O tratado
"De Cura pro Mortuis Gerenda" (O Cuidado Devido aos Mortos) foi
escrito por Santo Agostinho em 421, como resposta a uma consulta feita pelo
bispo Paulino de Nola, a respeito da vantagem de se sepultar um cristão junto
ao túmulo de um santo.
Embora
a pergunta fosse, de certa forma, simples, Santo Agostinho aborda uma série de
fatos importantes e interessantes a respeito dos mortos, que até hoje são
conservados e respeitados pela Igreja. Entre outras coisas, fala da utilidade
da oração pelos mortos (antiquíssimo testemunho do Purgatório, ainda que tal
palavra não apareça), a possibilidade da aparição dos mortos aos vivos (através
do ministério dos anjos ou por permissão direta de Deus), a oração dos santos
falecidos a nosso favor, o dia que a Igreja dedica a todos os falecidos (Dia de
Finados), etc.
PARTE II
CAPÍTULO VII
Existe no coração humano um sentimento
natural que não permite ninguém detestar sua própria carne21. Assim,
se alguém vem a saber que, após sua morte, seu corpo não receberá as honras de
sepultura, conforme o costume da cada raça e nação, sente-se perturbado como
homem. Teme que seu corpo, antes da morte, não atinja o destino pretendido após
a morte.
É isto que lemos no livro dos Reis22,
quando Deus envia um profeta a outro profeta (um homem de Deus) que havia
transgredido a Sua Palavra, para anunciar-lhe que seu corpo, como castigo, não
seria levado à sepultura de seus pais. Eis o que diz as Escrituras: "Aquele
profeta disse ao homem de Deus que tinha vindo de Judá: 'Eis o que diz o
Senhor: porque não obedeceste à Palvra do Senhor e não guardaste o mandamento
que o Senhor, teu Deus, havia te imposto, voltando e comendo pão e tomando
água, o teu cadáver não será levado ao sepulcro de teus pais'".
Medindo a importância desta punição em
relação ao Evangelho - onde está escrito que, estando morto o corpo, os membros
nada devem temer - não podemos dizer que isso tenha sido uma punição, exceto se
considerarmos o amor que todo homem tem por sua própria carne: o profeta, em
vida, com certeza sentiu temor e tristeza com a idéia de um tratamento que não
poderia sentir após a morte. E era justamente essa a sua punição; esse
sentimento de dor diante da idéia do que sofreria o seu corpo, ainda que, de
fato, não viesse a sofrer em absoluto no momento em que a ameaça se
concretizasse.
Ora, o Senhor quis apenas punir a
desobediência do seu servo, não por má vontade, mas por ter sido enganado pela
mentira de um outro profeta. Não se pode pensar que a mordida da fera selvagem
o tenha matado para que a sua alma fosse lançada no Inferno, pois o mesmo leão
que o agredira montou guarda de seu corpo, sem fazer mal algum ao jumento que
assistia destemidamente ao funeral do seu dono, ao lado da terrível fera. Esse
fato notável é sinal de ter sofrido o profeta tal morte como castigo temporal e
não como punição eterna.
O Apóstolo lembra que muitos são
punidos com doença ou morte por causa de seus pecados, fazendo esta observação: "Se
nos examinássemos a nós mesmos, não seríamos julgados; mas com seus
julgamentos, o Senhor nos corrige, para que não sejamos condenados com o
mundo"23.
O velho profeta, que enganara o homem
de Deus, sepultou-o com muita honra e tomou os procedimentos necessários para
que, mais tarde, ele mesmo fosse sepultado junto a aquele. Esperava que aqueles
ossos encontrariam graça quando chegasse o tempo em que, conforme a profecia do
homem de Deus, Josias, rei de Judá, exumaria os ossos de muitos mortos para
profanar com eles os altares sacrílegos erguidos aos ídolos. Contudo, passados
mais de 300 anos, Josias poupou o sepulcro onde havia sido enterrado o homem de
Deus que predissera esse fato. E, assim, graças a esse homem de Deus, a
sepultura do profeta que o enganara não foi violada.
O efeito que leva alguém a odiar a
própria carne24, o havia feito prever o destino do seu corpo, mesmo
tendo matado sua alma por uma mentira. Cada um ama sua própria carne por
instinto. Assim, um profeta sofreu à idéia de que não iria repousar no sepulcro
de seus pais e o outro tomou o cuidado de prover à segurança de seus ossos,
fazendo-se enterrar em sepulcro que ninguém haveria de violar.
CAPÍTULO VIII
Porém, os mártires venceram esse apêgo
ao próprio corpo, em sua luta pela verdade. Não é de surpreender que tenham
desprezado as honras reservadas aos seus despojos. Só estariam insensíveis a
elas após a morte, pois enquanto viviam e tinham sensibilidade, não se deixaram
vencer pelo suplício.
O Senhor não permitiu ao leão tocar no
cadáver daquele homem de Deus, morto por essa mesma fera assassina que logo
depois se tornou seu guardião25. Do mesmo modo, Deus poderia, se
quisesse, ter afastado os cadáveres de seus fiéis dos cães aos quais foram
jogados. Ele poderia, de mil maneiras, dominar a crueldade dos carrascos,
impedindo-os de queimar aqueles corpos e dispersar suas cinzas. Porém, foi
necessário que essa provação se acrescentasse ainda à múltipla diversidade das
tribulações, a fim de que a firmeza da ferocidade da perseguição, armada contra
o corpo deles, não temesse diante da privação das honras fúnebres do
sepultamento.
Em outras palavras: era necessário que
a fé na ressurreição não fosse abalada pela destruição do corpo. Logo, todas essas
provações foram permitidas para que os mártires, após demonstrarem tão grande
coragem nos sofrimentos, se tornassem ainda mais fervorosos para confessar a
Cristo, tornando-se testemunhas também desta verdade: os que matam o corpo,
nada mais podem fazer26. Qualquer que seja o tratamento imposto aos
corpos sem vida, em nenhum efeito resultará pois sendo o corpo desprovido de
vida, que se separou dele, nada mais pode sentir. E aquele que o criou nada
pode perder.
Mas enquanto tratavam com tanta
crueldade os corpos das vítimas - e os mártires suportavam com grande coragem
tais tormentos - entre os irmãos erguia-se grande lamentação. Estavam aflitos
por não terem a liberdade para prestar os deveres fúnebres aos santos, como é
de justiça. A vigilância dos guarda proibia-os de subtrair às escondidas algum
resto mortal desses mártires, como nos atesta a mesma História27.
Após sua morte, os mártires não
padeciam mais nenhum sofrimento, nem mesmo do esfacelamento dos seus membros,
nem das chamas que transformaram em cinzas os seus ossos, e nem da dispersão
destas cinzas. Mas os cristãos eram atormentados por grande dor e piedade por
não poderem sepultar a mínima porção de suas relíquias. Eles sentiam em sua
misericordiosa compaixão todos os sofrimentos que aqueles mortos não mais
podiam experimentar.
CAPÍTULO IX
Foi graças a esse sentimento de
misericordiosa compaixão, que acabo de citar, que o rei Davi louvou e bendisse
aqueles que caridosamente forneceram uma sepultura aos ossos secos de Saul e
Jônatas28.
Mas que tipo de caridade se pode
testemunhar para com aqueles que nada mais sentem? Seria, por acaso, retornar
àquela concepção de que os falecidos privados da sepultura não podem cruzar o
rio do Hades29? Rejeitamos essa idéia contrária à fé cristã! De
outra maneira, teríamos que considerar que o pior castigo imposto aos mártires
fora justamente o fato de terem sido privados da sepultura e, nesse caso, a
Verdade os teria enganado ao dizer: "Não temais aqueles que matam o corpo
e depois disso nada mais podem fazer"30, pois seus
perseguidores teriam conseguido impedir-lhes de chegar à morada tão desejada.
Isso tudo é de uma falsidade evidente:
os fiéis nada sofrem por estarem privados da sepultura da mesma forma como os
infiéis nada aproveitam por a receberem.
Perguntemo-nos, então, por que aqueles
que enterraram Saul e seu filho Jônatas foram louvados, por executarem uma obra
de misericórdia, e abençoados pelo piedoso rei Davi31...
Ocorre que os corações piedosos
obedecem a uma boa inspiração quando, levados pelo sentimento de que
"ninguém odeia a própria carne"32, sofrem ao verem os
cadáveres dos outros receberem maus cuidados, pois não gostariam que seu
próprio corpo sem vida recebessem tal tratamento. E o que desejam que lhes
proporcionem quando não mais existirem, cuidam de proporcionar aos que já não
existem, enquanto eles mesmos ainda gozam dos sentidos.
___________
21cf. Ef 5,29.
22cf. 1Rs 13,21-22.
23cf. 1Cor 11,31-32.
24v. nota 21.
25cf. 1Rs 13,24.
26cf. Lc 12,4.
27Eusébio de Cesaréia, "História Eclesiástica" V,1,61.
28cf. 2Sm 2,4-6.
29Virgílio, "Eneida" VI.
30v. nota 26.
31v. nota 28.
32v. nota 21.
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