Carta Apostólica
In Supremo
Sobre a condenação
da escravidão dos indígenas
e do comércio dos
negros
1. Elevados à
suprema dignidade do apostolado e representando, ainda que sem nenhum mérito, a
pessoa de Jesus Cristo Filho de Deus, que por sua desmedida caridade se fez
homem e se dignou morrer pela redenção do mundo, sentimos que pertence à nossa
solicitude pastoral esforçar-nos para dissuadir completamente os fiéis do
desumano mercado dos negros e de quaisquer outros homens.
2. Em verdade,
desde quando o evangelho começou a se difundir, começou a ficar mais aliviada
junto aos cristãos a condição daqueles míseros, então muito numerosos, que
tinham caído em duríssima escravidão, especialmente na ocasião de guerras. Os
apóstolos, inspirados pelo Espírito de Deus, ensinavam os escravos a obedecer
aos patrões carnais como a Cristo, e a cumprir com satisfação a vontade de
Deus, mas impunham aos senhores que agissem humanamente com os escravos para
dar-lhes o que era justo e equânime, e não exercessem ameaças, sabendo que nos
céus há um Senhor comum destes e daqueles, e que para Deus não há distinção de
pessoas (Ef 6,5ss; Cl 3,22ss; 4,1). Como era anunciada universalmente uma
sincera caridade em relação a todos como lei evangélica, uma vez que Cristo
Senhor havia declarado que retinha feito ou negado a si aquilo que de bom e
misericordioso houvesse sido feito ou negado aos mais pequeninos e aos
indigentes (Mt 25,35ss), derivou facilmente que os cristãos não apenas
considerassem como irmãos os seus escravos, especialmente se eles fossem
cristãos (1), mas muitos eram também orientados a conceder a liberdade àqueles
que a mereciam - o que era costume fazer-se especialmente por ocasião das
solenidades pascais, como lembra Gregório Nisseno (2). Não faltaram os que,
animados de caridade mais ardorosa, "entregaram-se espontaneamente à
escravidão para redimir os outros". Nosso predecessor, Clemente I, homem
apostólico de santíssima memória, atesta ter conhecido muitos desses (3).
Portanto, com o transcorrer do tempo, tendo-se dissipado o nevoeiro das bárbaras
superstições, e tendo-se mitigado os costumes também dos povos mais selvagens
sob o influxo da caridade, chegou-se ao ponto que, há vários séculos, não mais
existiam escravos em meio aos povos cristãos. Mas depois, e o dizemos com
imensa dor, apareceram entre os cristãos alguns que, cegados de modo torpe pela
cobiça do ganho sujo, em distantes e inacessíveis regiões, reduziram indígenas,
negros e outros míseros à escravidão. Com comércio cada vez mais organizado,
daqueles que tinham sido capturados por outros, não hesitaram em favorecer o
indigno delito destes.
3. Numerosos
pontífices romanos de venerando memória, nossos predecessores, como imperiosa
obra de seu ministério, nunca deixaram de repreender com firmeza tal
comportamento, contrário à salvação espiritual de quem o cumpre e ultrajante
para o nome cristão, prevendo que os povos infiéis se tornariam sempre mais
revoltados contra a nossa verdadeira religião. Confirmam-no a carta apostólica
de Paulo III, datada de 29 de maio de 1537, sob o anel do pescador, endereçada
ao cardeal arcebispo de Toledo, e outra mais extensa de Urbano VIII, datada de
22 de abril de 1639 ao procurador da Câmara apostólica de Portugal. Nesta carta
são condenados severissimamente todos os que ousam ou intentam "reduzir à
escravidão os indígenas ocidentais ou meridionais, vendê-los, comprá-los,
trocá-los ou doá-los, separá-los das esposas e filhos, retirar-lhes os bens,
transportá-los de um lugar para outro, privá-los por qualquer meio da
liberdade, mantê-los escravos, favorecer os que praticam tudo isso através do
conselho, ajuda e obra atuada sob qualquer pretexto ou nome, ou também afirmar
e pregar que tudo isso é lícito, ou cooperar de qualquer outro modo no que foi
dito" (4). Em seguida o Papa Bento XIV confirmou e renovou essas sanções
dos mencionados pontífices com nova carta aos bispos do Brasil e de outras
regiões, com a data de 20 de dezembro de 1741, pela qual estimulou a tal fim a
solicitude dos mencionados prelados (5). Ainda antes outro antigo predecessor,
Pio II, no tempo em que o domínio dos portugueses se estendia pela Guiné,
habitada por negros, com a data de 7 de outubro de 1462, enviou uma carta ao
bispo de Rubicon (Espanha) que estava se preparando para partir para lá.
Naquela carta não só foram concedidas ao bispo todas as oportunas faculdades
para exercitar com o maior êxito possível o seu ministério, mas naquela ocasião
também condenou severamente os cristãos que reduziam a escravos os neófitos
(6). Também no nosso tempo, Pio VII, movido pelo mesmo espírito de fé e de
caridade, empenhou-se com muito zelo junto a homens poderosos para que o
tráfico dos negros cessasse completamente entre os cristãos.
4. Essa atenção a
essas sanções dos nossos predecessores contribuíram muito, com a ajuda de Deus,
para que os indígenas e os outros acima mencionados fossem defendidos da
crueldade dos invasores e da cupidez dos mercadores cristãos, mas não o
suficiente para fazer com que esta Santa Sé pudesse alegrar-se do pleno sucesso
dos seus esforços a esse respeito, dado que o tráfico dos negros, ainda que
tenha diminuído notavelmente em muitas partes, todavia ainda é bastante
utilizado por numerosos cristãos. Por essa razão nós, querendo fazer
desaparecer o mencionado crime de todos os territórios cristãos, após madura
consideração, recorrendo também a conselho de nossos veneráveis irmãos cardeais
da santa Igreja de Roma, seguindo as pegadas de nossos predecessores, com a
nossa apostólica autoridade, admoestamos e esconjuramos energicamente no Senhor
todos os fiéis cristãos de qualquer condição que, doravante, ninguém ouse fazer
violência, desapropriar de seus bens ou reduzir seja quem for à condição de
escravo, ou prestar ajuda ou favorecer àqueles que cometem tal delito ou querem
exercitar o indigno comércio por meio do qual os negros são reduzidos a
escravos - como se não fossem seres humanos, mas pura e simplesmente animais,
sem nenhuma distinção, contra todos os direitos de justiça e humanidade -, são
comprados, vendidos e constrangidos a trabalhos duríssimos. Ademais, quem
propõe esperança de ganho aos primeiros traficantes de negros provoca também
revoltas e contínuas guerras nas suas regiões. Nós, julgando as mencionadas
ações indígenas do nome cristão, condenamo-las com nossa apostólica autoridade.
Proibimos e vetamos com a mesma autoridade a qualquer eclesiástico ou leigo defender
como lícito o tráfico dos negros, qualquer seja o escopo ou pretexto, e de
presumir ensinar outro modo, pública e privadamente, contra aquilo que com a
presente carta apostólica expressamos.
5. Para que esta
nossa carta chegue mais facilmente ao conhecimento de todos e ninguém possa
alegar ignorância, decretamos e ordenamos que essa seja tornada pública por
algum dos nossos cursores, como de costume, com a afixação nas portas da
basílica do primeiro dos apóstolos e da chancelaria apostólica, como também da
cúria geral de Montecitório e na praça Campo dei Fiori na Urbe, e de deixar
afixadas as cópias.
Roma, dado em Santa
Maria Maior, sob o anel do pescador, no dia 03 de dezembro de 1839, ano IX de
nosso pontificado.
PAPA GREGÓRIO XVI
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(1) Lactâncio, Divin. Institution
.1.V,c.16:Bibl. veterorum patrum, editado em Veneza por Gallandio, p. 318.
(2) De Ressurrect. Domini orat.III:
tom. III, p. 420, da ed. parisiense de 1638 das obras.
(3) Ad
Corinthios ep. I, c. 55, t. I da bibl. de Dalland, p. 35.
(4) Commissum
Nobis: Bullarium Romanum, t. 6, II, pp. 183-184.
(5) Immensa: CIC Fontes, 1 (n. 321),
p. 708s.
(6) Em Rinaldo nos Annalibus
ecclesiastici referentes ao ano 1462, n. 42.
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