O tratado
"De Cura pro Mortuis Gerenda" (O Cuidado Devido aos Mortos) foi
escrito por Santo Agostinho em 421, como resposta a uma consulta feita pelo
bispo Paulino de Nola, a respeito da vantagem de se sepultar um cristão junto
ao túmulo de um santo.
Embora
a pergunta fosse, de certa forma, simples, Santo Agostinho aborda uma série de
fatos importantes e interessantes a respeito dos mortos, que até hoje são
conservados e respeitados pela Igreja. Entre outras coisas, fala da utilidade
da oração pelos mortos (antiquíssimo testemunho do Purgatório, ainda que tal
palavra não apareça), a possibilidade da aparição dos mortos aos vivos (através
do ministério dos anjos ou por permissão direta de Deus), a oração dos santos
falecidos a nosso favor, o dia que a Igreja dedica a todos os falecidos (Dia de
Finados), etc.
PARTE III
CAPÍTULO X
Também nos são
relatadas várias aparições, que não podemos negligenciar de abordar na presente
dissertação.
Fala-se que certos
falecidos manifestaram-se a pessoas vivas durante o sono ou através de outro
modo. E à essas pessoas, que ignoravam o lugar onde jazia os cadáveres
insepultos, os mortos indicavam os lugares e pediam para que lhes
providenciasse a sepultura da qual foram privados.
Dizer que tais
visões são falsas parece-nos afrontar e contradizer testemunhos escritos de
alguns autores cristãos, bem como a íntima convicção que têm as pessoas que
testemunharam tais fatos. Eis, portanto, a resposta mais sensata: não é
necessário pensar que os falecidos agem na realidade, quando parecem dizer,
indicar ou pedir em sonho aquilo que nos é relatado, pois muitas vezes as
pessoas vivas também aparecem em sonhos, sem disso terem consciência. E será
dessas mesmas pessoas a quem apareceram nos sonhos que saberemos terem dito ou
feito tal ou tal coisa durante a visão... Portanto, alguém pode me ver, durante
o sonho, anunciando certo acontecimento passado ou predizendo um fato futuro,
sendo que eu mesmo ignore totalmente a coisa, sem poder questionar o próprio
sonho que o outro teve, ou se ele estava acordado enquanto eu dormia, ou se ele
dormia enquanto eu estava acordado, ou se nós dois estávamos dormindo ou
acordados ao mesmo tempo ao ter ele o sonho em que me via.
Logo, o que há de
estranho nos vivos verem os mortos em sonhos, que nada sabem ou sentem, dizendo
certas coisas que, ao acordarem, percebem que são verdadeiras? Eu estou mais
inclinado a crer na mediação dos anjos, que receberiam do alto a permissão ou a
ordem de se manifestarem em sonhos para indicar os corpos a serem enterrados,
sendo que aqueles que viveram nesses corpos tudo ignoram a esse respeito.
Essas aparições
podem ter sua utilidade, seja para o consolo dos vivos - que vêem a imagem dos
seus falecidos queridos - seja para recordar aos homens o dever de humanidade
que é o sepultamento dos falecidos. Isso não traz auxílio para os mortos, mas a
sua negligência poderia ser classificada de impiedade culposa.
Algumas vezes
ocorrem visões que levam a cometer erros grosseiros aqueles que as tiveram.
Imaginemos alguém que teve o mesmo sonho que Enéas33... O poeta
afirma ter visto no Inferno, em visão poética e falaciosa, a imagem de um morto
que não fora sepultado e põe a mensagem na boca de Palinuro; e quando Enéas
acorda, procura e encontra o corpo do defunto no exato lugar em que jazia, como
soubera pelo aviso que teve no sonho, e o sepulta conforme o pedido que
recebera no mesmo sonho. Como a realidade era igual à que teve no sonho, passou
a crer que é necessário sempre enterrar os mortos para que seja permitido às
almas atingirem a sua última morada. Sonhou, assim, que as leis do Inferno nos
impedem de entrar na morada eterna enquanto os nossos corpos não recebem uma
sepultura. Ora, se algum homem adotar tal crença, não estará ele se afastando
demais do caminho da Verdade?
CAPÍTULO XI
O homem é tão
fraco que crê que viu a alma de alguém caso este morto lhe apareça em sonho.
Mas se sonha com uma pessoa viva, fica-se demonstrado que não viu nem o corpo
nem a alma dela, mas somente a sua imagem, como se os mortos não pudessem
aparecer do mesmo modo que os vivos, sob a forma de imagens semelhantes.
Eis a narração de
um fato que ouvi em Milão: certo credor reclamava o pagamento de um dívida e
exibia a cautela assinada por um senhor recém-falecido ao seu filho, que
ignorava que o pai havia efetuado o pagamento do empréstimo [antes de falecer].
O jovem, muito aborrecido, estranhava o fato de seu pai não ter-lhe falado nada
sobre a existência dessa dívida, embora o testamento tenha sido feito. Em sua
extrema angústia, eis que vê o seu pai aparecer-lhe em sonho indicando o lugar
onde se encontrava o recibo que anulava a cautela; ao encontrar o recibo,
mostrou-o ao credor e anulou a reclamação mentirosa, recuperando o documento
assinado que não fora devolvido a seu pai quando do pagamento da dívida.
Eis aí um fato em
que se supõe que a alma do defunto tenha se preocupado com o seu filho, vindo a
seu encontro enquanto dormia, para avisar-lhe o que este ignorava, livrando-o
de uma séria preocupação.
Praticamente na
mesma época em que me contaram esse fato, enquanto eu ainda residia em Milão,
aconteceu a Eulógio, ótimo professor de Cartago e meu discípulo nessa arte,
como ele mesmo me recordou, o seguinte acontecimento (que ele próprio me narrou
quando retornei à África): ele estava fazendo um curso sobre as obras de Cícero
e preparava uma lição sobre certa passagem obscura que não conseguia
compreender. Tal preocupação não o deixava dormir, mas eis que, de repente, eu
lhe apareço durante o sono e explico-lhe as frases que lhe eram
incompreensíveis. Ora, certamente não era eu, mas a minha imagem - sem eu o
saber! Eu estava bem longe, do outro lado do mar, ocupado com um outro trabalho
ou talvez dormindo, sem sentir qualquer tipo de preocupação com as dificuldades
dele...
Como, então, se
produziram tais fenômenos? Não sei. Mas seja como for, por que razão devemos
acreditar que os mortos nos aparecem em sonhos, na mesma forma de imagem, como
acontece com os vivos? Uns e outros ignoram completamente serem objeto de
aparições e também não se preocupam em saber para quem, onde e quando
aconteceram.
CAPÍTULO XII
Algumas visões, ocorridas
durante o estado de vigília, são semelhantes aos sonhos. Acontecem a pessoas
que estão com os sentimentos conturbados, como os frenéticos e os loucos de
todo gênero. Conversam consigo mesmos, como se falassem com outras pessoas
presentes ou ausentes, vivas ou falecidas, cujas imagens aparecem-lhes à frente
dos olhos. Mas os vivos não sabem que essas pessoas imaginam estar conversando
com eles, já que de fato não se encontram lá, nem falam nada. Essas visões
imaginárias surgem da perturbação dos sentidos. Do mesmo modo, aqueles que já
deixaram esta vida aparecem a pessoas que têm o cérebro perturbado, como se
estivessem presentes, sendo que, de fato, não estão lá, mas bem longe, e nem
supõem que alguém tenha percebido as suas imagens em uma visão imaginária.
Abordemos um outro
fato semelhante: existem pessoas que ficam sem o domínio dos sentidos ainda
mais do que ao dormir. Absorvidas que ficam em suas visões imaginárias, julgam
ver vivos e mortos. Ao retornar ao uso da razão, declaram os nomes dos falecidos
que viram, e as pessoas que os escutam acreditam que realmente tal fato se
verificou. Os ouvintes, contudo, não percebem que nessas mesmas visões
apareceram pessoas vivas que não estiveram lá de verdade e que sequer souberam
do ocorrido.
Isso aconteceu com
um homem chamado Curma, habitante de Tullium, município próximo a Hipona, que
era membro do Conselho Municipal, pequeno magistrado da aldeia e simples
camponês. Caindo doente, entrou em profundo estado de letargia e ficou como que
morto durante vários dias; como exalava pouquíssimo ar pelas narinas, indicando
um grau mínimo de vida, não foi sepultado; mas não mexia nenhum membro e seus
olhos e outros sentidos permaneciam insensíveis a qualquer tipo de estímulo.
Mesmo assim, tinha visões como aqueles que dormem e as contou alguns dias
depois, quando se libertou do sono. Assim disse quando abriu os olhos:
"Vão imediatamente à casa do Curma ferreiro e vejam o que está acontecendo
por lá". Ao chegarem lá, ficaram sabendo que esse Curma havia falecido no exato
momento em que o primeiro saía do estado letárgico e retornava à vida com
sentidos. Interessados pelo ocorrido, os assistentes interrogaram-no e ele lhes
disse que o Curma ferreiro havia recebido ordem de comparecer perante Deus no
mesmo momento em que ele havia sido reenviado para este mundo. Lá, no outro
mundo que voltara, ficara sabendo que não era o Curma da Cúria Municipal que
deveria se apresentar à mansão dos mortos, mas o Curma ferreiro. Nas visões que
teve durante os sonhos, o Curma da Cúria Municipal reconheceu entre os mortos
alguns vivos que conhecera aqui, sendo tratados de acordo com os méritos que
cada um teve durante a vida.
Eu talvez
acreditaria nessa história se todas as pessoas que viu fossem realmente
falecidas, isto é, se o doente não tivesse visto em seus sonhos outras pessoas
que ainda vivem, como, por exemplo, clérigos da sua região e, entre outros, um
padre que lhe disse para se batizar em Hipona, a quem ele respondeu: "Eu
já fui batizado". Portanto, em sua visão, ele percebera também padres,
clérigos e eu mesmo, ou seja, seres vivos. E entre estes, vira outros mortos.
Portanto, por que
não havemos de crer que ele viu esses mortos da mesma forma como viu a nós,
isto é, viu uns e outros sem que ninguém soubesse disso e estando todos eles
distantes? Pois tivera para si uma rerpresentação imaginária de pessoas e
lugares; ele viu a propriedade onde aquele padre morava com seus clérigos, viu
Hipona onde eu o tinha batizado - como alegara. Mas, de fato, ele não estivera
nesses lugares onde tinha a ilusão de ter estado; ele ignorava o que aí se
fazia no momento da visão. Se ele realmente tivesse estado ali, certamente
saberia o que ali se fazia. Portanto, foi uma espécie de visão em que os
objetos não se apresentam como são na realidade, mas sob a sombra de suas
imagens.
Finalmente, esse
homem ainda contou que, na última das suas visões, ele fora levado ao Paraíso e
lá lhe disseram, antes de o devolverem aos seus: "Ide e faze-te batizar se
quiserdes um dia estar nesta morada de bem-aventurados". Avisado de
receber o batismo de minhas mãos, ele respondeu que já o recebera, mas a voz
que lhe falava insistiu: "Ide e faze-te batizar realmente porque o teu
batismo é imaginário". Assim, após sua cura, ele veio a Hipona próximo do
tempo da Páscoa; e fez-se inscrever na lista dos aspirantes [ao batismo], sendo
desconhecido de mim e de muitos outros. Não confiou suas visões a mim ou a
outros padres... Recebeu o batismo e, terminados os dias santos, retornou para
a sua casa. Fiquei sabendo da história dois anos depois - ou até mais - por um
amigo comum que foi fazer uma refeição em minha casa, quando falávamos sobre
esse tipo de assunto. Mais tarde, consegui, depois de muita insistência, que me
contasse a história, na presença de seus concidadãos, gente honrada, que se
apresentaram como testemunhas da realidade dos fatos: a sua estranha doença,
seus longos dias de morte aparente, o caso do outro Curma, ferreiro - conforme
narrado acima -, enfim, todos os pormenores que se lembrava. E todos
testemunharam já terem ouvido essa narração de sua boca, à medida que ele a
divulgava.
Conclui-se, assim,
que ele vira seu batismo, a mim, Hipona, a basílica e o batistério não na
realidade, mas na imagem, da mesma forma como vira outras pessoas vivas, sem
que elas tenham percebido isto. Logo, por que não admitir que ele viu os mortos
sem que estes tenham percebido?
_________
33Virgílio, "Eneida" VI,337.
Parte III - Formas de
Aparições dos Mortos aos Vivos - capítulos X à XII
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