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Pio II, Pinturicchio |
"Ah, se estivessem agora aqui Godofredo, Balduíno, Eustáquio, Hugo, Bohémond e Tancredo, e aqueles outros esforçados varões que um dia reconquistaram Jerusalém, penetrando com suas armas por entre os exércitos inimigos!
"Verdadeiramente, não nos teriam deixado pronunciar tantas palavras, mas se teriam levantado, exclamando com voz fervorosa, como outrora em presença de Urbano II, nosso predecessor: ‘Deus o quer! Deus o quer!’. Mas vós aguardastes em silêncio o fim do discurso, e nossas exortações não parecem ter-vos movido. ...
"Se o acreditais convenientemente, não recusaremos consagrar nosso corpo enfermo e nosso ânimo fatigado a Cristo Nosso Senhor para esta venturosa expedição. Por entre os acampamentos, por entre as fileiras de soldados, em meio dos mesmos inimigos, queremos fazer-nos levar alegremente em uma liteira, se assim nos aconselhais, e não nos limitaremos a andar com o espírito apoucado à caça de bonitas frases".
Estas palavras, proferidas por Pio II em 1459, ao pregar a cruzada em Mântua, resumem todo o pontificado desse Papa que, segundo Pastor e outros autores, centrou-se inteiramente na idéia da guerra aos turcos infiéis.
Pio II subiu ao trono pontifício em 1458, e se defrontou com uma situação internacional extremamente grave, dada a ameaça maometana.
O novo Papa era, entretanto, um homem cujo porte estava na proporção dos acontecimentos. Eneas Silvio Piccolomini nascera de uma família nobre empobrecida.
Seu pontificado, todo "drapé" no heroísmo, na solidão e na tragédia, e portanto em valores diametralmente opostos aos dominantes na Itália do século XV, parece transcender os resíduos de humanismo que lhe possam ter restado de sua vida passada.
Tendo em vista as notícias que chegavam do Oriente a respeito do incessante avanço dos turcos, a atitude do Papa durante as solenidades de sua posse fora "reservada e quase melancólica". Os relatos dos embaixadores que Pio II recebeu nos dias seguintes deixam ver que estava ele preocupado desde então por um pensamento único: a guerra contra os turcos. Logo no mês seguinte, publicou uma bula convidando todos os príncipes para celebrarem um congresso em Mântua, a fim de deliberarem sobre uma cruzada européia.
O Pontífice em pessoa dirigiu-se àquela cidade. Antes, entretanto, fundou duas novas ordens religiosas de cavalaria: a Ordem da Santíssima Virgem Maria de Belém e a Societas Jesu Christi. Formou outrossim o plano de trasladar a Ordem Teutônica da Prússia para as fronteiras turcas.
Em Mântua, entretanto, o esperavam grandes decepções. De todos os reis e príncipes cristãos a quem Pio II havia convidado insistente e repetidamente, nenhum havia comparecido. Semelhante falta de consideração para com a pessoa do Papa fazia temer o pior desenlace. Dentre os próprios cardeais, alguns logo se afastaram de Mântua com diversos pretextos. E estes não eram os piores, pois vários outros procuraram criar entraves ao congresso, qualificando de "pueril" o projeto da cruzada.
Alguma mudança favorável se iniciou, nada menos que 4 meses depois, quando acudiu em pessoa ao congresso o Duque de Milão, Francisco Sforza. Após muitas vicissitudes, publicou Pio II a bula "Ecclesiam Christi", pela qual se declarava uma guerra de três anos contra os turcos e se concedia uma indulgência plenária a todos os que dentro de oito meses tomassem parte na cruzada; e alguns dias depois deixava o Pontífice a cidade, com a saúde quebrantada, não sem antes publicar outra bula em defesa da constituição monárquica da Igreja.
A cruzada, que não nascera de um élan de entusiasmo, mas sim da energia de ferro de Pio II, logo depois do congresso começou a evanescer-se. Já o Imperador, ao qual incumbia em primeiro lugar a obrigação de defender a Cristandade, não se apresentara porque estava fomentando na Hungria uma revolução, a qual contrariava precisamente os interesses da guerra aos infiéis. O rei da França estava em dissensão em relação à Santa Sé, por causa da questão de Nápoles, e ameaçou várias vezes convocar um concílio contra Pio II.
Os apoios mais fortes do Pontífice para a cruzada eram o Rei legítimo da Hungria, o Duque de Borgonha e os príncipes italianos. Estes últimos, entretanto, perdiam-se em permanentes manobras políticas. Em Florença e Milão era muito forte o partido dos que se opunham à cruzada, pois achavam que a luta contra os mouros era uma excelente ocasião para enfraquecer sua rival Veneza, mais diretamente exposta ao perigo: nada melhor do que deixá-la sozinha frente a eles. O embaixador de Milão chegou a dizer: "Aqui se considera como uma desgraça que os turcos hajam conquistado a Bósnia; mas não se contempla de forma alguma como um infortúnio que os venezianos tenham que roer esse osso". E na própria Veneza havia correntes que se opunham à cruzada.
Apenas destoava deste ambiente morno Skanderbeg, "cujo nome sozinho enchia os turcos de terror". Concomitantemente aos esforços de Pio II, ele iniciara nova série de hostilidades contra os muçulmanos.
Pio II resolveu colocar-se ele mesmo à frente da cruzada, para arrebatar o mundo com este rasgo de ousadia, e assim levar atrás de si a expedição contra os inimigos da Fé. Foi-lhe então possível obter duas importantes alianças: um tratado ofensivo firmado entre o Doge de Veneza e o Rei da Hungria, Matias Corvino; e uma aliança tríplice entre a Santa Sé, o duque de Borgonha e o Doge, pela qual se comprometiam a guerrear os turcos e não ajustar a paz senão de comum acordo. Queimando as etapas, em 21 de outubro de 1463 foi lida a bula da cruzada, escrita "com juvenil entusiasmo".
Os meses que se seguiram, entretanto, foram cheios de decepções.
Somente as pessoas de médio a baixo estado se puseram a caminho, principalmente da Alemanha, onde a comoção popular foi tão poderosa que, como refere a crônica de Hamburgo, "o povo abandonava suas carretas e arados e se dirigia a Roma, para lutar contra os turcos". Veneza se fez esquiva, e o Duque de Borgonha, pressionado por Luís XI, inimigo declarado da expedição, aproveitou a ocasião para retirar-se, quebrando o solene voto que fizera. As cidades italianas não cumpriam suas promessas. Irrompeu uma peste, que por toda parte fazia grandes estragos. No próprio Colégio cardinalício, apenas três prelados apoiavam o empreendimento. Pouco depois o Papa sofreu novo ataque de gota, e era opinião comum que lhe seria impossível resistir às fadigas da viagem.
Florentinos chegaram a colocar em mãos do sultão cartas interceptadas aos venezianos, nas quais se revelavam os planos daquela potência marítima, enquanto se dizia que estava a caminho de Veneza um enviado turco, que vinha tratar sobre a paz. Contudo, de muitos países afluíam milhares de pessoas do povinho. O apelo do Papa tinha comovido as nações tão profundamente, que "se os príncipes e os grandes tivessem sido os mesmos de três séculos antes, todo o Ocidente se teria posto em movimento". Muitos, entretanto, vinham sem armas nem recursos, e assim foi preciso encarregar o Bispo de Creta de persuadir a voltarem para suas pátrias os que eram inúteis para a guerra.
Inquebrantável e indiferente às pressões dos cardeais, dos familiares e dos médicos, o Papa tomou a cruz na Basílica Vaticana em 18 de junho de 1464. Medalhas cunhadas na ocasião mostram o Pontífice na proa de um navio, bendizendo com uma mão e tendo à outra o estandarte da cruz, com a legenda: "Exsurgat Deus et dissipentur inimici ejus".
"Adeus, Roma! Não tornarás a ver-me vivo!" — disse comovido o Papa. Embarcou por via fluvial, não desembarcando nem à noite, porque qualquer movimento lhe era extremamente doloroso. Aos padecimentos corporais somavam-se os do espírito. O Cardeal Forteguerri — do qual se julgava que estivesse navegando para Ancona, porto onde se deveria fazer o embarque para o Oriente — se apresentou ao segundo dia de caminho, anunciando que as galeras de Pisa ainda não estavam armadas. E correu que muitos cruzados, que haviam empreendido a expedição sem recursos e sem se formar idéia das dificuldades vindouras, voltavam a seus países.
Para evitar a Pio II o deprimente espetáculo daqueles fugitivos, fechavam-se as cortinas de sua liteira todas as vezes que passava alguma tropa deles.
Em Loreto, ofereceu o Papa a Nossa Senhora um cálice de ouro, pedindo-lhe a graça da saúde para proveito da Cristandade. Entrou finalmente em Ancona, o porto de embarque.
Pio II instalou-se no palácio episcopal, junto à Catedral de São Ciríaco, que havia sido edificada no lugar de um antigo templo de Vênus. Da altura em que se levanta aquela antiga basílica se pode contemplar a velha cidade, o amplo mar e pitorescas margens, e "parece como se ali soprassem já as auras da Grécia e como se o sol irradiasse com o brilho dos países orientais". Nesse cenário se deu o desenlace final da tragédia gloriosa do Pontífice, pois, se seu pontificado foi todo um encadeamento de desenganos, estes se multiplicaram especialmente nos últimos dias de sua vida.
No fundo, Pio II estava completamente só.
Todos tentaram dissuadir o Pontífice. Os cardeais e os médicos diziam que ele morreria dois dias após o embarque. Os mentores de sua corte e os diplomatas lhe lembravam que Luís XI poderia convocar um concílio contra ele — uma ameaça, aliás, reiterada várias vezes. Ele declarou que sua resolução era irrevogável.
Por outro lado, a própria estrutura de alianças que formava o arcabouço da cruzada estava em evanescença. Permaneceram verbalmente ligados à expedição apenas Veneza e Milão, mas sua contribuição efetiva ia sendo postergada. Os cardeais, cada um dos quais devia armar uma galera, também fugiam a seus compromissos; e percebendo que o Papa poderia estar mortalmente enfermo, já se estavam ocupando das negociações relativas ao futuro conclave. Os armamentos feitos para a cruzada tinham saído tão defeituosos, que de antemão era impossível pensar em tomar a ofensiva.
Em Lepanto, um século depois, ao início da batalha o vento favorecia os muçulmanos, mas logo ele se inverteu, o que foi considerado excelente presságio para os cristãos. Na cruzada de Pio II, entretanto, todos os ventos sopravam contra, bem como todas as circunstâncias e até os imponderáveis.
Em Ancona não havia alojamento suficiente e faltava água. Por causa das elevadas temperaturas, em breve declarou-se uma enfermidade pestilencial, que não só arrebatou muitos dos cruzados que andavam lutando uns contra os outros, mas também penetrou na casa dos cardeais, fazendo muitas vítimas entre os de suas comitivas.
Só ao cabo de três semanas inteiras chegaram os navios de Veneza, mas já encontraram apenas um pequeno resíduo de tropas de cruzados. A maioria deles já havia abandonado a cidade. Isto, segundo o Cardeal Ammanati, representou o golpe mortal para o Pontífice.
O Papa mandou que suas próprias galeras, com 5 cardeais, saíssem ao encontro das naus venezianas, e com muita fadiga se fez levar a uma janela de seu palácio. À vista das naves que se acercavam, apoderou-se dele uma profunda tristeza, e exclamou soluçando: "Até este dia faltou-me uma esquadra para embarcar, e agora haverei de ser eu quem falte à esquadra".
Poucos dias depois recebeu o Santo Viático. Em 14 de agosto reuniu em torno de si os cardeais, e com suas últimas forças os exortou a prosseguir na santa empresa à qual havia consagrado sua vida. À noite, depois de ter recebido a extrema-unção e de ter recomendado novamente a continuação da cruzada, expirou suave e tranqüilamente.
(Fonte: Ludwig von Pastor, "Historia de los Papas" - Ed. G. Gili, Buenos Aires, 1949.
Rohrbacher, "Histoire de l’Église Catholique" - Societé Generale de Librairie Catholique, Bruxelles, 1885.
"Enciclopédia Universal Ilustrada" - Espasa Calpe, Madrid.)
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