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Quatro «novos teólogos» peritos do Vaticano 2º
Yves Congar, Henri De Lubac, Marie-Dominique Chenu, Hans Kueng.
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Publicamos aqui a
IIª e IIIª parte do estudo de Dom Mayer sobre a famigerada «Nova Teologia»,
acusada em 1950 pelo Papa Pio XII na Encíclica «Humani Generis».
Em veste de «alta
teologia», novas elucubrações modernistas estavam formando uma nova mentalidade
revoluciomária, anti magisterial, aquela que hoje domina através das
ambiguidades do Vaticano 2º; mentalidade basicamente anti escolástica e por
isto demolidora do Magistério, considerado «manualístico» e derivado de um
indefinido «neo-tomismo leonino». Resultado: abria a doutrina católica ao vento
novo do cientismo moderno por meio do velado retorno às fontes de um
arqueológico envolto na ficção do gnosticismo de um Teilhard de Chardin.
NOVA TEOLOGIA (Parte IIª e IIIª)
Pelo Cônego Antônio de Castro Mayer, São
Paulo,
na Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 7, fasc. 4, Dezembro 1947
- II -
É natural que se
investigue a causa desta nova teologia a causa desta nova teologia. Responde um
bom juiz, diz o Pe. Garrigou-Lagrange, que ela procede da frequência com os
mestres do pensamento moderno. “Recolhemos os frutos da frequência, sem
precauções, dos cursos universitários. Querem frequentar os mestres do
pensamento moderno para convertê-los, e deixam-se converter por eles. Aceitam,
pouco a pouco, suas ideias, seus métodos, seu desdém pela escolástica, seu
historicismo, seu idealismo e todos os seus erros”. (Pág. 142.)
Sem achar que aí se
encontra toda a explicação, é certo que os novos teólogos almejam a
independência dos filósofos modernos diante das decisões da Santa Sé. Aduz o
Pe. Garrigou-Lagrange vários testemunhos desta atitude de rebeldia, envolta no
menosprezo mais ou menos voltairiano do que é tradicional e venerável, quase
diríamos sagrado nas escolas católicas: a filosofia de S. Tomás.
Vimos acima como a
definição clássica da verdade não agradou aos novos que a reputam “quimérica e
abstrata”. Em outro passo, louva-se um “feliz adormecimento que protege o
tomismo canonizado, e também, como dizia Péguy, enterrado, enquanto vivem os
pensamentos votados, em seu nome, à contradirão”. (Gaston Fessard, S. J., em
Etudes de Nov. 1945, pp. 269/70.) (Pág. 133.)
Às vezes, pretendem uma distinção entre S. Tomás e os tomistas, como se
tivessem estes deturpado o pensamento do Angélico. Compreende-se. Atacar de
frente a S. Tomás é por demais audacioso. Convém melhor apresentá-lo como se
também ele, séculos atrás, partilhasse as mesmas ideias. É assim que o Pe.
Lubac, a propósito da distinção entre Deus, autor da ordem natural, e Deus,
autor da ordem sobrenatural, afirma jamais ter S. Tomás admitido semelhante
distinção forjada mais tarde pelos tomistas[1]. O Pe. Garrigou-Lagrange aduz
vários lugares de S. Tomás em que S. Tomás diz de modo insofismável que “o fim
para o qual as coisas criadas são ordenadas por Deus, é duplo. Um, que excede a
proporção e a faculdade da natureza criada… Outro, proporcionado à natureza criada”
(1, q. 23, a. 1). Aliás, não se admitindo esta distinção clássica entre a ordem
natural e a sobrenatural é difícil explicar a doutrina católica, segundo a
qual, não tem a natureza humana qualquer exigência de ordem sobrenatural, e,
por sua vez, deverá tender, por sua natureza, a um fim que lhe seja
proporcionado, ou seja um fim dentro da ordem natural. Parece-nos mesmo que,
após a condenação de Baio, é difícil ao católico manter-se dentro da ortodoxia
e não aceitar aquela distinção; certamente renunciará ao meio que teria em mãos
para explanar o que aceita por definição da Igreja[2].
Às vezes encontramos
expressões ainda mais ousadas. Atingem declarações dos órgãos supremos de
orientação na Igreja. Assim em Etudes (Abril de 1946), lê-se que o “neo-tomismo
e as decisões da Comissão Bíblica são um anteparo, não, porém, uma resposta”.
(Pág. 133.)
Este afastamento da
Escolástica não se faz sem temeridade. A Santa Sé constante e insistentemente
recomenda aos seus filhos que tomem como guia seguro e certo nas especulações
do espírito, quer em teologia, quer em filosofia, a S. Tomás de Aquino. Leão
XIII, com a Æterni Patris, fomentou os estudos escolásticos,
especialmente de S. Tomás. Recorda, nessa encíclica, a alta consideração em que
tiveram ao Doutor Angélico os Sumos Pontífices seus predecessores; bem como a
atitude de toda a Igreja nos Concílios de Lião, Viena, Florença e Vaticano, e
especialmente no de Trento, no qual a Suma Teológica foi livro de consulta, ao
lado das Sagradas Escrituras e dos decretos dos Papas. Lamenta, então, o Santo
Padre o afastamento de S Tomás que temerariamente se permitiram alguns autores.
Pio X, no motu-próprio Doctoris Angelici de 29 de Junho de 1914, volta sobre as
mesmas considerações de Leão XIII. Enfim, o Código de Direito Canônico
preceitua aos professores que nos estudos de filosofia racional e teologia
sigam o método, a doutrina e os princípios de S. Tomás, coisas que devem
conservar santamente, e nas quais formar os alunos. (Cân. 1366, 2.)
O motivo desta
predileção — que não é fruto do arbítrio pessoal deste ou daquele Papa, mas uma
atitude geral da Santa Igreja, e, pois, graça do Espírito Santo que, como alma,
preside às manifestações do Corpo Místico de Cristo — esta predileção,
dizíamos, justifica Pio X na encíclica Pascendi, de 8 de setembro
de 1907, em que condenou o Modernismo, com estas palavras: “afastar-se ainda
que pouco de S. Tomás, especialmente em questões metafísicas, não se faz sem
grande detrimento. Um pequeno erro no começo torna-se grande no fim: Magistros monemus,
ut rite hoc teneant Aquinatem vel parum deserere, praesertim in re
metaphysica, non sine magno detrimento esse. Parvus error in principio, si
verbis ipsius Aquinatis licet uti, est magnus in fine”.
Ninguém, portanto,
se afasta de S. Tomás sem temeridade. Quer dizer, então, daqueles que condenam
e combatem seu pensamento, método e doutrina?
Mas, dirão, trata-se
de filosofia, assunto cuja alçada pertence à razão humana. Nestes assuntos deve
dar-se ao indivíduo plena liberdade, a fim de que decida de conformidade com
suas convicções. Se a filosofia tomista não o satisfaz, há de se lhe permitir
que escolha outra. Eis o que parece de bom senso!
A isto oporemos
algumas observações.
A razão não goza de
uma liberdade desenfreada para admitir o que lhe melhor lhe pareça. Não é uma
faculdade livre, mas necessária. Não tem auto-determinação: deve obedecer ao
real, sujeitar-se à verdade que a ela se impõe por si mesma. De maneira geral,
pois, não pode o homem escolher esta ou aquela filosofia. Há de admitir aquela
que se conformar com a realidade, aquela que justificar, com argumentos certos,
as suas conclusões. A inteligência foi feita para o real, e é obedecendo ao
real que se enobrece e aperfeiçoa, que descansa na verdade.
Depois, em questões teológicas, na conceituação dos dados revelados, não
tem o homem terminologia e idéias apropriadas que correspondam com precisão à
realidade transcendente. Não. É em termos humanos, em conceitos humanos que se
filtram os mistérios divinos. Conceitos e termos fornece-os a filosofia.
Importa, portanto, muito à teologia qual filosofia admitir-se. Conforme a
filosofia, conforme a interpretação que se der à realidade, assim se formarão
os conceitos que vão acolher as verdades reveladas. Vem aqui a propósito a
observação de Billot, no seu tratado do Verbo Encarnado, ao comentar a 3ª parte
da Suma Teológica[3]:
“Não é indiferente
ao fiel o sistema filosófico em que se traduz em conceitos a realidade das
coisas, sob pretexto de que a filosofia, por isso que de ordem natural, goza de
autonomia diante da teologia. De fato. Os mistérios da revelação são expressos
analógica, mas verdadeiramente, em linguagem humana, de maneira que a filosofia
está para a teologia, como o léxico de que nos auxiliamos para externar nosso
pensamento. Se o léxico é bom, se dá às palavras o significado próprio, podemos
alimentar esperanças de sermos entendidos”. E exemplifica: “Se lês uma homilia
ou tratado no qual ocorre falar-se de padres e diáconos, e não sabes que seja
“diácono”, recorres a um léxico, no qual encontras:Diácono, espécie de padre.
Este léxico não te será útil para bem entender o tratado, na parte referente
aos diáconos e sua relação com os padres”.
Assim acontece com
a filosofia, o léxico humano que nos auxiliará a entender os mistérios divinos,
uma vez que é em termos humanos que se manifesta aos homens a Sabedoria Eterna.
Se não for reto e objetivo, o sistema filosófico só concorre para germinar
erros e depravar dogmas.
Pode a razão humana
por si mesma, utilizando seu vigor natural, e as leis essenciais de sua ação,
ajuizar se é ou não objetiva uma filosofia. Não obstante, a quantos enganos não
está sujeita esta nossa pobre e orgulhosa razão natural?! Além disso, quantos
estudos, e quanto engenho não pedem, por vezes, as subtis roupagens que
envolvem os sistemas falsos, para serem rasgadas e manifestarem o vício que
encobrem? Tanto mais que a reduzida capacidade de uma inteligência finita traz
consigo a tentação do desassossego de quem aspira ao infinito.
Por tudo isso,
dotou sabiamente Jesus Cristo à sua Igreja de infalibilidade em tudo que
concerne à conservação e explanação da verdade revelada. Têm assim os homens um
guia seguro nas questões mais fundamentais de sua vida: a verdade religiosa. É
em função desta missão divina, que a Igreja, não somente pode, mas deve apontar
ao Gênero Humano os sistemas filosóficos errôneos, por isso que conduzem a uma
incompreensão inexata e falsa da revelação; bem como pode e deve indicar a
orientação que devem os fiéis tomar em questões de filosofia para entenderem
bem o legado doutrinário que a Munificência Divina se dignou outorgar-lhes.
Eis em que se fundamenta a preferência da Santa Igreja pela filosofia
tomista. Ela foi proclamada meio indispensável para a vitoriosa defesa da
verdade revelada contra os ataques da heresia[4].
Teimar, pois, em
querer reduzir os dogmas revelados a termos de outra filosofia é, no mínimo,
temerário, e não se fez ainda sem incidir em graves erros em matéria de Fé. A
atitude que analisamos neste artigo é mais uma ilustração desta verdade.
Atendessem estes novos teólogos às recomendações e preceitos da Santa Igreja,
em questões de filosofia, e não teriam chegado às enormidades que acima comentamos.
- III -
O primeiro artigo
do Pe. Garrigou-Lagrange provocou uma resposta mais ou menos irritada, segundo
se pode deduzir do segundo com que o ilustre dominicano respondeu às objeções
suscitadas pelo precedente. Esta irritação, em boa parte, procede do fato de
ter o Pe. Garrigou-Lagrange sublinhado a inclinação pronunciada da nova
teologia para a heresia, se é que não constitui ela mesma uma heresia pura.
Nada mais agasta,
ao que parece, aos novos teólogos do que esta pecha de heretizantes. Não obstante,
deixando o juízo definitivo à Santa Sé, e, quanto à consciência, a Deus Nosso
Senhor, notamos uma semelhança não pequena entre eles e aqueles que, no decurso
da história, tentaram dilacerar a túnica inconsútil de Jesus Cristo.
Seu modo de proceder dispersivo, sem uma exposição sistemática, como
idéias que surgem espalhadas em diversos lugares e diversos autores, lembra os
Modernistas, dos quais notara Pio X, de santa memória, na grande encíclica Pascendi:
“os Modernistas, com astuciosíssimo engano, costumam apresentar suas doutrinas,
não coordenadas e juntas como num todo, mas dispersas, e como separadas umas
das outras, a fim de serem tidos por duvidosos e incertos, ao passo que de fato
estão firmes e constantes”[5].
O expediente de não
saírem com publicações impressas e lançadas ao grande público, especialmente
quando expõem seu pensamento de modo mais coordenado; mas de se utilizarem de
folhetos datilografados ou mimeografados, que se espalham clandestinamente,
também não é novo. Ario, o grande heresiarca do século IV, agia de maneira
semelhante com suas palestras particulares em reuniões de família.
Irritam-se os novos
teólogos, quando se diz que eles se encaminham “pelas veredas do ceticismo, da
fantasia e da heresia” (pág. 134), ou então acusam de falta de probidade citar
escritos não publicados, mas espalhados clandestinamente entre o clero (pág. 13).
É maneira usual dos
heresiarcas. Queixaram-se os Modernistas de Pio X, os Baianistas de S. Pio V, e
a história registra atitudes parecidas em outros chefes das grandes apostasias.
Sempre quiseram ser tidos como católicos probos e íntegros, professando, porém,
um Credo diferente e oposto ao revelado. Quanto à falta de probidade assacada
contra o Pe. Garrigou-Lagrange, nenhuma resposta melhor do que a do exímio
teólogo: “Se há falta de probidade, é ela daquele que denuncia o escândalo, ou
daquele que o provoca?” (Pág. 13).
Deu sempre bom
resultado assumir a pessoa, contra a qual se levanta uma suspeita qualquer, o
papel de vítima, e voltar as acusações contra os acusadores. Quem quer que
conheça rudimentos de História Eclesiástica, sabe as perseguições que S.
Atanásio deveu às intrigas de Ario, e a maneira azeda com que Nestório
invectivava a S. Cirilo de Alexandria. Hoje clamam os novos teólogos, ao serem
apontados como heretizantes: Há nisso falta de caridade, e arrogância de
direitos que só competem à Igreja; porquanto ninguém tem direito de julgar ao
próximo, nem pode prevenir o juízo da Santa Igreja censurando qualquer opinião
nova como heretizante. (Cfr. pág. 13).
Realmente há falta
de caridade, quando uma pessoa percebe o mal iminente a que está seu irmão
exposto, e não corre a socorrê-lo. Precisamente o que fazem aqueles que
denunciam uma corrupção ardilosa que ameaça a integridade da fé nos indivíduos
mais simples. Como também há falta de caridade, quando uma pessoa desconhece as
diretrizes da Santa Igreja, e, sem procurar conhecê-las, temerariamente difunde
orientações que conduzem à heresia. Nestes termos é fácil de ver-se onde há
verdadeira caridade, onde ausência dela.
Também não há
nenhuma violação dos direitos da Igreja. Responde muito bem o Pe. Garrigou-Lagrange:
“Não é interdito a um teólogo dizer que tal posição nova conduz, segundo sua
opinião, à heresia, e mesmo que ela lhe parece herética. Ele diz do ponto de
vista da ciência teológica, e suas deduções, sem falar auctoritative,
como faria um juiz em um tribunal eclesiástico”. (Pág. 13).
Essa distinção que
aí está, muito bem formulada por um dos maiores teólogos contemporâneos, é de
senso comum. Quando a Igreja define uma posição, estabelece um princípio, ou
proscreve uma doutrina, ela não tem intenção de impedir que seus filhos tomem a
sério sua palavra, e, pois, se sirvam dela como critério para discernir, por
meio das doutrinas conhecidas, as futuras que possam surgir e a elas se
oponham. Também isto é de senso comum. Se, p. ex., a Igreja diz que é de fé que
Jesus Cristo é uma pessoa distinta do mundo, um indivíduo que não se pode
confundir com os outros seres criados, ao mesmo tempo condena como heresia toda
opinião que se opõe a esta verdade. Se, portanto, aparece uma teoria que nos
venha dizer que Jesus Cristo é o “centro do mundo cósmico”, e diga que só assim
satisfaz às “tendências panteístas” de seu íntimo, não será a Igreja que irá
censurar aqueles que denunciam como heretizante o desvio doutrinário da nova
corrente.
Esta maneira de
agir, aliás, obedece a uma norma que dava S. João na sua 1ª epístola, cap. 4.
Recomenda aí o apóstolo aos fiéis que, antes de aceitarem uma doutrina, a
comparem com a anteriormente recebida dos apóstolos e da Igreja, a fim de
verificar se é certa: “Caríssimos, não creiais a todo o espírito, mas examinai
se os espíritos são de Deus”. A razão é “porque se levantaram muitos profetas
no mundo”, como, aliás, em todos os tempos, segundo a profecia de S. Paulo, “oportet
hæreses esse”. Como hão de examinar os fiéis os novos espíritos? Mediante
comparação com a doutrina pregada pela Igreja. “Eis como se conhece o espírito
que é de Deus: todo o espírito que confirmar que Jesus Cristo veio em carne é
de Deus, e todo o espírito que divide a Jesus não é de Deus”.
Eis, pois, os fiéis
não somente autorizados, mas exortados a não darem ouvidos às novidades, mas a
“prová-las”, antes de aceitá-las, por meio de uma acareação com a doutrina da
Igreja.
Esta prudência não é ociosa pretensão. Nas epístolas de S. Paulo são
frequentes as exortações aos fiéis que fujam aos falsos doutores, e é bem
conhecida a advertência aos Gálatas: “Se alguém vos anunciar um evangelho
diferente daquele que recebestes, seja anátema” (1, 9). Comenta o Ambrosiaster
estas exortações de S. Paulo, dizendo que o perigo apresentado pelos falsos
doutores consiste no fato que “costumam falaciosamente, como por imitação,
dizer coisas boas, e, entre estas, misturar coisas más, para que, mediante as
coisas boas que se aceitam, também passem as que são más; e como ambas procedem
de uma mesma pessoa, não se podem discernir umas das outras, e assim, pelo que
é legítimo, se recomenda o que é reprovável”[6].
Não se diga,
portanto, que a Igreja reprova esta prudência dos fiéis. O que a Igreja não
quer é que se julguem as intenções. Escrevendo contra os Modernistas, cuja
astuciosa falácia verberava com muita firmeza, Pio X abstém-se de pronunciar-se
sobre as intenções: “postas de lado as intenções de que só Deus é juiz”. As
intenções é que pertence a Deus julgá-las. Neste terreno, não podemos ir além
das suspeitas, atendendo à maneira usual de agir dos homens. Formar juízo definitivo
somente Deus pode fazer.
O que não impede
aos bons denunciar o mal “objetivo” constituído pela doutrina errônea; e assim,
caridosamente, armar os espíritos incautos contra qualquer emboscada
traiçoeira.
Às vezes, apela-se
para Bento XIV, na Constituição Sollicita ac provida, de 9 de julho
de 1753, onde o Papa, fixando as providências a respeito da proibição de
livros, recomenda que sejam eles lidos com atenção, por inteiro, pois pode
acontecer que “o que é obscuro em um trecho seja dito de modo mais claro em
outro”. É real. Mas o Papa não diz que se aprovem livros, onde haja erros
claramente expostos, ainda que nos mesmos se digam coisas certas e dignas de
aplausos. É mesmo assim que se entende a proibição “donec corrigatur”.
Há certos espíritos
que acreditam que as heresias começam já fora da Igreja, em luta franca contra
a verdade e a revelação. Puro engano. Não seriam heresias. Corroborando a
observação do Ambrosiaster leia-se esta página de Sardá y Salvany, publicista
espanhol do século passado:
“As heresias que estudamos hoje, no dilatado curso dos séculos que
medeiam entre a vinda de Jesus Cristo e os tempos em que vivemos,
apresentam-se-nos, à primeira vista, como pontos clara e definidamente
circunscritos a seu respectivo período histórico, podendo-se, segundo parece,
demarcar como a compasso o ponto onde começam e onde terminam, isto é, a linha
geométrica que separa estes pontos negros do restante do campo iluminado em que
se ostentam. Porém, esta apreciação, se bem advertimos, não passa de uma ilusão
da distância. Um estudo mais detido, que com a lente de uma boa crítica nos
acerque daquelas épocas, e ponha em verdadeiro contacto intelectual com elas,
nos permitirá observar que nunca em alguns desses períodos históricos aparecem
assaz geometricamente definidos os limites que separam o erro da verdade — não
na realidade dela, porque esta, claramente formulada, a dá a definição da
Igreja, mas na sua apreensão e profissão externa, isto é, no modo por que a
respectiva geração se houve para negá-la ou professá-la com mais ou menos
franqueza. O erro na sociedade é como uma feia nódoa numa tela de primoroso
tecido. Vê-se claramente, mas custa precisar-lhe os limites; são vagas suas
fronteiras como os crepúsculos que separam o dia que finda, da noite que se
avizinha, e por sua vez, a noite que passa, do dia que renasce. Precedem o
erro, que é negra sombra, seguem-no e rodeiam-no umas como vagas penumbras, que
podem tomar-se às vezes pela mesma sombra, iluminada todavia por um outro
reflexo de luz moribunda; ou pela mesma luz, empanada e obscurecida já pelas
primeiras sombras. Assim, todo o erro claramente formulado na sociedade cristã
teve em volta de si outra como atmosfera do mesmo erro, porém menos denso e
mais tênue e moderado”[7].
O pior mal não
causam propriamente os hereges, e sim os semi-hereges. Aqueles são lançados
fora da Igreja, como membros deteriorados que se amputam. Estes persistem em
permanecer dentro da Igreja e aí constituem “atmosfera do mesmo erro”, ou seja
um ambiente constante a tentar os fiéis que atenuem sua fé e se aproximem do
falso. Maior mal causou à Igreja o Semi-arianismo que o Arianismo; o
Semi-pelagianismo que o Pelagianismo, e hoje não é tanto o Protestantismo que
nos preocupa como o Jansenismo, o semi-protestantismo que reponta no Silonismo,
no Americanismo, e em todas as correntes liberais.
Também não se creia que passou o tempo das heresias. O “oportet
hæreses esse” de S. Paulo é de todos os tempos. Por isso, merecem louvores
especiais aqueles que, como o Pe. Garrigou-Lagrange, ou o Pe. Sarda y Salvany,
se põem a estacada, expondo-se às iras mal dissimuladas dos inovadores[8], para alertar os incautos
contra aqueles infelizes que tomaram a si a tarefa inglória de realizar a
profecia do Apóstolo.
Terminemos com duas observações de Belloc[9] que mostram a importância
e atualidade que tem na Igreja o papel desempenhado pelos apologetas. Não é
apenas — se é isto que se pode chamar “apenas” — a manifestação viva de seu
amor por Jesus Cristo, que não sofre uma deturpação de sua doutrina. Não é
apenas uma atitude intelectual restrita a uma parte da Economia da graça, o
Dogma; — diriam a menos importante, tal o conceito superior que geralmente têm
da Moral aqueles que separam estes dois campos. Não. A heresia, como o dogma,
interessa a vida inteira do indivíduo. O homem realiza sua idéia, e conforme
seu pensamento, assim será toda a estrutura de sua atividade. O que quer dizer
que tanto o dogma, como a heresia podem determinar uma civilização, ou uma
espiritualidade.
“Se recordamos o
simples fato de que um estado — adverte Belloc — uma comunidade humana, ou uma
cultura geral tem que se inspirar em algum corpo de normas morais, e que não
pode haver corpo de normas morais sem doutrina, e se conviermos em chamar
religião a todo corpo consistente de normas morais e de doutrina, então a
importância da heresia como tema será clara, porque heresia não significa senão
“a proposição de novidades em religião mediante a exceção, do que fora a
religião aceita, de um ou outro ponto, sua negação ou substituição por outra doutrina
até então desconhecida”. Um exemplo: “Um homem que crê que o Arianismo é só
questão de palavras, não adverte que o mundo ariano teria sido muito mais
parecido ao mundo maometano, do que o veio a ser na realidade o mundo europeu.
Esse homem está muito menos em contacto com a realidade do que Atanásio ao
afirmar que a orientação doutrinária era de capital importância. Esse Concílio
de Paris que inclinou a balança em favor da tradição trinitária teve tanto
efeito como uma batalha decisiva, e não compreendê-lo é ser um pobre
historiador’.
Outra observação de
Belloc refere-se à atualidade da heresia. “Vivemos hoje, diz o publicista
inglês, sob um regime de heresia, que só se distingue dos períodos anteriores,
porque o espírito herético se generalizou e se apresenta em variadas formas”. O
espírito herético é bem o que caracterizamos como a semi-heresia, que não é uma
apostasia declarada, mas uma deturpação da mentalidade católica num sentido
heretizante.
Apresentando sua
obra sobre as Grandes Heresias, termina Belloc com esta advertência, que cremos
confirmada pelo que verificamos através dos artigos do Pe. Garrigou-Lagrange.
Com ela encerremos estas notas, que, parece-nos, tem nela sua explicação.
“Como se verá, falo
do “ataque moderno” porque, para falar de uma coisa, é mister dar-lhe um nome.
Porém, a maré montante que ameaça cobrir-nos é tão difusa que cada um deve
dar-lhe seu próprio nome: até hoje não possui nome comum. Isto acontecerá
talvez, não porém antes que o conflito entre o moderno espírito anticristão e a
permanente tradição da Fé se torne agudo, mediante a perseguição, o triunfo ou
a derrota. Então quiçá se chame Anticristo”.
[1] Surnaturel, 1946, p. 254
(pág. 132).
[2] As proposições condenadas
que vêm mais ao caso são as nn. 17, 21, 23, 24, 26, 34 (Denz. 1017, 1021, 1023,
1024, 1026, 1034). O livro do Pe. Lubac mereceu uma nota elogiosa de Jules
Lebreton (Recherches de Science Religieuses, 1947, p. 77). É um livro mais de
investigação histórica do que de exposição escolástica. Este mesmo fato deveria
levá-lo a uma melhor observação de S. Tomás. Infelizmente é difícil a pessoa na
exposição de doutrinas alheias não se deixar levar pelas ideias que admite. Na
questão livre entre os teólogos católicos a respeito da aspiração da alma a um
conhecimento imediato da Causa Primeira, que viria a ser um conhecimento
intuitivo de Deus, e, em concreto, a visão facial, é o Padre Lubac partidário
da sentença afirmativa. Eis o que o leva ao cochilo na apresentação do
pensamento de S. Tomás. Qualquer que seja o valor da obra de Lubac, a
observação do Pe. Garrigou-Lagrange é pertinente.
[3] 6ª edição, Roma, 1922,
págs. 55-56.
[4] “Nam exploratum est, inter
haereticarum factionum duces, non defuisse qui palam profiterentur, sublata
semel e medio doctrina Thomae Aquinatis, se facile posse “cum omnibus”
catholicis doctoribus “subire certamen et vincere et Ecclesiam dissipare.”
(Beza-Bucerus). — “Inanis quidem spes, sed testimonium non inane.” (Leão XIII,
AEterni Patris).
[5] É interessante observar
uma identidade de pensamento e método entre os novos teólogos e os que
escritores, como Jules Romains, atribuem a certas sociedades secretas: “Je vous
dit, reprit Lengnau (o mestre que iniciava o estudante nos segredos da Loja):
même sur le plan mystique. J’insiste: l’Unité en question va plus loin que
l’organisation politique, matérielle, même rationelle du genre humain… elle la
depasse, la transcende, et du même coup la traîne derrière elle
comme un pêcheur traîne son filet… Une foule d’idées traversait précipitamment
l’espirit de Jerphanion. Il pensait à Auguste Comte, et au Grand Etre, à tel
passage de Hegel, à telle effusion de Renan, à certains hymnes mystérieux de
Hugo… “Il a raison de dire que quelque chose rejoint ces hommes-là.
Un certain même avènement a été désiré, annoncé par eux, par d’autres encore. Il y a une tradition de prophéties…” (Recherche d’une Eglise, Flammarion,
Paris, pp. 298/9.). — Os grifos são nossos.
[6] In Ep. ad Thes. Iam. c. V, apud Corn. a
Lápide, in Ioan. Iam. V. 1.
[7] El liberalismo es
pecado, cap. VIII. In “Propaganda Católica”, t. VI, pp. 30 ss. Barcelona,
1887).
[8] Sardá y Salvany foi mesmo
acusado perante a Santa Sé, o que lhe valeu uma preciosa aprovação especial da
Sagrada Congregação do Índice em 10 de Janeiro de 1887.
[9] The Great Heresies,
trad. Esp. De “La Espiga de Oro”, Buenos Aires, 1943, pags. 15-18.
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