Quem ama ardentemente alguma coisa
costuma trazer seu nome nos lábios e nela pensar noite e dia. Não se me
censure, pois, se pronuncio este terceiro panegírico da Mãe de meu Deus, como
oferenda em honra de sua partida. Isso não será favor para ela mas servirá a
mim mesmo e a vós, aqui presentes - divina e santa assembléia - como um manjar
salutar que, nesta noite sagrada, satisfaça nosso gosto espiritual. Estamos
sofrendo, como sabeis, de penúria de alimentos. Assim, improviso a refeição; se
não é suntuosa nem digna daquilo que no-Ia inspira, possa ao menos acalmar-nos
a fome. Sim, não é Maria que precisa de elogios, nós é que precisamos de sua
glória. Um ser glorificado, que glória pode receber ainda? A fonte da luz, como
será iluminada ainda?
É pois para nós mesmos que fazemos a coroa. "Vivo
eu, diz o Senhor, e glorificarei os que me glorificam" . (2Sm 2, 30)
O vinho agrada sem dúvida, é
deliciosa bebida, e o pão alimento nutritivo: um alegra, o outro fortifica o
coração do homem (Sl 104, 15). Mas que existe de mais suave do que a Mãe de meu
Deus? Ela cativou meu espírito, ela reina sobre minha palavra, dia e noite sua
imagem me é presente. Mãe do Verbo, dá-me de que falar! Filha de mãe estéril,
torna fecundas as almas estéreis! Eis aquela cuja festa celebramos hoje em sua
santa e divina Assunção.
Acorrei, pois, e subamos a
montanha mística. Ultrapassando as imagens da vida presente e da matéria,
penetrando na treva divina e incompreensível, ingressando na luz de Deus,
celebremos o seu infinito poder. Aquele que, de sua transcendência
super-essencial e imaterial, desceu ao seio virgíneo para ser concebido e se
encarnar, sem deixar o seio do Pai; aquele que através da Paixão marchou
voluntariamente para a morte, conquistando pela morte a imortalidade e voltando
ao Pai; como não pôde ele atrair ao Pai sua Mãe segundo a carne? como não
elevaria da terra ao céu aquela que fora um verdadeiro céu sobre a terra?
Hoje a escada espiritual e viva,
pela qual o Altíssimo desceu, se fez visível e conversou entre os homens (Baruc
3, 38), ei-la que sobe, pelos degraus da morte, da terra ao céu.
Hoje a mesa terrestre que, sem
núpcias, trouxera o pão celeste da vida e a brasa da divindade, foi levada da
terra aos céus, e para a Porta oriental, para a Porta de Deus, se ergueram as
portas do céu.
Hoje, da Jerusalém terrestre, a
Cidade viva de Deus foi conduzida à Jerusalém do alto; aquela que concebera
como seu primogênito e unigênito o Primogênito de te da criatura e o Unigênito
do Pai, vem habitar na Igreja das primícias (Hb 12, 23); a arca do Senhor, viva
e racional, é transportada ao repouso de seu Filho (Sl 132, 8).
As portas do paraíso se abrem
para acolher a terra portadora de Deus, onde germinou a árvore da vida eterna,
redentora da desobediência de Eva e da morte infligida a Adão. É o Cristo,
causa da vida universal, quem recebe a gruta escondida, a montanha não
trabalhada, donde se destacou, sem intervenção humana, a pedra que enche a terra.
Aquela que foi o leito nupcial
onde se deu a divina encarnação do Verbo, veio repousar em túmulo glorioso,
como em tálamo nupcial, para de lá se elevar até a câmara das núpcias celestes,
onde reina em plena luz com seu Filho e seu Deus, deixando-nos também como
lugar de núpcias seu túmulo sobre a terra. Lugar de núpcias, esse túmulo? Sim,
e o mais esplendoroso de todos, a refulgir não por revérberos de ouro, de prata
ou de gemas, porém pela divina luz, irradiação de Espírito Santo. Proporciona,
não uma união conjugal aos esposes da terra, mas a vida santa às almas que se
prendem pelos laços do Espírito, proporciona uma condição junto de Deus, melhor
e mais suave que outra qualquer.
Seu túmulo é mais gracioso do que
o Éden: neste, sem querermos repetir tudo o que lá se passou, houve a sedução
do inimigo, sua mentira apresentada como conselho amigo, a fraqueza de Eva, sua
credulidade, o engodo - doce e amargo - ao qual seu espírito se deixou prender
e pelo qual em seguida aliciou o marido; a desobediência, a expulsão, a morte,
mas - para não trazermos com tais lembranças assunto de tristeza à nossa festa
- houve o túmulo que elevou ao céu o corpo de um mortal, ao contrário daquele
primeiro jardim, que derrubou do céu nosso primeiro pai. Pois não foi ali que o
homem, feito à imagem divina, ouviu a sentença: "tu és terra e em terra te
hás de tornar"? (Gn 3, 19)
O túmulo de Maria, mais precioso
que o antigo tabernáculo, encerrou o candelabro espiritual e vivo, brilhante de
divina luz, a mesa portadora de vida, que recebeu, não os pães da proposição,
mas o pão celeste, não o fogo material mas o fogo imaterial da divindade.
Esse túmulo é mais feliz que a
arca mosaica, pois teve por partilha a verdade, já não as sombras e as figuras;
acolheu a urna áurea do maná celeste, a mesa viva do Verbo encarnado por obra
do Espírito Santo, dedo onipotente de Deus, Verbo subsistente; acolheu o altar
dos perfumes, a brasa divina que aromatizou toda a Criação.
Fujam portanto os demônios, gemam
os míseros nestorianos - como outrora os egípcios - com seu chefe, o novo
faraó, o cruel flagelo, o tirano, pois foram engolidos pelo abismo da
blasfêmia. Nós, porém, salvos, que atravessamos a pé enxuto o mar da impiedade,
cantemos à Mãe de Deus o canto do Êxodo. Miriam, que é a Igreja, tome nas mãos
o tamborim e entoe o hino de festa; saiam as jovens do Israel espiritual com
tamborins e coros (Ex 15, 20), exultando de alegria! Que os reis da terra, os
juízes e os príncipes, os jovens e as virgens, os velhos e as crianças,
celebrem a Mãe de Deus! Que reuniões e discursos de toda espécie, raças e povos
na diversidade de suas línguas, componham um cântico novo! Que o ar ressoe de
flautas e trombetas espirituais, inaugurando com brilho de fogos o dia da
salvação! Alegrai-vos, ó céus, e vós, nuvens, fazei chover a alegria! Saltai,
novilhos do rebanho eleito, apóstolos divinos que, como montanhas altas e
sublimes, aspirais às mais altas contemplações; e vós, também, ó cordeiros de
Deus, povo santo, filhos da Igreja, que pelo desejo vos alçais como colinas até
as altas montanhas!
Mas então? Morreu a fonte da
vida, a Mãe de meu Senhor? Sim, era preciso que o ser formado da terra à terra
voltasse, para dali subir ao céu, recebendo o dom da vida perfeita e pura a
partir da terra, após ter-lhe entregue seu corpo. Era preciso que, como o ouro
no crisol, a carne rejeitasse o peso da mortalidade e se tornasse, pela morte,
incorruptível, pura, e assim ressuscitasse do túmulo.
Começa hoje para Maria uma
segunda existência, recebida daquele que a fez nascer para a primeira, como
também ela mesma dera uma segunda existência - a vida corpórea - àquele, cuja
primeira existência, a eterna, não teve começo no tempo, embora principiada no
Pai como em sua divina causa.
Alegra-te, Sião, montanha divina
e santa, onde habitou a outra montanha divina, a montanha vivente, a nova
Betel, ungida na pedra, a natureza humana ungida pela divindade. De ti, como de
um jardim de oliveiras, e Filho se elevou às celestes alturas. Que uma nuvem se
componha, universal e cósmica, e que as asas dos ventos tragam os apóstolos dos
confins da terra até Sião!1 Quem são aqueles que, como nuvens e águias, voam
para o corpo - fonte de toda ressurreição, a fim de cultuar a Mãe de Deus? Quem
é a que sobe, na flor de sua alvura, toda bela, brilhante como o sol? Que
cantem as cítaras do Espírito, isto é, as línguas dos apóstolos! Que ressoem os
címbalos, isto é, os arautos eminentes da palavra de Deus! Que esse vaso de
eleição, Hieroteu 2, santificado pelo Espírito Santo e pela união divina
capacitado a sofrer as realidades divinas, seja arrebatado do corpo, e em
transportes de fervor entoe seus hinos! Que todas as nações aplaudam e celebrem
a Mãe de Deus! Que os anjos prestem culto ao corpo mortal!
Filhas de Jerusalém, feitas
cortejo da Rainha, e virgens suas companheiras, ide com ela até o Esposo,
levai-a à direita do Senhor! Desce, ó Soberano, vem pagar à tua Mãe a dívida
que ela merece por te haver nutrido! Abre tuas mãos divinas e acolhe a alma de
tua mãe, tu que sobre a cruz entregaste o espírito às mãos do Pai! Dirige-lhe
um suave apelo: vem, ó formosa, ó bem-amada, mais resplandecente pela
virgindade do que o sol, tu me partilhaste teus bens, vem agora gozar junto de
mim o que te pertence!
Aproxima-te, ó Mãe, de teu Filhe,
aproxima-te e participa do poder régio daquele que, nascido de ti, contigo
viveu na pobreza! Ascende, ó Soberana, ascende! Já não vale a ordem dada a
Moisés: "Sobe e morre..." (Dn 31, 48) Morre, sim, mas eleva-te pela
própria morte!
Entrega tua alma às mãos de teu
Filho e devolve à terra o que é da terra, pois mesmo isso será carregado por
ti.
Erguei vossos olhos, Povo de
Deus, alçai vosso olhar! Eis em Sião a arca do Senhor Deus dos exércitos, à
qual vieram pessoalmente prestar assistência os apóstolos, tributando seu
derradeiro culto ao corpo que foi princípio de vida e receptáculo de Deus.
Imaterialmente e invisivelmente os anjos o cercam com respeito, como servidores
da Mãe de seu Senhor. O próprio Senhor lá está, onipresente, ele que tudo enche
e abraça, que na verdade não está em lugar algum porque nele tudo está como na
causa que tudo criou e tudo encerra.
Eis a Virgem, filha de Adão e Mãe
de Deus: por causa de Adão entrega seu corpo à terra, mas por causa de seu
Filho eleva a alma aos tabernáculos celestes! Santificada seja a Cidade santa,
que acolhe mais essa bênção eterna! Que os anjos precedam a passagem da divina
morada e preparem seu túmulo, que o fulgor do Espírito a decore! Preparai
aromas para embalsamar o corpo imaculado e repleto de delicioso perfume! Desça
uma onda pura a fim de haurir a bênção da fonte imaculada da bênção! Alegre-se
a terra de receber o corpo e exulte o espaço pela ascensão do espírito! Soprem
as brisas, suaves como o orvalho e cheias de graça! Que toda a criação celebre
a subida da Mãe de Deus: os grupos de jovens em sua alegria, a boca dos
oradores em seus panegíricos, o coração dos sábios em suas dissertações sobre
essa maravilha, os velhos de veneráveis cãs em suas contemplações. Que todas as
criaturas se associem nessa homenagem, que ainda assim não seria suficiente.
Todos, pois, deixemos em espírito este mundo com aquela que dele parte. Sim,
todos, pelo fervor do coração, desçamos com a que desce à sepultura e ali nos
coloquemos. Cantemos hinos sacros e nossas melodias se inspirem nas palavras:
"Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo!" Permanece na alegria, tu
que foste predestinada a ser Mãe de Deus. Permanece na alegria, tu que foste
eleita antes dos séculos por um desígnio de Deus, germe divino da terra,
habitação do fogo celeste, obra-prima do Espírito Santo, fonte de água viva,
paraíso da árvore da vida, ramo vivo que portas o divino fruto, donde fluem o
néctar e a ambrosia, rio de aromas do Espírito, terra produtora da divina
espiga, rosa resplandecente da virgindade, donde emana o perfume da graça,
lírio da veste real, ovelha que geras o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
mundo, instrumento de nossa salvação, superior às potências angélicas, serva e
Mãe!
Vinde, enfileiremo-nos em torno
ao túmulo imaculado para dali sorvermos a divina graça! Vinde, abracemos em
espírito o corpo virginal. Entremos no sepulcro e morramos nele, rejeitando as
paixões da carne, vivendo uma vida sem concupiscência e sem mácula. Escutemos os
hinos divinos, cantados imaterialmente pelos anjos. Entremos para adorar,
aprendamos a conhecer o mistério inaudito: como esse corpo foi elevado às
alturas, arrebatado ao céu, como a Virgem foi posta junto de seu Filho acima
dos coros angélicos, de sorte que nada se interpusesse entre Mãe e Filho.
Tal é, depois de outros dois, o
terceiro discurso que compus acerca de tua partida, ó Mãe de Deus, em honra e
amor da Trindade, cuja cooperadora foste, por benevolência do Pai e por virtude
do Espírito, quando recebeste o Verbo sem princípio, a Sabedoria onipotente, a
Força de Deus. Aceita, pois, minha boa vontade, maior do que minha capacidade,
e dá-me a salvação, a libertação das paixões da alma, o alívio das doenças dos
corpos, a salvação das dificuldades, a vida de paz, a luz do Espírito. Inflama
nosso amor por teu Filho, regula nossa conduta sobre o que lhe apraz, a fim de
que, na posse da bem-aventurança do alto, e vendo-te refulgir com a glória de
teu Filho, façamos ressoar hinos sagrados, na eterna alegria, na assembléia dos
que celebram, em festa digna do Espírito, aquele que por ti opera nossa
salvação, o Cristo Filho de Deus e nosso Deus, a quem pertence a glória e o
poder, com o Pai sem princípio e o Espírito Santo e vivificador, agora e sempre
pelos séculos. Amém.
NOTAS:
1 - O autor passa a aludir aqui a
tradição, segundo a qual Nossa Senhora, ao morrer em Jerusalém, teve à sua
volta os apóstolos.
2. O autor pensa em Hieroteu,
apresentado como mestre de Dionísio em seu livro "Os Nomes Divinos".
Gomes, Folch. "Antologia dos
Santos Padres". Ed. Paulinas, 1979.
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