Publicaremos aqui
as 3 partes do estudo de Dom Mayer sobre a famigerada «Nova Teologia», acusada
pelo Papa Pio XII na Encíclica «Humani Generis» de 1950, porque tortuosamente
antecipava a revolução anti magisterial que se vive em pleno hoje com as
elucubrações do Vaticano 2º, no seu velado retorno às poluídas fontes de um
gnosticismo arqueológico.
NOVA TEOLOGIA (Parte Iª)
Pelo
Cônego Antônio de Castro Mayer, São Paulo,
na Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 7, fasc.
4, Dezembro 1947
O Pe. Garrigou-Lagrange, professor no “Angelicum”, que é a Universidade
dos Dominicanos em Roma, nos põe ao par de uma nova orientação teológica, em
dois artigos publicados na revista da mesma Universidade em 1946, fasc. 3 e 4,
e 1947, fasc. 2.[1] Como ele diz que é
“estrita obrigação de consciência para os teólogos tradicionais responderem (a
estas aberrações)”, “do contrário faltariam gravemente ao seu dever, falta de
que deverão dar contas a Deus” (pág. 135), parece-nos oportuno comunicar também
aos leitores brasileiros o que se passa na Velha Europa (somente lá?) de hostil
e perigoso dentro dos arraiais da mesma Igreja. Vamos nos servir do material
fornecido pelo grande teólogo dominicano, e restringir-nos às suas informações,
esquecendo, no momento, o que possamos conhecer por outras vias.
I
Cremos poder afirmar — sempre através do que colhemos nos artigos do Pe.
Garrigou-Lagrange — que a primeira preocupação da “Nova Teologia” é criar
ambiente favorável às suas ideias, que ela reconhece que são novas e, na
aparência, chocantes. É assim que estabelece um princípio, à primeira vista
sedutor: “Uma teologia que não fosse atual, seria uma teologia falsa” (pág.
126).[2] Em
outras palavras, deve a ciência teológica, como as demais, acompanhar um
progresso que não é exclusivo das ciências experimentais, mas se faz sentir
também nas disciplinas transcendentes, a Filosofia e a Teologia.
Quando sabemos o medo que têm os homens de passar por retrógrados,
percebemos quanto vai de ardiloso nesta afirmação. Mais. Tomam os novos
teólogos o cuidado de amortecer os escrúpulos, que porventura possam surgir,
diante de uma doutrina muito estranha: “Isto — dizem — parece a princípio uma
loucura; não obstante, visto de perto, não deixa de ter sua verossimilhança, e
é mesmo aceito por muitos” (pág. 134). A curiosidade, a tentação do novo, o
temor de ser tido por espírito tacanho, estreito, sem visão, a ilusão de que a
corrente nova é grande e autorizada, levam facilmente os espíritos menos
prevenidos a se deixar seduzir. Atesta um professor, em carta ao Pe.
Garrigou-Lagrange, que estes escritos “exercem grande influência sobre os
espíritos medianos” (pág. 142), que são a maioria.
Convém notar que esta nova teologia não se apresenta como um todo
sistemático. Seria mais fácil descobrir-se o erro. Ela surge mais como
tendência — que, porém, brota de um princípio, de uma convicção, de um sistema,
— tendência que reponta aqui e acolá, ora em livros, ora em artigos de revista,
ora, quando as ideias são mais arrojadas, em folhetos datilografados ou
mimeografados que se espalham, mais ou menos clandestinamente, entre
seminaristas, padres e leigos católicos. Este fato torna o perigo maior. Uma
tendência que se esboça pode atrair um espírito desprevenido, que certamente
não aceitaria a consequência lógica, mas não prevista, contida no bojo da
orientação. Ora, acontece que o agrado inicial pode alimentar a simpatia, e
quando o indivíduo vir a sequela de sua primeira imprudência, já se sente tão
dentro do novo sistema, tão comprometido com ele, que somente com grande
humildade poderá voltar atrás.
Por esse motivo salientemos primeiro as ideias mestras que formam o
arcabouço da nova teologia.
Aquele princípio “uma teologia que não fosse atual, não seria
verdadeira” supõe, no fundo, a nova definição da verdade pela qual a filosofia
contemporânea evolucionista substitui a clássica dos escolásticos. Segundo
estes, e o senso comum, a verdade está na conformação de nossa inteligência com
o objeto extra-mental. O homem está de posse da verdade, quando aquilo que
afirma no seu conceito corresponde, na ordem das coisas, à realidade objetiva,
àquilo que de fato existe. Esta noção da verdade liberta-a das ilusões, pois
obriga a inteligência a acompanhar as leis imutáveis do ser, e dá substância às
concepções mentais. Se o homem apreendeu a coisa extra-mental no que ela tem de
próprio, está com a verdade; do contrário, seu conceito será falso ou errôneo.
Compreende-se como nesta definição se possa falar na imutabilidade da verdade,
uma vez que a essência das coisas goza de uma perenidade, eis que permanece
através das variações acidentais.
A nova filosofia pretende que esta definição seja “quimérica e abstrata”
(pág. 2), e que deva ceder lugar a uma nova, mais ao sabor da nova visão do
universo que tudo engloba numa total evolução. A verdade seria, então, a
“adequação real da mente e da vida”.[3] Esta definição não é lá
muito clara. Torna-se, no entanto, colocada à luz da filosofia que a engendrou,
isto é, a filosofia da ação, ou do fenômeno, do vir-a-ser. Percebe-se, então,
por que a definição tradicional não agradava. Ela supõe a distinção entre a
pessoa que entende e o objeto conhecido; ao passo que na filosofia nova o
conhecimento não é mais do que uma consciência da própria evolução do espírito.
E como este evolui sempre, é mister que a verdade o acompanhe, jamais seja algo
de fixo e imóvel, mas se absorva no “fieri” contínuo da vida.
Percebendo o mal contido nesta estranha noção da verdade, a Santa Sé
condenou-a mais de uma vez. Pio X, pelo decreto Lamentabili, proscreveu esta
tese dos Modernistas: “A verdade não é mais imutável do que o homem, pois com
ele, nele e por ele evolui” (Denz. 2058)[4], e Pio XI, em decreto do Santo
Ofício de 1.° de Dezembro de 1924, condena 12 teses da filosofia nova. Eis o
teor da tese n. 5: “A verdade não se encontra em nenhum ato particular da
inteligência, no qual haveria uma conformidade com o objeto, como dizem os
escolásticos, mas a verdade está sempre em “fieri”, e consiste na adequação
progressiva da inteligência e da vida, isto é, num certo moto perpétuo, pelo
qual a inteligência se esforça por desenvolver e explicar aquilo que produz a
experiência ou exige a ação: de maneira, porém, que em todo o progresso nada
haja nunca de definitivo e permanente”[5].
Previu, portanto, a Santa Sé as consequências desta mudança introduzida
na conceituação tradicional da verdade. Estas condenações, no entanto, não
impediram que os novos teólogos enveredassem pelo caminho aberto com a
definição blondeliana. Nem os atemorizou uma outra proposição proscrita pelo
decreto acima citado, a última da série: “Ainda depois de recebida a fé, não
deve o homem descansar nos dogmas da religião, e a eles aderir de modo fixo e
imóvel, mas deve permanecer sempre nos anseios de progredir para uma ulterior
verdade, a saber, evoluindo em conceitos novos, corrigindo mesmo aquilo que
creu (Pág. 131.)[6]
Não obstante isso que aí está, é dentro desta nova concepção que se
situa a nova teologia… que também fala de imutabilidade do dogma; mas concebe-a
a seu modo, ajustada ao espírito moderno. Eis como, em termos formais,
Bouillard define as condições para que uma verdade conserve sua perenidade:
“Quando o espírito evolui, uma verdade imutável não se mantém senão graças a
uma evolução simultânea e correlativa de todas as noções, conservando entre
elas uma mesma relação”.[7]
Expliquemos: Numa verdade distinguimos as noções e a relação em que se
encontram. As noções são expressas pelo sujeito e predicado de uma proposição;
a relação entre elas é ditada pela cópula verbal. Para que a verdade se
conserve imutável — dizem eles — é preciso que as noções acompanhem a evolução
do espírito, de maneira simultânea e correlata; a relação entre elas, no
entanto, deve manter-se a mesma. Não se pense que esta evolução determina
apenas uma explicitação maior de um conceito menos claro, de maneira que a uma
noção obscura se substitui outra equivalente, mais precisa. Não. A noção nova
será “outra”, o que quer dizer: diversa. Neste ponto, o Autor criticado pelo
Pe. Garrigou-Lagrange é bem explícito, em que pese aos seus defensores. Ele diz
que, “para que a teologia continue a oferecer um sentido ao espírito, possa
fecundá-lo e progredir com ele, é preciso que ela também renuncie a estas
noções”, e explica, como renunciou ao sistema astronômico de Ptolomeu (pág. 9).
Portanto: a imutabilidade do Dogma, para estes autores, pede que se
abandonem as noções tradicionais, substituídas por outras mais conformes à
evolução do espírito, como a astronomia abandonou o sistema de Ptolomeu.
Nestes termos, qualquer pessoa que reflita um pouco percebe que, o que
aí se afirma, é tudo menos uma imutabilidade. De fato, a substância do Dogma
não está na nua relação expressa pelo verbo, mas na relação entre estas
determinadas noções. Em outras palavras, importa muito mais no Dogma a noção do
que a cópula verbal, de maneira que, variadas as noções, já não se pode falar
numa mesma verdade, no mesmo Dogma. Se a noção é outra, a proposição será
outra, o Dogma será outro. Por exemplo: Se as noções de “natureza” e “pessoa”
não são hoje as mesmas como há duzentos anos atrás, ninguém dirá que o Dogma
que afirma haver em Deus uma natureza e três Pessoas é o mesmo de duzentos anos
atrás, ainda que a fórmula dogmática conserve a mesma relação expressa pelo
verbo “ser”, ou, em outras palavras, seja idêntica à anterior “em Deus há uma
natureza e três Pessoas”.
Isto posto, a que se reduzem as fórmulas conciliares? Mudadas as noções,
não restam senão destroços de um Dogma que o foi algum tempo, e que hoje é
lembrado apenas pela identidade externa dos termos em que são expressas as
noções novas que substituíram as antigas.
Isto assim exposto é claro. Para fugir a estas conclusões, baralham os
novos teólogos suas explicações em períodos longos que nada explanam, e menos
ainda respondem às dificuldades levantadas. Examinemos uma de suas explicações,
salientando a confusão que ela engendra, a poeira atirada nos olhos. É de H.
Bouillart, Conversion et grâce chez S. Thomas d’Aquin, 1944, pág. 221 (págs.
127/8): “Perguntar-se-á talvez se ainda é possível considerar como contingentes
as noções implicadas nas definições conciliares? Não seria comprometer o
caráter irreformável destas definições?”.
Eis o problema posto em tese, e que deveria ser resolvido em tese. O
autor, no entanto, atenua logo uma resposta — a única possível dentro da lógica
do sistema — que chocaria pelo seu caráter modernista. Em vez de dar logo a
resposta como se espera, desce à consideração de um exemplo, em que se conjugam
duas questões que o autor não distingue, e assim deixa criada uma atmosfera de
obscuridade propícia ao encaminhamento de sua conclusão. Vejamos. Continua o
autor: “O Concílio de Trento, sess. 6, cap. 7, cân. 10, por exemplo, empregou,
no seu ensinamento sobre a justificação, a noção de causa formal. Não teria
ele, por esse fato mesmo, consagrado esse emprego, e conferido à noção de
graça-forma, um caráter definitivo?” E conclui: “Nullement”. Neste exemplo
deveria ele primeiro distinguir o que a noção de causa formal vulgarmente
significa, e que todos ou admitem ou se excluem da Igreja; e a noção filosófica
mais trabalhada, na qual pode haver divergência entre os sábios, conservando,
porém, o fundo comum que a noção sempre envolve. O Concílio não canonizou esta
ou aquela escola filosófica; mas o Concílio impôs que a graça seja considerada
aquilo que vulgarmente se entende por causa formal, ou seja, aquela realidade
que uma vez na alma, nela causa determinada mudança permanente. A resposta,
pois, “Nullement”, válida na primeira consideração, absolutamente não pode
admitir-se na segunda. A pessoa, não obstante, que não se detivesse mais no
exame do que precede, poderia deixar-se levar pela consideração comum entre os
estudantes de Teologia de que a Igreja não pretende dirimir questões livres nas
escolas católicas, e assim aceitar a conclusão do autor. Estaria o caminho
aberto para o que segue, e, inconscientemente, viria o leitor a admitir as
aberrações que salientamos acima. Leiamos o resto deste período e se verá:
“Não estava certamente na intenção do Concílio canonizar uma noção
aristotélica, nem mesmo uma noção teológica concebida sob a influência de
Aristóteles. Ele queria simplesmente afirmar, contra os Protestantes, que a
justificação é uma renovação interior”. — Não é somente isto, mas que é uma
renovação interior mediante um dom recebido na alma e a ela inerente. —
Continuemos: “Utilizou-se para este fim, de noções comuns na teologia do
tempo”. Mas, atendendo ao seu significado perene, e, portanto, irreformável, o
que impede que elas sejam substituídas por outras que não sejam equivalentes,
contrariamente à conclusão que o autor pretende, com sua exemplificação, tornar
aceita: “Mas, pode-se substituir por outras, sem modificar o sentido de seu
ensinamento”. Se estas outras noções fossem equivalentes, ainda bem; mas sendo
diversas, da mesma maneira que a astronomia moderna substituiu o sistema solar
de Ptolomeu, absolutamente não é admissível.
Temos, pois, aí analisado o princípio que orienta as especulações da
nova teologia. Representa uma revolução na Dogmática, uma destruição do Sagrado
Depósito entregue à guarda da Igreja e à crença dos fiéis.
Advertiu-o bem S. S. Pio XII: “Se tal opinião for aceita, que será dos
imutáveis dogmas católicos, que será da unidade e estabilidade da Fé?” (Osserv.
Rom., 19 de Set. de 1946, pág. 134.)[8]
Alguns exemplos ilustram melhor o que afirmamos acima. Estes exemplos
não são formados a título de explanar princípios ou teorias por quem as expõe
ou critica. Não. São aplicações feitas pelos próprios corifeus da nova
teologia. “Estas consequências, diz o Pe. Garrigou-Lagrange, é difícil não
vê-las em certos folhetos datilografados que são distribuídos (alguns desde
1934) ao Clero, aos seminaristas, aos intelectuais católicos” (pág. 134).
São, portanto, eles mesmos, os novos teólogos, que, para se manterem
coerentes, conscientemente, modificam a conceituação tradicional do Dogma
segundo suas novas ideias. E como veremos, este ajustamento fere profundamente
a verdade revelada, de maneira a se poder perguntar se alguma coisa permanece
do que a Sabedoria Divina trouxe à terra.
Uma destas aplicações refere-se à presença real de Jesus Cristo na SS.
Eucaristia.
Esta presença real de Jesus Cristo, tão verdadeiramente como está no
Céu, é um mistério; mas, como todos os mistérios, admite uma explicação
analógica tomada às coisas criadas, que nos auxilia à formação de um conceito
aproximado da realidade transcendente: S. Tomás de Aquino, para esclarecer este
dado da revelação, aduz o fato da presença da substância no corpo. Jesus,
segundo sua doutrina, está na SS. Eucaristia “ad modum substantiae”. Da mesma
maneira que a substância ocupa lugar mediante os acidentes que a determinam no
espaço, assim Jesus Cristo ocupa lugar mediante os acidentes de pão e vinho sob
os quais se encontra.
Toda a explanação envolve estes pontos: A presença de Jesus na
Eucaristia é determinada pela transubstanciação de toda a substância do pão e
do vinho no Corpo e Sangue de Jesus Cristo. Em virtude desta transubstanciação
o Corpo e Sangue de Jesus vêm a se encontrar onde estava antes a substância do pão
e do vinho; e como esta se achava em determinado lugar mediante os acidentes
próprios, assim Jesus passa a ocupar o mesmo lugar, graças aos mesmos acidentes
que permanecem, e sob os quais se vela o Divino Mestre. Por isso a presença
real exige a permanência dos acidentes do pão e do vinho.
Também com respeito aos acidentes sob os quais se encontram, o Corpo e
Sangue de Jesus Cristo estão na mesma relação em que estava a substância de pão
e vinho com referência aos seus acidentes. Distinta destes, da quantidade, da
cor, do sabor, etc., está a substância em todo o corpo e em todas as partes do
corpo, que faz tal, desta determinada natureza. Por exemplo, o pão é pão devido
à substância de pão que o constitui. Esta substância, porém, não se encontra
apenas num determinado lugar do pão.
Ela se encontra em toda a extensão do pão e em cada uma de suas partes;
tanto assim que, dividido o pão, cada uma de suas partes continua a ser pão,
porque conserva a mesma substância que antes possuía.
Vindo ocupar o lugar deixado pela substância de pão e vinho que nele se
transubstanciou, o Corpo e Sangue de Jesus Cristo conservam a mesma relação
quanto ao lugar que ocupam, na hóstia, isto é, estão em toda a hóstia e em cada
uma das partes da mesma, da mesma maneira na qual se achava a substância de pão
e vinho, com exceção apenas da condição de sujeito de inesão dos acidentes.
Está envolvido pelos acidentes de pão e vinho, sem com eles se confundir.
Esta, em resumo, a doutrina escolástica traçada por S. Tomás de Aquino.
Em substância, foi ela canonizada pelo Concílio Tridentino, e passou a
fazer parte da doutrina católica. O Concílio fixou também o termo
“transubstanciação”. Diz o Concílio na sess. 13: “Cristo todo inteiro se
encontra sob a espécie de pão e sob qualquer de suas partes, todo igualmente
sob a espécie de vinho e sob suas partes” (cap. 3; Denz. 876).
Motivo pelo qual “é anátema quem negar que Jesus Cristo inteiro está em
toda a hóstia e em qualquer parte em que se divide a hóstia” (Denz. 885). O
Santo Sínodo declara: “Pela consagração do pão e do vinho se faz a conversão de
toda a substância do pão na substância do Corpo de Cristo Senhor Nosso, e de
toda a substância de vinho na substância do seu Sangue. Esta conversão é de
modo conveniente e próprio chamada pela Igreja Católica, transubstanciação”
(cap. 4; Denz. 877). E no cânon correspondente (Denz. 884) lança anátema contra
aqueles que afirmam “que no Sacrossanto Sacramento da Eucaristia permanece a
substância do pão e vinho conjuntamente com o Corpo e Sangue de Nosso Senhor
Jesus Cristo, ou negam aquela admirável conversão de toda a substância de pão e
vinho no Corpo e Sangue de Cristo Jesus, conversão que, com muita propriedade
(“aptissime”), a Igreja Católica denomina transubstanciação”.
Esta a doutrina tradicional canonizada irreformavelmente pelo Concílio
de Trento.
Que fazem os novos teólogos? Primeiro insurgem-se contra a fórmula
escolástica “ad modum substantiae”. Dizem que, na sua clareza falaciosa,
suprime o mistério em vez de esclarecê-lo. Aliás, para conceber esse mistério,
é mister substituir ao método de reflexão dos escolásticos o método cartesiano
e espinosista. Depois, censuram a palavra “transubstanciação”. Este termo tem,
dizem, o inconveniente de se ajustar ao modo como os escolásticos entendem esta
transformação, e esta maneira de concebê-la é falsa. Apresentam, então, o que
lhes parece venha a ser a transubstanciação. O pensamento, exposto numa
antítese ao escolástico, marca bem sua novidade.
“Nas perspectivas escolásticas, nas quais a realidade é a “substância”,
a coisa não poderá mudar realmente a não ser que a substância se mude… pela
transubstanciação. Nas nossas perspectivas atuais… quando em virtude da oblação
que foi feita segundo um rito determinado por Cristo, o pão e o vinho
tornaram-se o símbolo eficaz do sacrifício de Cristo, e, por conseguinte, de
sua presença espiritual, o ser religioso (do pão e vinho) mudou-se”. Eis,
acrescentam, o que podemos designar pela palavra “transubstanciação”. (Pág.
140).
Esta explanação se esclarece melhor, quando se sabe que, segundo estes
autores, em todas as coisas devemos distinguir dois elementos: a realidade
material, e o sinal que ela é de realidades espirituais. “Pode-se conceber que
uma coisa, tornando-se por vontade de Deus o sinal de uma coisa outra do que
aquela que naturalmente significa, se torne ela mesma outra sem que se mude na
sua aparência”. (Pág. 140, nota.)
Quem não vê que, nesta concepção, mudou-se completamente o Dogma?
Quem não percebe que, nestas novas perspectivas, absolutamente não se
pode salvar a expressão do Concílio Tridentino, segundo o qual na Eucaristia se
opera a conversão de toda a substância de pão (e não apenas de seu sinal, seu
ser espiritual) no Corpo, e de toda a substância de vinho (e não apenas,
repitamos, de seu ser espiritual, seu sinal) no Sangue de Jesus Cristo,
permanecendo apenas as aparências de pão e vinho?
Há ainda outras aplicações. A Encarnação, por ex., é concebida de
maneira semelhante: “Embora Cristo seja verdadeiramente Deus, não se pode dizer
que, por Ele, havia uma presença de Deus sobre a terra da Judeia… Deus não
estava mais presente na Palestina do que alhures. O sinal eficaz desta presença
divina manifestou-se na Palestina no primeiro século de nossa era, é tudo
quanto se pode dizer”. (Pág. 141.)
Estamos na escola simbolista, ou seja na teologia modernista. Para os
modernistas, sim, que as fórmulas dogmáticas não passam de símbolos práticos.
Outras amostras poderiam ser dadas. O Pe. Garrigou-Lagrange aduz algumas
outras. As duas por nós citadas são suficientes para dar uma ideia da
orientação desta nova teologia. É; porém, a concepção que os novos formam do
Universo e da realidade divina que evidencia a distância enorme, o abismo
intransponível que os separa da tradição da Igreja. Pode-se dizer que é uma
verdadeira heresia panteísta que dita a nova criteriologia, e fundamenta a nova
ciência teológica. Leia-se esta página, a 15ª, de um daqueles folhetos
espalhados entre seminaristas, padres e leigos, que se intitula “Comment je
crois”:
“Se queremos, nós os cristãos, conservar ao Cristo as qualidades que
fundamentam seu poder e nossa adoração, nada temos de melhor, ou mesmo, não
temos nada mais a fazer senão aceitar até o fim as mais modernas concepções da
Evolução Sobre a pressão combinada da Ciência e da Filosofia, o Mundo se impõe
cada vez mais à nossa experiência e ao nosso pensamento como um sistema unido
de atividades que se elevam gradualmente na direção da liberdade e da
consciência. A única interpretação satisfatória deste processus é de
considerá-lo irreversível e convergente. Assim se define diante de nós um
Centro cósmico Universal, onde tudo termina, tudo se sente, tudo se ajusta.
Pois bem. É neste polo físico da universal Evolução que é necessário, segundo
meu parecer, colocar e reconhecer a plenitude do Cristo… A Evolução descobrindo
um vértice para o mundo, torna o Cristo possível assim como o Cristo dando um
sentido ao Mundo torna possível a Evolução”. (Pág. 137.)
Nesta concepção, não há lugar para Jesus Cristo, Pessoa distinta do
universo e demais criaturas. Estamos diante de um Panteísmo evolucionista,
frequente na Filosofia moderna. E não se pense que sejam frases soltas, mais ou
menos inconsistentes que poderiam escapar à pena num momento de delírio. A tese
é afirmada com plena consciência:
“Tenho perfeita consciência do que há de vertiginoso nesta ideia,
continua o autor do tal folheto, mas imaginando uma tal maravilha, não faço
outra coisa mais do que transcrever em termos de realidade física as expressões
jurídicas, nas quais a Igreja depositou sua Fé… De minha parte, tomei comigo o
compromisso de seguir, sem hesitação, na única direção na qual me parece
possível fazer progredir, e por conseguinte, salvar minha fé”.
Ou as palavras perderam seu significado, ou o que aí se afirma é
precisamente o contrário de tudo quanto a Igreja sempre ensinou, e fixou nas
suas fórmulas dogmáticas. Como pretende este autor conservar-se no seio da
Igreja? Nada mais oposto ao dualismo cristão do que o Panteísmo. Toda a
concepção católica do universo opõe a um Deus pessoal, transcendente, os outros
seres, dele distintos como criaturas que o devem servir e glorificar. E a união
realizada em Jesus Cristo entre a natureza humana e a divina, ou entre Deus e o
homem pela graça, só se compreende admitida aquela distinção. Não obstante
houve sempre na Igreja uma mística heterodoxa que descambou para o Panteísmo. A
Igreja fulminou sempre sobre ela seus mais severos anátemas. Estes autores não
poderiam ignorá-lo. E, no entanto, é conscientemente que abraçam o Panteísmo. A
razão é simples. O Catolicismo tradicional tinha-os decepcionado. O que lhes
agrada é um novo Cristianismo, que nada tem de semelhante ao primeiro:
“O Catolicismo tinha-me decepcionado à primeira vista, por suas
representações estreitas do Mundo, e por sua incompreensão do papel da Matéria.
Agora reconheço que, na trilha do Deus Encarnado que ele me revela, eu não
posso ser salvo a não ser fazendo corpo com o universo. E são, pelo mesmo modo,
minhas aspirações “panteístas” as mais profundas que se encontram satisfeitas,
asseguradas, orientadas. O Mundo em torno de mim se torna divino..”. (Pág.
137.)
Eis o princípio ontológico. O mundo é um todo que na sua plenitude
engloba todas as coisas. No seu centro está Cristo, no qual terminam todas as
coisas, em cuja plenitude tudo se confunde. Poderá haver algo de mais contrário
a tudo quanto a Revelação nos ensina a respeito de Cristo, do mundo e do homem?
Não há ponto em que mais prime a Igreja por sua intolerância do que
aquele que concerne as diversas confissões religiosas não cristãs, todas elas
rejeitadas como falsas e errôneas, porque opostas à única verdadeira Religião,
a católica contida no depósito confiado à Igreja de Roma, e por ela
autenticamente proposta a todos os povos. Ora, na concepção destes novos
teólogos, naturalmente todas as religiões devem ser tidas como boas e
verdadeiras, pois não passam de momentos da Evolução que convergem para a mesma
unidade central cósmica universal, a plenitude de Cristo. É o que
explicitamente afirmam:
“Uma convergência geral das religiões para um Cristo-universal, que, no
fundo, satisfaz a todas: tal me parece ser a única conversão possível ao mundo,
e a única forma imaginável para uma Religião do futuro”. (Págs. 137-138.)
Eis-nos diante de uma apostasia completa. O evolucionismo panteísta
absoluto não deixa subsistir nenhum dos dogmas cristãos (cfr. p. 14). E pretender
que isso seja o cristianismo verdadeiro, a transcrição real das fórmulas
jurídicas da Igreja, somente numa época de confusão geral dos espíritos, em que
se torna possível afirmar os maiores disparates, e encontrar quem os leia e
lhes dê crédito![9]
A noção “atual” de “pecado original” aplica a nova concepção do universo
e do cristianismo.
Tradicionalmente, segundo o Dogma que se encontra claramente revelado em
S. Paulo, na sua Carta aos Romanos, cap. V, o pecado original supõe a
existência de um primeiro homem, indivíduo distinto dos demais homens, aos
quais, não obstante, comunicará, por via de geração, a existência. Este indivíduo,
por uma desobediência, mereceu a morte, e perdeu para si e seus descendentes os
privilégios gratuitamente concedidos por Deus ao Gênero Humano, na pessoa de
seu chefe. A este pecado, ocorrido nos primórdios da Humanidade, opõe-se a
justificação por obra de Jesus Cristo, o segundo Adão, também como o primeiro,
indivíduo distinto dos demais homens, para quem, com sua paixão e morte
mereceu, junto de Deus, a remissão da culpa e a restituição dos privilégios
perdidos, alguns nesta vida, outros somente na outra.
Na nova concepção, já vimos que Jesus Cristo não é um indivíduo, uma
pessoa distinta do universo. O ideal, vimos, é o Cristo-universal, com o qual
fazemos corpo, atendendo às aspirações panteístas próprias. Também Adão e o
pecado original, não são considerados: pessoa distinta individual, e falta
precisa e determinada. Em primeiro lugar, o pecado, enquanto atinge a alma, é
algo de espiritual e intemporal[10]. Por conseguinte, pouco
importa que tenha sido cometido no começo da humanidade, ou no decurso das
idades. Assim, o pecado original não é a consequência de uma falta voluntária
do primeiro homem, transmitida aos seus descendentes. Ele procede das faltas
dos homens que influenciaram sobre a humanidade. Não é difícil entrever, neste
conceito, a ideia do todo universal exposta de maneira clara na página que
citávamos há pouco.
Resumindo: A nova teologia adere satisfeita à tendência monista
evolucionista em voga na filosofia moderna. Para ser coerente, uma vez admitido
este monismo, procura ajustar os ensinamentos da Igreja à sua nova concepção do
universo, identificando, com o cosmos, a realidade viva da Igreja que é Jesus
Cristo, dando uma interpretação nova aos dogmas da Igreja, em oposição aos seus
conceitos verdadeiros, que são aqueles estabelecidos pelo Magistério Infalível,
especialmente nas fórmulas conciliares. Como, por outra parte, não pretende
desligar-se do grêmio da Igreja, auxilia-se de uma nova definição da verdade,
para seu mal, questão também condenada pela Santa Sé[11].
NOTAS (1 – 11)
[1] “La nouvelle théologie où
va-t-elle?” e “Vérité et immutabilité du Dogme”. Estes dois artigos, publicados
em separata, trazem, respectivamente, a seguinte paginação: 126-145 e 1-16.
Nestas notas vêm citados pelas páginas.
[2] Esta
frase é do Pe. Henri Bouillard, S. J. (Conversion et grâce chez S.
Thomas d’Aquin, 1944, pág. 219). Para maior clareza,
transcrevemos o trecho completo citado pelo Pe. Garrigou-Lagrange: “Quand
l’esprit évolue, une vérité immutable ne se mantient que grâce à une évolution
simultanée et corrélative de toutes les notions, maintenant entre elles un même
rapport. Une théologie qui ne serait pas actuelle serait une théologie fausse.” (Nota da Redação.)
[3] Pág. 129. Esta definição é
de Blondel nos Annales de Philosophie chrètienne, 15 de junho de 1906, pág.
235. O Pe. Garrigou-Lagrange mostra que, nos últimos livros, Maurice Blondel,
de fato, não abandona sua primeira posição. Cfr. págs. 129/30 e 3 ss.
[4] Veritas non est
immutabilis plusquam ipse homo, quippe quae cum ipso, in ipso et per ipsum
evolvitur.” (Denz. 2058.)
[5] “Veritas non invenitur in
ullo actu particulari intellectus in quo haberetur conformitas cum obiecto, ut
aiunt scholastici, sed veritas est semper in fieri, consistitque in
adaequatione progressiva intellectus et vitae, scil. in motu quodam perpetuo,
quo intellectus evolvere et explicare nititur id quod pari experientia vel
exigit actio: ea tamen lege ut in toto progressu nihil unquam ratum fixumque
habeatur.” — “Estas proposições condenadas se encontram no Monitore
ecclesiastico, 1925, pág. 194; na Documentation catholique, 1925, t. I, págs.
771 ss. e nas Praelectiones Theologiae naturalis do Pe. Descoqs, 1932, t. I,
pág. 150, t. II, págs. 287 ss.” (Pág. 131, nota.)
[6] “Etiam post fidem
conceptam, homo non debet quiescere in dogmatibus religionis, eisque fixe et
immobiliter adhaerere, sed semper anxius manere progrediendi ad ulteriorem
veritatem, nempe evolvendo in novos sensus, immo et corrigendo id quod credit.”
[7] Pe.
Henri Bouillard, S. J., Conversion et grâce chez S. Thomas d’Aquin, 1944, pág.
219. (Apud A. cit. pág. 126.)
[8] “Plura
dicta sunt, at non satis explorata ratione, “de nova theologia” quae cum
universis semper volventibus rebus, una volvatur, semper itura numquam
perventura. Si talis opinio amplectenda esse videatur, quid fiet de numquam
immutandis catholicis dogmatibus, quid de fidei unitate et stabilitate.”
(Allocutio Pii Papae XII ad Patres Societatis Jesu. Vide REB, Set. 1947, pág.
688.)
[9] Idéias semelhantes a estas
— diz o Pe. Garrigou-Lagrange — podem ver-se em artigo do Pe. Teilhard de
Chardin, “Vie et planètes” aparecido nos “Etudes” de Maio de 1946,
especialmente, págs. 158-160 e 168. Veja-se também “Cahiers du Monde nouveau”,
Agosto de 1946: “Um grand Evènement qui se dessine: la Planétisation humaine”. (Pág. 138,
nota.) Há na mística judaica concepção parecida: “The importance of cosmogony
for mystical speculation is equally exemplified by the case of Jewish
mysticism. The consensus of Kabbalistic opinion regards the mystical way to
God. To know the stages of the creative process is also to know the stages of
one´s own return to the root of all existence… procession and reversion
together constitute a single movement, the diastole-systole, which is the life
of the universe”. (Gershon G. Scholem: Major Tends In Jewish Mysticism, p. 20. Schocken Books Inc. New
York, 1946.)
[10] Concepção
análoga na mística judaica: “The historical aspects of religion have a meaning
for the mystic chiefly as symbols of acts which he conceives as being divorced
from time, or constantly repeated in the soul of every man.” (Scholem, o. c, p. 19.)
[11] Esta insatisfação da
filosofia moderna, quanto ao conhecimento conceitual, provém do fato que a realidade
transborda sempre ao conceito. Daí o anseio de uma inteligência voltada para o
infinito por um melhor e mais perfeito meio de dominar o mundo real. Todas as
tentativas, porém, no sentido de esgotar a inteligibilidade da coisa por parte
da inteligência humana estão votadas ao fracasso. Deve ela reconhecer acima de
si o conhecimento angélico, e sobretudo o divino. Não obstante, pode o homem
atingir a realidade com um conhecimento certo, objetivo e suficiente para
ajuizar as coisas e normar sua vida. No fundo, esta angústia da filosofia
moderna, ou desta revolta contra a escolástica e a Igreja, prende-se ao
primeiro pecado, ao desejo desordenado de apossar-se das propriedades divinas,
ao consentimento na tentação da serpente: “Eritis sicut dii.”
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