Inquisidor, defensor da fé no reino de
Aragão, foi morto a mando de judeus pretensamente convertidos ao cristianismo,
quando rezava na catedral de Saragoça
Plinio Maria
Solimeo
A maior glória da Espanha era sua
catolicidade destemida, ufana, realista. O espírito racionalista do século XIX
detestava particularmente esse admirável espírito espanhol. Daí organizar uma
campanha de difamação contra esse país e contra suas mais legítimas
instituições, cobrindo-os com uma legenda negra, que nosso tempo herdou sem
espírito de crítica. O objeto de maior difamação dessa “legenda” foi o Santo Tribunal da Inquisição
contra a Perfídia dos Hereges.
É bem verdade
que historiadores conscienciosos têm recentemente mostrado a parcialidade e
exagero dos críticos desse Santo
Tribunal, sobretudo as cifras exageradas que apresentam. Um historiador,
insuspeito por ser protestante, afirma que “um
auto-de-fé não se passava nem a queimar nem a pôr à morte [suas vítimas], mas em
parte a pronunciar a quitação das pessoas falsamente acusadas, em parte a
reconciliar com a Igreja os arrependidos. E houve muitos autos-de-fé nos quais
não se viu queimar senão o círio que os penitentes tinham na mão, em sinal de
sua fé”.(1) “O
mesmo Llorente, o historiador que, sob pretexto de falar sobre a Inquisição, a
desfigurou com tanta obstinação, cita para o ano de 1486 quatro autos-de-fé em
Toledo, onde não havia menos que um total de três mil, trezentos e cinqüenta
culpados punidos. Sobre esse número, quantos foram postos à morte? Nenhum!
Llorente o reconhece. As punições consistiam geralmente em uma penitência, uma
recitação de salmos”.(2)
O Santo Ofício
tinha por lema Misericórdia e
Justiça, desconhecido então pelos tribunais civis do tempo.
A Santa
Inquisição, para os males da Espanha
Após a
reunificação da Espanha sob seus cetros, os Reis Católicos, Isabel e Fernando,
tiveram que enfrentar dois perigos: os mouriscos, que conspiravam procurando
recuperar sua antiga supremacia; e os judeus conversos, ou cristãos novos, que muitas vezes,
aparentando verdadeira conversão, procuravam, através da riqueza e do poder
político cada vez mais em suas mãos, também a supremacia, com perigo para a
verdadeira fé.
“O que fazer
em tal conflito religioso, com tais inimigos domésticos?” –– indaga o renomado escritor espanhol
Menéndez y Pelayo. E responde: “O
instinto da própria conservação se sobrepôs a tudo; e, para salvar a qualquer
preço a unidade religiosa e social, para dissipar aquela dolorosa incerteza em
que não se podia distinguir o fiel do infiel, nem ao traidor do amigo, surgiu
em todos os espíritos o pensamento da Inquisição”. Sobre seu resultado, afirma: “Nunca se escreveu mais nem melhor
na Espanha que nesses dois séculos de ouro da Inquisição. No século XVI,
inquisitorial por excelência, a Espanha dominou a Europa, ainda mais pelo
pensamento que pela ação, e não houve ciência nem disciplina em que não se
marcasse a sua garra”.(3) E
o historiador Pe. Mariana acrescenta: “Nenhum
tribunal há em todo o mundo para maior espanto dos maus, nem de maior proveito
para toda a Cristandade. É um remédio dado pelo Céu, que sem dúvida não
bastaria prudência humana para preveni-lo”.(4)
O antigo
confessor da rainha Isabel na infância, o frade dominicano Tomás de Torquemada,
conhecido por sua virtude e saber, foi designado como Inquisidor Geral e
encarregado de levar avante a antiga instituição. Escolheu para auxiliá-lo como
Primeiro Inquisidor o cônego do capítulo da Sé de Saragoça, Pedro de Arbués,
conjuntamente com Frei Gastar Inglário, dominicano.
“Mastrepila”
— o santo Mestre de Epila
Pedro de Arbués
era oriundo de nobilíssima família, nascido em Epila, no reino de Aragão, no
ano de 1441. Tinha cinco irmãs, quatro das quais se casaram com os mais
ilustres gentis-homens de Aragão.
Depois de
terminar seus estudos em Huesca, foi para a então famosa universidade de
Bolonha, uma das mais brilhantes na época. “Companheiro
amável, coração generoso e caritativo, talento humilde quanto esplêndido,
centrava sobre si a admiração de seus mestres e o aplauso de seus
condiscípulos, diante dos quais passava como o melhor representante do mundo
estudantil”.(5) Com o grau de doutor, voltou então para a pátria.
Sendo seu
talento e virtude logo reconhecidos, foi eleito membro do capítulo da Sé de
Saragoça, como cônego regular, seguindo a regra de Santo Agostinho.
Não é de admirar
que ele fosse escolhido para o difícil cargo de Primeiro Inquisidor, pois por
seu caráter firme, douto e austero, já se havia tornado conhecido na cidade,
onde o povo começara a chamá-lo de “el
santo Maestro de Epila”, ou simplesmente “Mastrepila”. Esse instinto salutar do povo não
deixava de ser atraído pela sua virtude. Diz um seu antigo biógrafo que ele,
desde sua infância, havia dourado o ferro do pecado original com o ouro celeste
das virtudes.(6)
Pedro de Arbués
entregou-se por inteiro à sua nova função: “Ardente
em procurar conversões, ele não era menos prudente em aceitar senão as sinceras
e provadas, tanto para evitar a profanação dos sacramentos quanto para diminuir
o perigo de defecções que expusessem em seguida o culpado a todo o rigor da
lei. [...] Era encontrado por toda parte onde se achasse uma alma tocada pela
graça de Deus, por toda parte onde um coração vacilante e de perseverança
duvidosa lhe era apontado: na cabana do pobre e no balcão do rico, na cabeceira
dos doentes, nas prisões onde estavam encerrados os relapsos e apóstatas, e até
ao pé dos cadafalsos onde alguns iam expiar tristemente sua inconstância”.(7)
Entretanto, o
novo tribunal encontrou oposição entre os aragoneses, que queriam preservar
vários privilégios regionais. Uma revolta, fomentada e alimentada por muitos
conversos judeus, foi num crescendo.
Mas a atitude
franca e destemida do novo Inquisidor enfrentou toda oposição, pela palavra e
sobretudo pelo exemplo. Sendo cônego, baniu de sua casa todo luxo, e
entregava-se a severas privações. Mostrava-se um pai para os pobres e procurava
toda ocasião para exercer as obras de misericórdia, tanto espirituais quanto
temporais. Ele foi mesmo dotado do dom de profecia, tendo predito a queda de
Granada quando parecia temerário fazê-lo.
Matar um
inquisidor, para não surgir outros
No ano de 1484,
tendo falecido o outro inquisidor, Frei Inglário, e não tendo ainda sido
substituído, todo o ônus do ofício caiu sobre o Cônego Pedro de Arbués.
Muitos dos
judeus pseudo-convertidos, temendo que o Tribunal da Inquisição pesquisasse
suas duvidosas vidas de piedade e sua sinceridade na prática da religião, se
reuniram contra aquele que era seu inimigo comum. O que fazer contra ele? O
veredicto foi dado por Garcia de Moros: “Matemos
um inquisidor, e com o medo não virão outros”. A sorte de Pedro de Arbués
estava selada.
Vários atentados
foram praticados contra ele, sendo que uma vez mal se livrou do punhal
assassino, e outra teve as grades da habitação limadas, o que foi descoberto a
tempo. Alertaram-no para que andasse protegido. Ele resolveu confiar só em
Deus, dizendo que, de mau padre que era, queria fazer um bom mártir.
“Morro por
Jesus Cristo. Louvado seja seu Nome”
Na madrugada de
14 para 15 de setembro, o Cônego Arbués dirigiu-se para a catedral, como fazia
diariamente, para rezar com os cônegos o Ofício Divino. Chegando próximo ao
altar, ajoelhou-se para rezar as orações preparatórias. Saindo os sicários dos
judeus das trevas onde se tinham escondido, um deles deu-lhe uma punhalada na
garganta. O mártir tentou ainda escapar indo para o coro, onde estavam os
outros religiosos. Mas um segundo assassino o varou com sua espada. Caindo ao
solo, Pedro de Arbués exclamou: “Morro
por Jesus Cristo. Louvado seja seu Nome”. Levado para casa, aí morreu dois
dias depois, tendo perdoado seus assassinos que, encontrados depois, foram
decapitados.
A consternação e
a revolta popular pelo sacrílego atentado atingiu o auge. O povo saiu pelas
ruas, clamando por punição para os conversos e pedindo a expulsão de todos os
judeus da Espanha. Para evitar um massacre dos judeus, foi preciso que o
vice-rei Fernando de Aragão, meio-irmão do rei, saísse às ruas prometendo
severo castigo do crime.
O mártir Pedro
de Arbués teve um apoteótico enterro. Quando seu corpo chegou à catedral onde
seria sepultado, e foi depositado no solo, viu-se um milagre: seu sangue, que
por respeito não haviam limpado do piso, e que se encontrava seco e escuro,
readquiriu vida ao contato com o caixão, tomou brilhante cor e aumentou em tal
abundância, que a multidão pôde molhar nele lenços e outros objetos, que
guardaram como relíquias. O prodígio se repetiu 15 dias depois, como é relatado
na Acta Sanctorum.
“Santo
Mastrepila, ressuscita meu filho”
Entre os
milagres aprovados para a beatificação do mártir, estão as ressurreições de
dois meninos, um dos quais era dos arredores de Saragoça. Quando o corpo ia
descer ao túmulo, a mãe, tomada por súbita inspiração, pegou-o nos braços,
clamando em altas vozes: “SantoMastrepila, eu te ofereço este
fruto de minhas entranhas. Ele é teu. Ressuscita-o, por favor, meu Santo”. No mesmo instante as cores
voltaram ao menino, que se levantou. A mãe levou como ex-voto ao túmulo de São
Pedro de Arbués o sudário em que o menino estava sendo sepultado.
____________
Notas:
1. Héfélé, Ximenes, p. 322, apud Les
Petits Bollandistes, Vies des
Saints, Bloud et Barral, Paris, 1882, t. XI, p. 190, nota.
2. Les Petits Bollandistes, id.,
ib.
3. In Edelvives, El Santo de Cada Dia,
Editorial Luis Vives, S.A., Saragoça, 1955, tomo V, p. 172.
4. In Fr. Justo Perez de Urbel,
O.S.B., Año Cristiano,
Ediciones Fax, Madrid, 1945, tomo III, p. 619.
5. Edelvives, op. cit., p. 173.
6. In Frei Perez de Urbel, op.
cit., p. 619.
7. Les Petits Bollandistes, op.
cit., p. 190.
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