A primeira intenção do presente estudo
era apenas a de oferecer uma tradução deste documento, que tem uma enorme
importância e que no entanto ainda hoje é praticamente desconhecido dos fiéis e
até mesmo de muitos padres. Quantos entre estes já o leram e estudaram?...
Alguns não sabem nem onde o encontrar. Ora, sem mesmo lançar mão de grande
bulário, basta abrir o Missal de uso litúrgico e nas primeiras páginas o
encontrarão impresso, de modo aliás não muito agradável o que facilmente pode
desencorajar o leitor: nem um só parágrafo num texto que ocupa três ou quatro
colunas grandes!
É preciso também reconhecer que a
leitura desta Bula no original é bem difícil. Alguns termos são de custosa
tradução por causa do uso jurídico que lhes dá um sentido rigorosamente
preciso, por vezes fora do uso corrente.
As frases também são de uma
complexidade raramente encontrada, devido às extensas enumerações com
minuciosos pormenores e trechos intercalados de difícil sequência com orações
subordinadas, umas dentro de outras.
Além disso, e quanto à matéria, as
decisões editadas pelo documento são de várias espécies e um leitor menos
atento poderia confundi-las não sendo conhecedor da tradição canônica em
matéria legislativa.
Enfim, o sentido profundo da Bula só
pode ser bem apreendido se for situado na circunstância histórica que a
provocou, exigindo esta por sua vez ser esclarecida pela própria história do
Missal Romano desde suas origens até a época do Concílio de Trento.
Por causa destas diversas considerações
achamos melhor dar à nossa tradução da Bula, uma introdução histórica e fazer
no final uma exposição jurídica como esclarecimento de muitas das diretivas da
Bula de São Pio V sobre o Missal Romano restaurado.
Sim, porque trata-se somente de uma restauração e não de uma
reforma que teria modificado a economia do rito tradicional. O
título de nossos missais de uso litúrgico, dizem claramente: Missale
Restitutum, Recognitum, isto é, restituído
à sua forma original, restabelecido e com este fim simplesmente
revisto. Voltaremos a este ponto mas desde já devemos assinalá-lo seja pelo
menos para reparar na enorme
distância entre a obra de São Pio V e a que Paulo VI realizou ajudado
por seus "peritos".
BREVE HISTÓRICO DO MISSAL ROMANO
Faremos um simples resumo, esforçando-nos de
lembrar apenas as linhas certas e essenciais desta longa história. Os que mais
profundamente a estudaram reconhecem modestamente que, em numerosos pontos, têm
de se contentar com conjeturas. Não seriam estes que se aventurariam a reformar
o rito usado até nossos dias sob pretexto de uma volta a um pretenso rito
"primitivo" artificialmente reconstruído!
Para bem compreender a
Missa Romana, tal com se apresentava aos Padres Conciliares de Trento e ao Papa
São Pio V, é necessário descobrir seu devido lugar dentro da
evolução geral da liturgia eucarística.
1 - Os Apóstolos tinham recebido do Senhor, na
véspera de sua Paixão, o poder e o mandamento de celebrar o Sacrifício da Nova
Aliança. Deveriam para isso refazer, em memória dele, ISTO que Ele mesmo tinha
feito naquele dia, oferecer sob as espécies do pão e do vinho transubstanciados no
Seu Corpo e no Seu Sangue em virtude de Suas palavras, a Vítima
propiciatória imolada na Cruz de uma maneira sangrenta.
2 - Os mais antigos documentos, nos mostram quão os Apóstolos e seus
sucessores observaram fielmente esta ordem.
Pela própria natureza das coisas e com a autoridade recebida do próprio
Cristo ou do Espírito de Pentecostes, os Apóstolos deviam completar a simples
repetição dos gestos da Quinta Feira Santa com um conjunto de ritos. Iam eles
tornar solenes sua "comemoração" e fazer dela uma verdadeira
cerimônia religiosa.
Esta cerimônia não tinha por fim somente manter um sentimento interior
de fidelidade à uma lembrança cujo mérito variasse segundo as disposições
subjetivas do celebrante e dos participantes. Ela iria ter os efeitos objetivos de um ATO, efeitos esses
realizados em virtude da própria instituição de Jesus Cristo, que quis
estar presente sob as espécies sacramentais. Uma única condição: que o padre humano se faça instrumento exato
do Sacerdócio único e soberano, conformando-se por sua fé e por sua intenção à
Vontade Daquele que é Senhor de seus dons: "Fazei isto"
3 - Houve assim, na origem, em todas as igrejas locais do Oriente e do
Ocidente, um rito mais ou menos uniforme, que vem atestado por alusões
dos mais antigos Padres da Igreja: Doutrina dos Doze Apóstolos (Didachê),
primeira Epístola de Clemente aos Coríntios, Epístola de Barnabé, cartas de
Santo Inácio, de São Justino, Santo Irineu, etc.
Este rito, ainda um tanto indeterminado nos pormenores, deixando lugar a
certas improvisações, iria, no correr dos três primeiros séculos, se
cristalizar pouco a pouco em alguns ritos-típicos que deveriam se fixar numa
determinada forma em conformidade ao gênio particular de cada povo.
4 - Assim é que, a partir do século
IV, se conhecem quatro tipos gerais de liturgia eucarística’ das quais três
tiveram sua formação ao redor das grandes igrejas patriarcais: Antioquia, Alexandria e Roma.
São estes os "ritos-fontes". Com um quarto, o rito dito
"galicano", estão na origem dos ritos "derivados" que serão
finalmente celebrados em todo o mundo católico.
O rito romano era, na origem, apenas o rito
celebrado somente na cidade de Roma. Foi somente depois do século VIII
que se espalhou por todo o Ocidente com algumas exceções, suplantando os outros
ritos ocidentais dos quais sofrera influências e aos quais emprestara detalhes.
São estes ritos ocidentais, latinos mas não romanos, que foram reunidos
sob a apelação genérica de rito galicano. Título comum que compreende tanto o
rito observado na Gália quanto, com algumas variantes, na Espanha, na Bretanha,
no norte da Itália e em outras regiões.
Os historiadores não estão de acordo sobre as origens desse rito, mas
parece certo que o mesmo constitui um uso diferente do de Roma. Os dois se
desenvolvem paralelamente, sofrendo influências recíprocas, dos séculos VI ao
VIII, até o momento em que o galicano é absorvido pelo romano sob a influência
de grandes missionários: Santo
Agostinho, na Inglaterra (597) e São Bonifácio na Germânia (+754); sob a
influência também de Carlos Magno que, desejando para seu reino uma
uniformidade litúrgica, deu-lhe como base o rito observado em Roma.
Os únicos sobreviventes do rito galicano comum foram o rito dito
"mozarábico", usado em toda a Espanha até o século XI e que subsiste
ainda em Toledo e do rito denominado "ambroziano", ainda hoje
observado em Milão.
5 - Tendo se imposto definitivamente em todo o
Ocidente entre os séculos XI e XII, o rito Romano deveria no entanto sofrer em
diferentes graus depois dessa data, influências locais que iriam produzir
certas variantes as quais se podem a rigor qualificar como ritos mas que, na
verdade, são somente formas variadas muito secundárias oriundas da mesma fonte.
Assim em Lião, Treves, Salisbury, etc.
Essas formas variadas que aqui mencionamos, são mais conhecidas devido à
importância das cidades, mas o estudo dos Missais da Idade Média nos mostra que
quase cada uma das catedrais tinha suas particularidades litúrgicas cuja
prática se estendia mais ou menos pelas regiões vizinhas.
Em que consistiram? Em acréscimos
exuberantes puramente ornamentais ou piedosos: festas locais, procissões,
cerimônias simbólicas, orações e cantos acrescentados, textos
"recheados", Sequências, Prefácios suplementares...
A estas variedades segundo os lugares, se ajuntavam outras próprias das
famílias religiosas: Carmos, Cartuxos, Dominicanos.
Mas frisamo-lo bem: nenhuma delas constituía um rito distinto. Todos
pertenciam indubitavelmente ao tronco comum original do rito Romano tal como
fora fixado no tempo do Papa
São Gregório (590-604), se bem que com alguns acréscimos
"galicanos" posteriores. Os antigos "sacramentais" romanos,
o "Leonino", o "Gelasiano", o "Gregoriano", que
são como ancestrais do nosso Missal e que foram escritos respectivamente entre
o V e o VII séculos,nos dão uma ordenação
da Missa idêntica a que São Pio V devia canonizar na sua Bula.
Segundo o liturgista inglês Fortescue:
"Desde o tempo de São Gregório,
considera-se o texto, a ordem e a disposição da Missa como uma tradição sagrada
à qual ninguém ousa tocar, senão em detalhes sem importância.
6 - Posta em paralelo a Missa Romana com todas
as liturgias orientais, sem exceção, tanto as "cismáticas"
quanto as "uniáticas", constata-se que certas cerimônias são rigorosamente idênticas quanto ao
essencial: intocadas, verdadeiramente sagradasporque pertenciam à instituição de Jesus
Cristo ou dos Apóstolos. Reconhecidas como essencialmente
necessárias para que o padre pudesse realizar "ISTO" que o Senhor realizara na Ceia.
E verdadeiramente indispensáveis para que a Missa fosse e parecesse um sacrifício no sentido próprio e pleno do
termo, isto é, uma oblação atual, pessoal, feita em nome da Igreja por um padre
ordenado, da vítima imolada no Calvário; estando esta vítima realmente presente sobre o altar em
virtude da consagração do pão e do vinho que os converte substancialmente no
Corpo e no Sangue de Jesus Cristo pelas palavras da instituição repetidas,
"em memória" Dele.
São quatro as partes imutáveis da liturgia eucarística mas com
diferentes graus de importância quanto à essência do rito:
1 - O ofertório: é a dedicatória
prévia do pão e do vinho, que assim se tornam "oblatas".
2 - O cânon, também chamado ação. É a
"prex" dos latinos e "anáfora" para os gregos: oração
consecratória que começa em forma de ação de graças para se conformar ao gesto
de Nosso Senhor que "deu Graças" a Seu Pai antes de
"abençoar" o pão e o vinho e de os consagrar.
Nesta oração é que estão inseridas as outras partes do rito
consecratório, a saber:
- O memorial da Ceia que precede as palavras da instituição: "Tomai... isto é meu Corpo".
- Antes ou depois uma invocação mais ou menos explícita ao Espírito
Santo, o epiclésio. Este é difícil de ser situado de modo exato na Missa
Romana.
- Depois das palavras da instituição que consagra as oblatas,
encontra-se uma oração que vem afirmar que o padre e todos os participantes ao
sacrifício agem, cada um em sua posição essencialmente diferente, "em
memória de Jesus Cristo como Ele próprio ordenou". É a anamnese.
3 - Segue a fração: para repetir o
gesto do Senhor que "rompeu" o pão antes de distribuí-lo aos
Apóstolos.
A Fração é acompanhada da commixão, pela qual um fragmento do pão
sagrado é mergulhado no vinho consagrado.
4 - Finalmente a comunhão. A maneira de
dá-la e de recebê-la, os cânticos ou orações que a precedem, a acompanham e a
sucedem variam segundo os ritos locais.
Aos quatro ritos que acabamos de descrever e que estão diretamente
ligados ao ato do Sacrifício, se ajuntavam outros que os enquadravam,
completando ou ornamentando sua significação religiosa e inspiração cristã.
Ritos que todo o mundo reconhecia como secundários mesmo quando a fidelidade,
fortalecida pelo uso, deles faria questão.
Primeiramente: O ósculo da paz. Está quase
sempre presente com atribuições e maneiras variadas de fazê-lo. Em seguida:
leituras, ladainhas, procissões, hinos e a homilia.
Não esqueçamos a divisão do ofício entre
"Missa dos catecúmenos" e "Missa dos Fiéis". E de passagem
observamos que a expressão "Liturgia da Palavra" permanece
totalmente desconhecida desde as origens até aos tempos do Vaticano II. Aliás é
contraditória nos próprios termos: etimologicamente a palavra
"liturgia" designa
uma "ação". Ora, exceção feita aos tagarelas, a
palavra não é um ato.
Certamente quando esta palavra é divina, ela é "espírito de
vida". A este título deve ter lugar eminente dentro do ato da Missa, mas
ela não é este ato. Se o fosse não se poderia despedir (formalmente!) uma parte
da assistência no momento preciso em que termina a execução das leituras! Isto
por quê? Porque não estando ainda admitidos à comunhão eucarística (os não batizados)
ou tendo sido afastados ou excluídos (os penitentes) julga a Igreja que então
não deviam ser admitidos à liturgia propriamente dita: que prepara formalmente
para a comunhão. Provando assim
que as Leituras eram nitidamente distintas de "Liturgia".
É melhor usar de franqueza: o lugar cada
vez mais preponderante dado, nas Missas pós-conciliares, à "palavra",
divina ou humana, é uma concessão feita aos protestantes para os quais a
palavra é tudo.
Aliás, há aí um sinal revelador: a
manipulação dos textos sagrados, não somente em traduções adulteradas mas
também em amputações ou edulcorações do original, julgado pouco ecumênico.
Vejam a Bíblia revista e corrigida pelos padres Bugnini e Roguet.
DIGRESSÕES SOBRE O OFERTÓRIO
Descrita a Missa Romana, em suas partes essenciais, tal com era
celebrada por todo o Ocidente antes do Concílio de Trento (excetuando-se Milão
e Toledo), devemos deter-nos a uma de suas partes : o Ofertório. Veremos melhor
assim num exemplo característico, a distância infinita que separa a
"restituição" do antigo Missal feita por Pio V e a
"reforma" de Paulo VI.
É sabido que os reformadores modernos do rito milenar canonizado
pelos Padres do Concílio de Trento e por Pio V, quiseram (ou fingiram querer)
"simplificar", como dizem, o Ofertório, qualificado por eles, seja de redundante
"duplicação", seja de réplica aberrante da Oblação essencialmente
única: a que é realizada na
Consagração onde é Cristo, e Ele somente, que é oferecido ao Pai, o qual não
poderia aceitar outra (dádiva) senão a do Seu Filho.
Esta reclamação teria uma aparência de verdade se os gestos e as
palavras do nosso ofertório tivessem um valor absoluto subsistente nele mesmo.
Ora, seu significado é inteiramente outro e expressamente ordenado a outra
coisa. Tem uma realidade certa mas a realidade das coisas relativas: "esse
ad".
Em verdade o que se
passa nesse momento?
O pão e o vinho, ainda comuns e
profanos, são trazidos ao altar e depois dados à Santíssima Trindade segundo um
rito especial de oferenda. Este rito os separa do uso comum e profano, os
dedica e os prepara.
Para que?
Para uma outra oblação: a
oblação propriamente sacrificial que será daí a pouco consumada no e pelo ato
de sua própria consagração.
O ofertório, que Lutero iria procurar destruir, não tem de modo algum o
sentido do gesto da gratidão humana ao seu criador pelo pão e pela uva nem o da
restituição das premissas ao Senhor de todas as coisas, conforme judeus e
pagãos sempre tinham feito (é como a Missa de Paulo VI parece querer
"restituir", no seu novo rito ecumênico e teillardiano).
Na liturgia romana da Missa, o pão e o vinho
se tornam pelo ofertório as oblatas, como são comumente designados em inúmeros
textos: isto é um verdadeiro sacrifício, MAS um sacrifício preparatório, um
sacrifício à espera, assim como um vir a ser.
E são estas oblatas, já reservadas, que serão em seguida santificadas,
no sentido pleno do termo, que vão entrar no único sacrifício agradável a Deus: o da Ceia e do Calvário.
Mas estas oblatas só entram aí para se perderem. Se perderem como?
- Não por uma "trans-finalização" ou
"trans-significação" que deixariam toda a sua natureza intacta, como
o imaginam os calvino-católicos da igreja holandesa: haveria então somente uma
mudança simbólica;
- Nem por uma simples transformação em sua própria matéria, tal como
acontece nas mutações físico-químicas que deixam, estas sim, a matéria intacta:
haveria então simples associação justaposta de dois sacrifícios sucessivos, o
do padre, humano, e o de Cristo;
- Nem por uma aniquilação das duas oblatas, que apagaria então a oblação
do padre, substituindo-a pura e simplesmente pela de Cristo; Mas por uma
conversão total de substância em substância.
Então e somente então, o sacrifício do homem, real atual, pessoal, está
verdadeiramente confundido com aquele do Senhor; mas o rito do ofertório os tinha
antecipadamente e momentaneamente distinguido. O homem trouxe sua parte e o
Cristo a assumiu.
Eis aí porque, sob formas bem variadas mas sempre muito expressivas, este
rito é encontrado sem exceção em todas as liturgias. E é neste sentido que
podemos dizer que o mesmo faz parte "integrante" da Missa.
Integrante, no sentido filosófico do termo: parte de um ser que não
constitui sua natureza mas que lhe dá o acabamento conveniente e harmonioso.
Porque, é preciso não esquecer: a
"essência" da Missa não é uma essência física, mesmo se esta é
profundamente real, de uma realidade que transcende infinitamente o plano dos
sinais e dos símbolos. Realidade Sacramental, a do "mistério de fé".
Invenção, sim, invenções de um outro mundo, cujos criadores são o Amor e a
Arte.
Lembremo-nos da palavra do vinhateiro da parábola, que repartia os
salários de modo tão estranho (Mat.XX,15):
"Não me é permitido fazer aquilo que eu quero?"
O que quero: o bel prazer dos músicos e dos amantes. Esferas acima dos
números racionais. Quem se lembraria então de falar de "repetição"?
Dizer que o ofertório é uma "duplicação" (doublet) é visão não
de liturgista, mas de sacristão. É como se dissesse que a mão esquerda é uma
duplicação da direita, porque afinal se pode segurar um castiçal com uma só
mão, ou se iluminar com uma só vela.
DA ANARQUIA LAICA DE LUTERO À RESTAURAÇÃO DO
CONCÍLIO DE TRENTO
Tal era então a Missa romana, a que o Papa Gregório o Grande tinha
celebrado, e Agostinho de Cantorbery, Ambrósio de Metz, Bernold de Constance,
João Beletk, Tomás de Aquino, Durand de Mende, Gerson e uma multidão de
padrezinhos do interior cujos nomes estão inscritos no Livro da Vida.
...E também o monge Martinho Lutero, durante quinze anos, antes que seu
demônio de guarda lhe revelasse que esta Missa era a abominação da desolação
(como ele próprio contou em narração inimaginável que seria interessante
publicar novamente nesses tempos perturbados).
Mil anos de posse pacífica, feliz, a reconciliar, consolar, confortar
iluminar e santificar milhões de almas através das mais variadas circunstâncias
de uma história da Igreja por vezes catastrófica.
Sobre um monte, um ostensório imóvel e intacto.
Então veio Lutero com sua tropa disparatada e equívoca.
É preciso dizer, o que ainda não se fez suficientemente, que a
revolução protestante foi antes de tudo uma revolução laicista e
anti-sacerdotal. Se o monge agostiniano e os seus se lançaram tão
furiosamente contra a economia dos Sacramentos e da Missa, é
principalmente porque sua grande gana era o sacerdócio.
E atacaram o padre porque o tinham sido e
queriam deixar de sê-lo. Toda sua "Teologia" de uma salvação
puramente interior, sem mediação humana, fora forjada simplesmente para
mascarar sua deserção. A teologia protestante da graça e da fé é uma teologia
de "defroqué" que procuram assim justificar sua própria traição.
A lógica desse laicismo, deveria ter conduzido Lutero a suprimir
qualquer culto exterior organizado. Escreve J.Paquier:
"Seria seu passado católico e seu bom senso, que lhe aconselharam
de se contentar com uma redução e transformação do culto católico prudente,
tímida, conservando muita coisa do passado?"
Não seria sobretudo, como o próprio Lutero escreveu, o cuidado de
conseguir "com segurança e felicidade" (tuto et feliciter) o fim
colimado procedendo por etapas, como outros entre nós o disseram desde 1963? Criar
assim, sem abalos violentos nos costumes seculares dos povos, um culto novo que
não seria mais sacerdotal?
Os resultados dessas táticas tateantes é o que conhecemos hoje no
interior da Igreja desde o final de Vaticano II: anarquia e caos litúrgico. Ao
mesmo tempo proliferação de ceias, serviços, cultos, sem regra nem controle que
iria fornecer um veículo excepcional para os cismas e heresias. Era urgente
unificar e purificar.
Foi o que fez o Concílio de Trento.
Aqui, como em outras matérias, os padres puseram como principal atenção
à sua solicitude a obra doutrinal antes da reforma disciplinar.
Ensinar a teologia da Missa e do Sacerdócio: de uma maneira, em
primeiro lugar, positiva (os "capítulos") seguida das condenações das
heresias correspondentes (os anátemas dos "cânones").
Do próprio culto, o mais urgente a dizer o fora feito a propósito do
Cânon, da língua litúrgica e da comunhão em uma só espécie.
Mas não era só isso: era
preciso deter o processo da desagregação protestante dos ritos da Missa. Esta estava favorecida pela enorme variedade
dos missais católicos e pelos abusos que os padres designavam com nitidez e que
enfeixavam em 3 principais: a superstição, a irreverência e
a avareza.
Já em Bolonha em 28 de novembro 1547, uma Comissão fora encarregada pelo
Concíliode destacar os abusos ou
erros "relativos à Missa, às indulgências, ao Purgatório e aos votos
monásticos".
Mas foi sobretudo em 1562 que as preocupações ganharam precisão: uma
nova Comissão de sete padres é formada em Julho, que cataloga abusos de toda sorte,
redige um resumo e por fim uma lista de nove cânones que são submetidos em
Setembro à discussão do Concílio.
No se tratava mais do Missal como nos projetos anteriores, onde se podia
ler: "que o sacrifício
(res sacra) seja realizado segundo o mesmo rito em toda a parte e por todos,
para que a Igreja de Deus tenha somente uma linguagem (unius
labii sit) e que não se possa encontrar, entre nós, a menor diferença
(dissentio) nessa matéria. Para que se possa chegar a este ponto desejado será
talvez necessário tomar as seguintes providências:
“Que todos os Missais, depois de terem sido
purificados de orações supersticiosas e apócrifas sejam propostos a todos
perfeitamente puros e nítidos (nitida) sem defeitos (íntegra); que sejam
idênticos, pelos menos entre todos os padres seculares, salvaguardando os
costumes legítimos não abusivos".
"Que certas rúbricas bem fixadas (certae)
sejam determinadas; os celebrantes deverão observá-las de maneira uniforme, a
fim de que o povo não possa ficar chocado ou escandalizado por ritos novos ou
diferentes".
Para resumir: "Que
os Missais sejam restaurados segundo o uso e costume antigo da Santa Igreja
Romana". (2)
O Concílio se separou antes de ter podido realizar por si próprio as
resoluções tomadas. Decidiu confiar a tarefa ao Santo Padre para que ele
terminasse a obra "segundo o que julgasse bom e sob sua autoridade".
O Papa que era então Pio IV, instituiu para isso uma Comissão especial,
mas morreu antes que os trabalhos estivessem concluídos.
Seu sucessor, Pio V, devia confirmá-la a fim de que viesse a realizar as
decisões do Concílio nos próprios termos em que foram expressas:
- unificar os Missais;
- purificá-los de qualquer erro;
- reconduzir o rito romano ao tipo exemplar de
sua origem;
- torná-lo obrigatório para todos e;
- respeitar, no entanto, os costumes
legítimos.
A graça de realizar esta obra eminentemente religiosa fora reservada pela Divina Providência ao
Papa do Santo Rosário.
O organizador da vitória de Lepanto, deveria
ser, ele próprio, o restaurador do Missal.
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