conservadores, e sobretudo, mover a opinião pública, a qual se manifesta de modo mais explícito pela mídia, porém está presente também, de modo mais geral e diluído, no consabido, na impressão que fica na cabeça das pessoas e que perdura como se fosse a posição oficial da Igreja.
Não é de hoje a manifestação entusiasmada, por parte da imprensa, da radical mudança de atitude da Igreja (leia-se, dos homens da Igreja) que se opera desde a eleição do papa Francisco.
A primeira manifestação pública desse “outro” evangelho foi dada no avião em que o papa voltava do Rio de Janeiro, após a triste JMJ, em 28 de julho de 2013:
“Se uma pessoa é gay e procura o Senhor de boa vontade, quem sou eu para julgá-la?” Não há como evitar a aproximação dessa incrível afirmação feita pelo papa, com a frase do Relatório do Card Erdö: “As pessoas homossexuais têm dons e qualidades para oferecer à comunidade cristã.” Foi apenas um passo adiante.
Nessa mesma ocasião, diante dos jornalistas, no avião, o papa afirmou que seria preciso prever uma nova “pastoral” quanto à recepção dos sacramentos por casais de divorciados. Na época não se podia perceber, mas hoje vemos que já era o Sínodo sendo anunciado. Devemos constatar também que o papa parece ter certa pressa. O que ele insinua num dia, põe em prática poucos meses depois.
Em outubro de 2013 o papa anunciava a convocação do Sínodo Extraordinário, para outubro 2014, e que seria completado pelo Sínodo Ordinário, em outubro de 2015. Um questionário sobre a questão da família, divórcio, homossexuais etc. foi enviado aos bispos do mundo todo. Aqui no Brasil esse questionário virou uma espécie de plebiscito, sendo distribuído inclusive entre os fiéis, em algumas dioceses. O papa cercou-se de certos bispos e cardeais escolhidos a dedo, para levar adiante a nova “pastoral”, ou seja, uma nova atitude moral sem que se tocasse no assunto doutrinário.
Chega a impressionar a insistência com que os bispos reafirmaram, ao longo do Sínodo, que o papa Francisco não tratara, hora nenhuma, da doutrina do casamento. Fizeram questão de ecoar a frase do Card. Kasper ao longo do Sínodo. Vejam! Não mudamos nada, não tenham medo, estamos apenas tratando de “pastoral”.
Repetia-se a tática de sucesso que fez desaparecer a fé católica da face da terra. E ninguém se preocupava com isso.
O Circo pegou fogo
O relatório inicial do Card. Erdö pôs fogo no circo. A imprensa entendeu a jogada, e soltou seus fogos de artifício. Era para isso que ele servia. Ninguém pensava em que um texto como aquele fosse aprovado pelos bispos sinodais. Não era essa a intenção.
Tampouco estava em jogo um combate entre “conservadores” e progressistas, no sentido de se chegar a um texto aceitável, como Relatório final. Isso foi feito, é verdade, mas já não importava. O grupo liderado pelo papa Francisco sabia muito bem que o papel do Sínodo Extraordinário já tinha sido realizado. O circo já virara cinzas, e ninguém parecia se dar conta disso. A única voz a declarar essa verdade foi do Cardeal da Africa do Sul, Wilfrid Napier: "A mensagem foi dada: é isso que diz o Sínodo, é isso que diz a Igreja. Não há mais correção que sirva, só poderemos tentar limitar o prejuízo”. Mas ao lúcido bispo de 2014 devemos perguntar: o que o senhor fez para “limitar os prejuízos” quando o novo catecismo, como fruto do Concílio, modificou a doutrina sobre os fins do matrimônio? Os mais lúcidos e “conservadores” são cúmplices do verdadeiro cisma que dura já 50 anos.
Daí a insistência com que alguns bispos afirmaram, ao longo da semana, que não havia um racha dentro do Sínodo. Todos estão unidos! O próprio papa o assinalou no discurso final: “Tantos comentaristas, ou pessoas que falam, imaginaram ver uma Igreja em atrito, onde uma parte está contra a outra, duvidando até mesmo do Espírito Santo, o verdadeiro promotor e garante da unidade e da harmonia na Igreja.”
Parece mentira, mas não é. De fato, o que une esses bispos e cardeais continua unindo-os; o que os divide é um fator que, em si mesmo, faz parte da própria união: essa nova Igreja de Vaticano II é evolutiva, é “pastoral”, é dinâmica. Tendo deixado de lado (abandonado) qualquer menção efetiva ao dogma católico, só lhes interessa o movimento, as vagas, a dinâmica de uma Igreja “fundada sobre rodinhas”, na feliz expressão de Gustavo Corção.
O papa e os bispos sabem que esse movimento “pastoral” tem seu ritmo próprio. A eles não importa o estágio alcançado hoje, basta saberem que a evolução se fez, e que ela continuará a mover a tal “pastoral”. Eis o que afirmou o papa Francisco no discurso final:
“Eu poderia tranquilamente dizer que – com um espírito de colegialidade e de sinodalidade (?) – vivemos realmente uma experiência de “Sínodo”, um percurso solidário, um ‘caminho juntos’.”
Não deixa de ser também chocante o fato do papa afirmar que está ali apegado à doutrina do sacramento do Matrimônio indissolúvel. A tática proposta pelo Card. Kasper em fevereiro se realiza plenamente. No momento mesmo em que toda a moral católica voa em frangalhos, o papa diz que não se toca no dogma. Como se poderia manter intacta uma doutrina quando se propõe subverter a prática e a moral decorrentes dessa mesma doutrina?
Essa é a evolução esperada, a dinâmica preparada cuidadosamente e levada a cabo nessa etapa intermediária da destruição da fé. O Relatório final fica oferecido como um véu “conservador”. Mas o que vai movimentar as discussões, reuniões e preparativos para o Sínodo de 2015 é a brasa ainda quente do circo destruído: a comunhão para os divorciados e a recepção dos homossexuais na vida da Igreja.
Revolvendo as cinzas
Agora voltemos à consideração de Gustavo Corção sobre o bispo italiano que, em 1976, resolveu alertar seus fiéis contra o comunismo.
Os “conservadores” espalhados em blogs e sites acompanharam passo a passo a semana que seguiu à publicação do Relatório inicial do Card. Erdö. A impressão que se tinha era parecida com a de uma corrida eleitoral, todos torcendo pela reviravolta, todos apoiando os bispos mais “conservadores”, e dando vivas de alegria com a suposta vitória desses falsos tradicionais.
Todos acompanharam os detalhes dos diversos grupos de estudo, aplaudindo os relatórios destes, criticando e denunciando o grupo do papa, que, aparentemente, sofria diante da falsa perplexidade dos próprios bispos por ele convocados.
Chegamos assim ao Relatório Final, onde já não se fala de dar a comunhão aos divorciados, ou de receber os valores dos homossexuais dentro das paróquias. Enaltece o amor, a união, a fidelidade, o cuidado com os filhos, dando a impressão de que a doutrina católica venceu a heresia. E as palavras de alívio aparecem em blogs e artigos.
O que não se lê em lugar algum é a crítica devida a todos esses bispos e padres mais “conservadores”. Quem são eles? Em que doutrina eles acreditam? Ora, todos eles são filhos do Vaticano II. Todos eles aceitaram os desmandos desse falso Concílio que introduziu o maior cisma que a Igreja já conheceu. Aceitam tranquilamente a missa nova, mais próxima de um culto protestante do que do Sacrifício da Cruz. Aceitam o falso ecumenismo, afirmando com João Paulo II e os demais papas do pós-concílio, que todas as religiões levam para o céu; aceitam a liberdade religiosa, como se religião fosse opção e não obrigação de todos os homens de cultuar a Deus do modo como Ele próprio nos revelou.
E, finalmente, aceitam a inversão dos fins do casamento, grave deturpação da doutrina católica introduzida tanto no novo Direito Canônico quanto no novo Catecismo. Ora, essa inversão na doutrina católica do casamento é aceita por todos os bispos e cardeais. Como é ela que conduz à nova “pastoral” de Francisco, segue que os bispos “conservadores” são cúmplices daquilo mesmo que parecem combater no Sínodo.
Enfim, o Cisma
Então, o quê? De que vitória se trata? Os vitoriosos ostentam como troféu a doutrina ambígüa do Vaticano II. Ela não serve para o católico; ela é falsa, falsificadora da realidade objetiva do casamento; ela retira do casamento a força da realidade que sempre presidiu à formação da família. A Igreja sempre ensinou que o fim primário do casamento é a procriação, justamente porque não poderia perdurar por toda a história da humanidade uma instituição familiar fundada em algo tão subjetivo e vacilante quanto é o amor. Ao afirmar dogmaticamente que são os filhos, e mais do que os filhos, o próprio ato procriador o fim primário, essencial, principal, do qual os outros dois dependem como subordinados, a Igreja finca um mastro que sustenta as velas da nau familiar, permitindo que ela atravesse o mundo no meio das piores tempestades.
Toda a vida do amor conjugal gira em torno dos filhos, mesmo quando, por infelicidade, eles não são gerados. O amor mútuo sendo um fim subordinado, secundário, não é ausente da doutrina católica sobre a família. Mas ao ser elevado a fim principal, desmorona-se a família. Porque o amor, mesmo considerado de modo racional, menos passional, necessariamente passa pela subjetividade de cada um. E eis o casamento sujeito às variedades dessa vida, como costuma chamar a Igreja aos altos e baixos da nossa condição. Por mais que se exorte o casal a guardar o vínculo, a proteger os filhos, a se sacrificar, ele só conseguirá vencer todas as crises e tentações se tiver um motivo forte e total, algo que esteja acima da vida e da morte. Isso só se consegue com um objeto que esteja fora do homem, e que não seja o seu próprio sentimento vacilante e volúvel.
Mas a abertura ao mundo provocada pelo Concílio Vaticano II estabeleceu uma filosofia de vida subjetiva, onde já não se conhece mais as razões profundas dos nossos sofrimentos, onde cada qual procura satisfazer suas paixões e confortos. Ao mesmo tempo que a linguagem socialista tomou conta do discurso de padres, bispos e papas, querendo fazer tudo girar em termos de “social” e de “comunidade”, eles abandonaram o ensinamento tradicional que nos faz parte de um todo, e que, por isso, devemos viver, em primeiro lugar, pelo bem comum, quer seja na cidade, na vida política, quer seja na casa, no todo da família, do qual somos apenas uma parte.
Mas Paulo VI era discípulo de Jacques Maritain, e é a sua filosofia personalista que vai presidir essa mudança, alegando que cada pessoa é um ser à parte, totalizado em si mesmo, fechado em si mesmo, provocando o desprezo pelas instituições que estão acima de nós, a Igreja, a Pátria e a Família. A partir do Concílio e de Paulo VI, a vida comum, em família ou em política é apenas uma escolha de bom escoteiro, sem vínculo com a realidade profunda do homem animal político.
Por isso o casamento moderno nada mais é do que um somatório temporário de interesses pessoais, movido pela paixão superficial que atrai os corpos no amor carnal. É impressionante o vazio dos sermões de casamento oriundos da drástica mudança da doutrina do casamento operada pelo Concílio. Como o amor individual, personalista, foi colocado no lugar principal, vemos os padres tentando falar sobre o amor e sendo empurrados, em sua mediocridade, a tratar de modo vulgar um momento tão importante quanto seja a fundação de uma nova família, célula da sociedade bem constituída.
A solução deste grave erro está no retorno à doutrina perene da Igreja. Está no abandono das falsas filosofias e das doutrinas produzidas por um Concílio fundamentado em base tão pouco católica.
Por outro lado, a lógica do erro imperceptivelmente introduzido na vida dos homens pelo pós-concílio, querendo seguir o burburinho do mundo, estabelecendo tudo no amor, é chegarmos ao amor invertido homossexual, é chegarmos ao divórcio e à comunhão dos divorciados. Porque, se tudo se baseia no amor e tudo parte da pretensa “dignidade” da pessoa humana, então cada um seguirá a sua consciência, de acordo com seus próprios critérios subjetivos, ou seja, segundo o seu amor. Ou, utilizando a linguagem pervertida de hoje, segundo sua opção sexual. E ninguém poderá contestar esse rei e esse deus criado pelo próprio Concílio Vaticano II: o novo homem, o novo humanismo, como aparece claramente no discurso de encerramento do Concílio, em dezembro de 1965.
Isso é que precisa ser entendido: o que o papa Francisco quer é coerente com a falsa doutrina de Vaticano II. O que é incoerente é os bispos e cardeais acharem que são muito “conservadores” só porque consideram que a evolução ainda não chegou nesse ponto, ou que não podemos ir rápido demais.
Por isso não podemos nos escandalizar com a quebra dos parâmetros realizada por esse Sínodo. O que nos escandaliza é a doutrina perversa de Vaticano II, é a inversão dos fins do casamento aceita alegremente por todos. O que nos escandaliza é o cisma contrário à Igreja Católica impetrado por esses mesmos papas que recebem do papa atual a canonização inválida dessa Outra Igreja.
O que nos escandaliza, enfim, é o escândalo sentido e choramingado por esses “conservadores” incoerentes, inconsistentes, moles e afeminados na defesa da verdade.
[1] O Globo, artigo Um Rebate Falso, 18/3/1976
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