Capítulo I - Introdução
Excelente
Autólico, há dias tivemos uma conversa, na qual tu me perguntaste qual era o
meu Deus. Expus brevemente minha religião e tu prestaste atenção ao meu
discurso. Despedindo-nos, fomos para casa na melhor amizade, embora no começo
me tenhas tratado com dureza. Sabes e lembras que consideravas loucura o nosso
discurso. Depois disso tu me convidas... Mesmo sendo novato na arte de falar,
quero também agora, através deste escrito, demonstrar-te de modo mais completo
a inutilidade do teu afã e a inanidade da religião que te retém; esclarecerei a
verdade através de algumas histórias do teu próprio grupo, as quais lês, mas
que talvez ainda não tenhas entendido.
Capítulo II - Os ilogismos do paganismo:
Idolatria
Com efeito,
parece-me ridículo que cortadores de pedra, oleiros, pintores e fundidores
modelem, pintem, esculpam, fundam e fabriquem deuses, os quais, enquanto estão
nas mãos dos artífices, não são de maneira alguma apreciados; contudo, quando
alguém os compra e os expõe no que chamam de templo ou em alguma casa, então
são adorados não somente por aqueles que os compraram, mas aqueles mesmos que
os fabricaram e venderam acorrem com grande fervor, com aparato de sacrificios
e libações para adorá-los, considerando-os deuses, sem levar em conta que
continuam sendo as mesmas coisas por eles fabricadas: pedra, bronze, madeira,
cor ou qualquer outro material. Algo parecido acontece convosco ao ler as
histórias e genealogias dos chamados deuses. Enquanto ledes seus nascimentos,
os considerais como homens; mas depois lhes dais nomes de deuses e lhes
prestais culto, sem perceber nem compreender que tais como lestes que nasceram,
tais de fato existiam.
Capítulo III - Os ilogismos do
paganismo: Antropomorfismo
Ao menos os deuses
antigos, se é certo que nasceram, podia-se ver que tinham uma longa
descendência. Agora, porém, como se pode mostrar a descendência dos deuses? Com
efeito, se antes geravam e nasciam, é evidente que agora também teriam que
nascer deuses gerados. Do contrário, ter-se-á que considerá-los bem fracos,
seja porque se tornaram velhos e por isso não geram, seja porque morreram e não
permanece nenhum rastro deles. De fato, se os deuses antes geravam, teriam que
gerar também agora, como vemos que os homens geram. Além disso, os deuses
teriam que ser mais numerosos do que os homens, como diz a Sibila: "Se os
deuses geram e continuam imortais, os deuses nascidos seriam em maior número
que os homens, e já não haveria lugar para os mortais ficarem".
Com efeito, se os
filhos gerados pelos homens, que são mortais e de vida curta, existem até o
presente e não cessam de nascer outros homens, e por isso as cidades e aldeias
se multiplicam e até os campos são habitados, quanto mais os deuses que,
segundo os poetas, não morrem, não deveriam gerar e nascer, de acordo com o que
dizeis a respeito do nascimento ou geração dos deuses?
Ainda mais: Como é
que o monte chamado Olimpo era antes habitado por deuses e agora se encontra
deserto? Por que antes Zeus morava no monte Ida, e se sabia que ele morava ali
através de Homero e outros poetas, e agora não se sabe onde anda? Como é que
não estava em toda parte, mas se encontrava em um ponto determinado da terra?
Ou ele não se interessava pelo resto, ou não era capaz de estar em toda parte e
prover tudo. Se ele estava, por exemplo, no Oriente, não estava no Ocidente. No
entanto, é próprio do Deus altíssimo e onipotente e verdadeiro Deus não só
estar em toda parte, mas também ver e ouvir tudo e não ser contido por nenhum
lugar. Do contrário, o lugar que o contivesse seria maior do que ele, pois o
continente é sempre maior do que o contido. De fato, Deus não é contido, mas é
o lugar de todas as coisas. Por que Zeus abandonou o Ida? Morreu ou não gostava
mais desse monte? Então para onde foi? Para os céus? Dejeito nenhum. Dir-me-ás que
foi para Creta? Sim, ali se mostra até hoje o seu sepulcro. Também podes dizer
que partiu para Pisa, onde até hoje é enaltecido pelas mãos de Fídias.
Passemos, porém, aos escritos dos filósofos e poetas.
Capítulo IV - As contradições dos
escritores profanos
Alguns do Pórtico,
ou estóicos, chegam a negar totalmente que Deus existe ou, se existe, afirmam
que Deus não se preocupa com ninguém, mas consigo mesmo. E nisso se manifesta
totalmente a insensatez de Epicuro e Crisipo. Outros dizem que todo o universo
se rege pelo acaso, que o mundo é incriado e a natureza é eterna, e até se
atreveram a dizer que não existe absolutamente providência de Deus, mas que o
único Deus é a consciência de cada dia. Outros estabelecem como dogma que Deus
é o espírito que penetra tudo. Quanto a Platão e sua escola, certamente
confessam que Deus é incriado e Pai e Criador do universo; em seguida, porém,
supõem que a matéria é incriada como Deus e que ela tem a mesma idade de Deus.
Mas se, conforme os platônicos, Deus é incriado e a matéria também o é, o
Criador de todas as coisas já não é Deus, nem, seguindo-os, se percebe a
monarquia ou unicidade de Deus. Além disso, como Deus é imutável por ser
incriado, se também a matéria fosse incriada seria pelo mesmo motivo imutável e
parelha de Deus. Com efeito, o criado é variável e mutável; o incriado é
invariável e imutável. E o que de maravilhoso haveria se Deus tivesse feito o
mundo de matéria preexistente? Também um artífice humano, tomando uma matéria
qualquer, faz dela o que quer. Mas o poder de Deus se manifesta em fazer o que
quer do que não existe, de modo que ninguém, a não ser Deus, pode dar alma e
movimento. Um homem fabrica uma estátua, mas não pode infundir razão, alento ou
sentido ao que foi feito por ele. Deus, porém, tem sobre o homem a vantagem de
fazer um ser racional, com alento e sentido. Sendo Deus mais poderoso que o
homem nessas coisas, assim também o é em fazer do nada e ser criador de tudo o
que existe, quando ele quiser e como quiser.
Capítulo V - As contradições dos
escritores profanos (cont.)
Assim, a opinião
dos filósofos e escritores é contraditória. Tendo esses feito tais afirmações,
o poeta Homero vai por outro caminho para cantar-nos a origem não só do mundo,
mas também dos deuses. Ele diz em algum lugar: "Ao Oceano, origem dos
deuses, e à mãe Tétis, donde se originam os rios e todo ornar." Na
verdade, assim falando, ele não nos apresenta nenhum Deus, pois quem não sabe
que o oceano é água? Ora, se é água, conclui-se que não é Deus. E se Deus é o
criador do universo, como de fato o é, também é criador da água e dos mares.
Quanto a Hesíodo,
ele não só explicou a origem dos deuses, mas também do próprio mundo. Ele disse
que o mundo foi criado, mas não teve coragem de dizer por quem. Além disso,
disse que são deuses, Cronos e seu filho Zeus, Posêidon e Plutão, e vemos que
estes foram posteriores ao mundo. Conta-nos também como Cronos foi combatido
pelo seu próprio filho Zeus, pois diz o seguinte: "Vencendo seu pai Cronos
por sua própria força; de- pois, devidamente imortal, ordenou tudo e delimitou
as honras".
Depois continua
falando das filhas de Zeus, às quais chama de Musas e diante das quais se
apresenta como suplicante, querendo saber delas de que modo tiveram princípio
todas as coisas. Ele diz: "Salve, filhas de Zeus, dai-me o amável canto.
Celebrai a linhagem dos afortuna-dos imortais, os que existem para sempre, que
nasceram da terra, do céu estrelado, da noite tenebrosa e os que foram criados
pelo mar salgado. Dizei-me como primeiro nasceram os deuses, a terra, os rios e
o mar infinito, que ferve de ondas, os astros brilhantes, o céu estendido lá em
cima, como repartiram a opulência e distribuiram honras, e também como chegaram
a possuir o Olimpo de mil recantos. Dizei-me isso, Musas, que tendes as moradas
olímpicas desde o princípio, e dizei o que existiu primeiro."
Todavia, como as
Musas poderiam saber isso se são posteriores ao mundo? Como poderiam contar
isso a Hesíodo, se o pai delas ainda não havia nascido?
Capítulo VI - As contradições dos
escritores profanos (cont.)
De certo modo, ele
supõe a matéria e a criação do mundo, quando diz: "Primeiro existiu o Caos
e depois a terra de largo seio, assento firme para sempre de todos os imortais,
que ocupam os cumes do Olimpo nevado e o tenebroso Tártaro, seio da terra de
largos caminhos; e foi Eros, o mais belo dos deuses imortais, que afrouxa os
membros e vindo ao coração de todo ser, homem ou deus, domina a razão e o
discreto conselho. O Erebo e a Noite negra nasceram do Caos: a Terra gerou
primeiro aquilo que é semelhante a si, o Céu estrelado, para que ele lhe
servisse como cobertura, e fosse para sempre assento firme para os afortunados
deuses. Gerou as altas montanhas, graciosas moradas de deusas e das ninfas que
habitam pelos montes escarpados. Pariu também o Mar infecundo, que ferve de
ondas, o alto Mar, sem paixão amorosa; mas depois, em relação com o Céu, pariu
o Oceano de profundos turbilhões".
Dizendo tudo isso,
nem mesmo assim declarou por quem foram feitas as coisas. Com efeito, se antes
existia o caos e preexistia certa matéria incriada, quem foi que estabeleceu
esta e depois a ordenou e transformou? Teria sido, por acaso, a matéria, que se
transformou e ordenou a si mesma? De fato, Zeus aparece muito depois, não só da
matéria, mas do mundo e da multidão de homens, e o próprio Crono, seu pai. Ou
não foi antes algo principal que a criou, isto é, Deus que a pôs em ordem?
Além disso, vê que
Hesíodo diz apenas bobagens e contradiz a si próprio de mil maneiras. Com
efeito, tendo falado da terra, do céu e do mar, quer que deles nasçam os deuses
e destes nos anuncia alguns homens extraordinários, parentes dos deuses, a raça
dos titãs, dos ciclopes, a multidão dos gigantes e dos demônios egípcios, ou
homens vãos, mencionados por Apolônides, de sobrenome Horápio, no livro
intitulado Semenuthi e noutras histórias suas sobre a religião e seus reis.
Capítulo VII - As contradições dos
escritores profanos (cont.)
Que necessidade
tenho de falar dos mitos gregos e de sua futilidade? Plutão, rei das trevas;
Posêidon que se coloca sob o mar e se abraça com Melanipa, gerando um filho que
devora os homens! E o que dizer das tragédias que os vossos escritores
compuseram sobre os filhos de Zeus? Como nasceram homens e não deuses, eles nos
podem traçar sua genealogia. Ai está o cômico Aristófanes que na sua peça Os
pássaros, pondo-se a contar a criação do mundo, disse que no princípio nasceu
um ovo como composição única do mundo: "Antes de tudo, a de negras asas
pariu um ovo". E Sátira, historiador das famílias alexandrinas, começando
por Filopátor, chamado também Ptolomeu, afirma que este se originou de Dioniso,
e daí Ptolomeu deu o primeiro lugar à tribo dionisíaca. Sátira, portanto, diz o
seguinte: De Dioniso e Altéia, filha de Téstio, nasceu Dejanira; desta e
Héracles, filho de Zeus, nasceu Hilo; deste nasceu Cleodemo; deste nasceu
Aristômaco; deste nasceu Têmeno; deste nasceu Criso; deste nasceu Marão; deste
ansceu Téstio; deste nasceu Acoos; deste nasceu Cena; deste nasceu Tirimas;
deste nasceu Perdicas; deste nasceu Filipe; deste nasceu Aéropo; deste nasceu
Alceta; deste nasceu Amintas; deste nasceu Bocro; deste nasceu Meleagro; deste
nasceu Arsinoe; desta e de Lagos nasceu Ptolomeu Soter; deste e de Berenice
nasceu Ptolomeu Filadelfo; deste e de Arsinoe nasceu Ptolomeu Evergetes; deste
e de Berenice, filha de Magas, rei de Cirine, nasceu Ptolomeu Filopátor. Esse
é, portanto, o parentesco entre Dioniso e os reis de Alexandria. Daí também a
tribo dionisíaca toma a sua divisão em famílias: a Altaida, de Altéia, que foi
mulher de Dioniso e filha de Téstio; a Dejanírida, da filha de Dioniso e
Altéia, mulher de Héracles, de onde recebem também seus nomes as famílias que
deles descendem; a Ariádnida, da filha de Minos, mulher de Dioniso, filha
enamorada de seu pai, que se uniu com Dioniso, este sob a forma de marinheiro;
a Téstida, de Téstio, o pai de Altéia; a Toântida, de Toante, filho de Dioniso;
a Estafília, de Estáfilo, filho de Dioniso; a Evênida, de Eunoo, filho de
Dioniso; a Marônida, de Marão, filho de Ariadne e Dioniso. Todos esses foram
filhos de Dioniso. Existem ainda muitas outras denominações que se conservam
até o presente: os Heráclidas, de Héracles; os Apolônidas, de ApoIo; os
Poseidônidas, de Posêidon; os Diones e Diógenes, de Zeus.
Capítulo VIII - As contradições dos
escritores profanos (cont.)
Para que
prosseguir enumerando a multidão dessas denominações e genealogias? Concluindo,
todos os chamados historiadores, poetas e filósofos se enganam de todos os
modos, e o mesmo acontece com aqueles que lhes dão atenção. Com efeito,
escreveram apenas contos, ou melhor, tolices sobre seus deuses. Não
demonstraram que são deuses, mas homens, alguns bêbados, outros dissolutos e
assassinos.
Da mesma forma, o
que disseram sobre a origem do mundo é contraditório e sem valor. Em primeiro
lugar, alguns afirmaram que o mundo é incriado, corno antes notamos, e os que
disseram que o mundo é incriado e que a natureza é eterna estão em contradição
com aqueles que têm por dogma a criação. Com efeito, falaram tudo isso por
conjecturas e imaginação humana, e não conforme a verdade. Uns disseram que
existe providência e outros lançaram por terra as doutrinas destes. Arato, por
exemplo, diz: "Comecemos por Zeus, a quem nós, homens, jamais devemos
deixar sem nomear, pois todas as ruas estão cheias de Zeus e também todas as
praças dos homens, e cheios estão o mar e os portos; em todo lugar nos valemos
todos de Zeus. E somos da sua mesma raça. Ele é benigno para com os homens, com
augúrios favoráveis, e desperta as pessoas para o trabalho, recordando-lhes a
vida. Ele nos diz quando a terra é melhor para os bois e para as enxadas;
diz-nos qual é a melhor estação, seja para recolher feixes, seja para lançar
toda semente."
Em quem vamos
crer? Em Arato ou em Sóflocles, que diz: "Não existe em nada providência
clara; o melhor é viver ao acaso, cada um corno puder." Homero, porém, não
concorda com este, pois diz: "Zeus aumenta ou diminui o valor dos
homens". E Simônides: "Ninguém recebeu valor sem os deuses, nenhuma
cidade, nenhum mortal; Deus é a inteligência universal, enquanto nada está sem
defeito nos mortais". O mesmo diz Eurípides: "Sem Deus não existe
nada para os homens". E Menandro: "Além de Deus, ninguém cuida de
nós". E de novo Eurípides: "Quando agrada a Deus salvar-nos, ele nos
dá muitas ocasiões de salvação." E Téstio: "Se Deus quer, tu te
salvarás, mesmo que navegues sobre uma esteira".
Com sentenças
infinitas não como essas, eles não concordam em suas declarações. Sófocles, que
em outra passagem fala contra a providência, agora diz: "O mortal não pode
se esquivar dos golpes divinos". De outro lado, algumas vezes apresentam
uma multidão de deuses, outras falam do poder de um só; os que afirmam que
existe providência são contraditos por aqueles que afirmam a improvidência. E
daí Eurípides confessa: "Nós nos afanamos em muitas coisas por causa de
nossas esperanças trabahando em vão, sem nada saber ao certo".
Mesmo sem querer,
eles confessam que não conhecem a verdade. São os demônios que os inspiram, que
os fazem dizer o que lhes inspiram. Os poetas, como Homero e Hesíodo, não são,
como dizem, inspirados pelas musas, para fazer palavreados, conforme as
divagações da imaginação? Aí não há um espírito puro, mas enganador. Prova
clara disso temos em que às vezes os endemoninhados, e há casos até hoje,
conjurados em nome do Deus verdadeiro, confessaram que os espíritos do erro são
demônios, os mesmos que agiram em outros tempos sobre os poetas. Algumas vezes,
porém, certos poetas tiveram a alma livre desses demônios e falaram coisas no
mesmo sentido que os profetas, a fim de que servissem de testemunho para eles e
para todos os homens a respeito do poder de um só Deus, do seu julgamento e do
resto que disseram.
Capítulo IX - Os autores sacros
Em troca, os
homens de Deus, que foram portadores de um espírito santo e profetas, recebendo
de Deus inspiração e sabedoria, tomaram-se discípulos de Deus, e santos e
justos. Por isso foram considerados dígnos de receber a recompensa de se
converterem em instrumento de Deus e terem parte em sua sabedoria. É sob a influência
dessa sabedoria que falaram sobre a criação do mundo e sobre tudo o mais.
Também profetizaram sobre pestes, fomes e guerras. E os profetas não foram um
ou dois, mas muitos que, conforme as circunstâncias, se encontraram entre os
hebreus, como também entre os gregos a Sibila, e todos disseram coisas que
concordam entre si, tanto sobre os acontecimentos anteriores a eles, como sobre
aqueles que sucederam depois e ainda os acontecimentos do seu tempo e os que se
realizam entre nós no presente. Também estamos persuadidos de que assim
acontecerá com as coisas que estão por vir do mesmo modo que se realizaram
antes.
Capítulo X - Ensinamento dos autores
sacros sobre cosmologia
Em primeiro lugar,
eles estão de acordo em nos ensinar que do nada Deus tirou todas as coisas. Com
efeito, nada foi coetâneo com Deus: ele próprio é o seu lugar, não conhece a
necessidade e é anterior a todas as coisas. Mas ele quis criar o homem, que o conheceu.
Finalmente, foi para o homem que ele preparou o mundo, pois aquele que é criado
tem necessidades; mas o incriado de nada necessita.
Tendo Deus o seu
Verbo imanente em suas próprias entranhas, gerou-o com a sua própria sabedoria,
emitindo-o antes de todas as coisas. Teve este Verbo como ministro da sua
criação e por meio dele fez todas as coisas. Este se chama Princípio, pois é
Príncipe e Senhor de todas as coisas por ele feitas. Este, portanto, que é
espírito de Deus e Princípio e Sabedoria e Força do Altíssimo, desceu sobre os
profetas, e por meio deles falou sobre a criação do mundo e tudo o mais. De
fato, não existiam profetas quando o mundo era feito; existia, porém, a
sabedoria que nele estava, e o seu Verbo santo, que sempre estava presente a ele.
Daí ele dizer por meio do profeta Salomão: "Quando ele preparava o céu, eu
estava com ele, e quando ele afirmava os alicerces da terra, eu estava junto
dele, harmonizando tudo".
Moisés, que viveu
muitos anos antes de Salomão, ou melhor, o Verbo de Deus, que se serve dele
como instrumento, diz: "No princípio fez Deus o céu e a terra". Suas
primeiras palavras são para o princípio e a criação, e depois acrescenta o nome
de Deus, porque não se deve tomar o nome de Deus em vão ou sem motivo. A sabedoria
divina sabia antecipadamente que alguns iriam dizer tolices e dar o nome de
Deus a muitas coisas que não têm ser. Portanto, para que o verdadeiro Deus
fosse conhecido por suas obras e para que se saiba que em seu Verbo Deus fez o
céu e a terra e tudo o que eles contêm, disse: "No princípio fez Deus o
céu e a terra". Depois, a respeito da sua criação, ele nos explica:
"A terra era invisível e informe, as trevas estavam sobre o abismo, e um
espírito de Deus pairava acima da água".
É assim que se
inicia o ensinamento da Escritura divina: como foi criada e nascida de Deus uma
matéria, com a qual Deus fez e formou o mundo.
Capítulo XI - Ensinamento dos autores
sacros sobre cosmologia (cont.)
O começo da
criação foi a luz, porque é ela que manifesta o ornamento da criação. Por isso
diz: "E disse Deus: 'Haja luz', e a luz se fez. E Deus viu que a luz era
boa". -Evidentemente, foi criada como coisa boa para o homem.
-"Colocou uma separação entre a luz e as trevas, e Deus chamou a luz dia e
as trevas chamou noite. Houve uma tarde e houve uma manhã: um dia. E disse
Deus: 'Haja um firmamento no meio da água e separe entre água e água. E assim
se fez. E fez Deus o firmamento e colocou uma separação entre a água que estava
por cima do firmamento e a água que estava por baixo do firmamento. E Deus
chamou o firmamento céu. E Deus viu que era bom. Houve tarde e houve manhã:
segundo dia. E disse Deus: 'Reúna-se a água que está debaixo do céu numa só
reunião, e apareça a terra seca'. E assim se fez. A água se reuniu em suas
reuniões, e a terra seca apareceu. E chamou Deus a terra seca terra e as
reuniões de águas chamou mares. E Deus viu que era bom. E Deus disse: 'Que a
terra faça brotar toda erva verdejante, produzindo semente conforme a sua
espécie e semelhança, e árvores frutíferas que produzam frutos, que tragam em
si a sua semente conforme a sua semelhança'. E assim se fez. A terra produziu
erva verdejante que produz semente conforme a sua espécie, e árvores frutíferas
que produzem frutos, que trazem em si sua semente conforme a sua espécie, sobre
a terra. E Deus viu que era bom. Houve tarde e houve manhã: terceiro dia.
E disse Deus:
'Haja luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra e para separar o dia
e a noite, e servir como sinais para as estações, para os dias e para os anos,
e para iluminar no firmamento do céu e para brilhar sobre a terra'. E assim se
fez. E Deus fez os dois grandes luzeiros, o luzeiro maior para governar o dia,
e o luzeiro menor para governar a noite, e também as estrelas. E Deus os
colocou no firmamento do céu, para iluminar a terra e governar o dia e a noite,
e colocar uma separação entre a luz e as trevas. E Deus viu que era bom. Houve
tarde e houve manhã: quarto dia.
E disse Deus: 'Que
as águas produzam répteis de alma vivente e aves que voam sobre a terra debaixo
do firmamento do céu'. E assim se fez. E Deus fez os monstros grandes do mar, e
toda alma dos animais que se arrastam, que as águas produziram conforme suas espécies,
e todo volátil alado segundo a sua espécie. E Deus viu que era bom. E Deus os
abençoou, dizendo: 'Crescei e multiplicaivos e enche i as águas do mar, e que
as aves se multipliquem sobre a terra'. Houve tarde e houve manhã: quinto dia.
E disse Deus: 'Que
a terra produza alma vivente conforme a sua espécie, quadrúpedes e répteis e
feras da terra segundo a sua espécie'. E assim se fez. E Deus fez as feras da
terra conforme a sua espécie e os animais segundo a sua espécie, e todos os
répteis da terra. E Deus viu que era bom. E disse: 'Façamos o homem à nossa
imagem e semelhança, e que ele comande os peixes do mar, as aves do céu, os
animais domésticos, toda a terra e todos os répteis que rastejam sobre a
terra'. E Deus fez o homem, à imagem de Deus o fez, homem e mulher os fez. E os
abençoou, dizendo: 'Crescei e multiplicai-vos; enchei a terra e dominai-a,
ordenai aos peixes do amar, às aves do céu, a todos os animais, a toda a terra
e a todos os répteis que se arrastam sobre a terra'. E Deus disse: Vede! Eu vos
dei toda planta que traz semente, que espalha semente sobre toda a terra e toda
árvore que tem fruto com semente, para que vos sirvam de alimento, e a todos os
animais da terra, a todas as aves do céu e a todo réptil que se arrasta sobre a
terra, que tem em si alento de vida, toda erva verde para alimento'. E assim se
fez. E Deus viu tudo o que ele havia feito; e eis que isso era muito bom. Houve
uma tarde e uma manhã: sexto dia. E o céu e a terra foram terminados,
juntamente com todo o seu ornamento. E Deus terminou no sexto dia as obras que
fizera, e descansou no sétimo dia de todas as obras que fizera. E Deus abençoou
o sétimo dia e o santificou, porque nele descansou de todas as obras que Deus
começara afazer."
Capítulo XII - Cosmologia bíblica
Ninguém pode
explicar de modo digno a obra dos seis dias, nem traçar sua economia completa,
mesmo que tivesse mil bocas e mil línguas; mesmo que vivesse mil anos na
presente vida, nem assim seria capaz de dizer algo digno dela, por causa da
soberana grandeza e riqueza da sabedoria de Deus, que estão contidas nesta
descrição da obra de seis dias. Certamente muitos escritores a imitaram e
quiseram dar-lhe uma explicação; contudo, mesmo tomando esse ponto de partida,
eles não exprimiram senão uma centelha digna da verdade, seja a respeito do
mundo, seja sobre a natureza do homem. As explicações dos filósofos,
historiadores e poetas parecem dignas de crédito porque estão adornadas de bela
expressão; contudo, no fundo, vê-se que são néscias e vazias, pois contêm
apenas uma multidão de bobagens e nelas não é dito nem sequer uma sombra de
verdade. E se parece que dizem algo de verdadeiro, acha-se misturado com o
erro. Como um veneno mortal, ao qual se mistura mel, vinho ou qualquer outra
coisa, torna tudo prejudicial e inútil, assim também se percebe que a
verbosidade deles é pura inanidade, ou melhor, prejuízo para aqueles que nela
crêem.
Alguma coisa ainda
sobre o sétimo dia, sobre o qual todos os homens falam, mas cuja razão a maior
parte desconhece. De fato, o que os hebreus chamam de sábado significa em grego
sétimo dia, nome que todo o gênero humano lhe dá, sem saber, porém, por que
assim é chamado. O que o poeta Hesíodo diz, afirmando que do Caos nasceu o
Érebo, a Terra e o Amor, que domina, segundo ele, a todos, seja deuses, seja
homens, é dito de maneira vazia e fria e totalmente alheia à verdade. Com
efeito, Deus não deve se deixar vencer pelo prazer, quando até os homens
temperantes se abstêm de todo prazer vergonhoso e de todo mau desejo.
Capítulo XIII - Cosmologia bíblica
(cont.)
Além disso, ao
começar o relato da criação pelas coisas da terra, aqui de baixo, Hesíodo tem
pensamento puramente humano, baixo, fraco para ser aplicado a Deus. É o homem
que, sendo daqui de baixo, começa a construir pela terra, e logicamente não
pode pôr o telhado antes de ter assentado os alicerces. O poder de Deus, porém,
se manifesta antes de tudo em fazer as coisas do nada e depois fazer como
quiser. De fato, o que é impossível para os homens é possível para Deus. Por
isso, o profeta diz que antes foi criado o céu, que tem forma de teto, dizendo:
"No princípio, Deus fez o céu", isto é, que o céu foi feito pelo
Princípio, conforme dissemos antes. De certo modo, chama a terra de solo e
alicerce, e de abismo à imensidão das águas, e também de trevas, porque o céu,
criado por Deus, cobria como uma tampa tanto as águas como a terra. O espírito,
que se mantinha sobre a água, o qual Deus deu para animação da criação, como
deu a alma ao homem, misturando o sutil com o sutil- pois o espírito é sutil e
a água também o é -, para que o espírito alimente a água, e a água, com o
espírito, alimente a criação, penetrando-a por todas as partes. Esse único
espírito, ocupando o lugar da luz, se mantinha entre a água e o céu, a fim de
que, de certa maneira, as trevas não se comunicassem com o céu, que está mais
próximo de Deus, antes que Deus dissesse: "Faça-se a luz". Assim, o
céu, como uma abóbada, continha a matéria, semelhante a uma bola. Com efeito,
outro profeta, chamado Isaías, falando a respeito do céu, disse: "Este é o
Deus que fez o céu como uma abóbada e o estendeu como uma tenda para nele
habitar".
Assim, a ordenação
de Deus, isto é, seu Verbo, brilhando como uma lâmpada em casa fechada,
iluminou a terra subceleste por uma criação fora do mundo. E Deus chamou à luz
dia e à noite trevas, pois o homem certamente não teria sabido chamar à luz
dia, nem à noite trevas, como também não saberia dar nome às demais coisas, se
não tivessem recebido seus nomes de Deus, que as criou. No começo da história e
da criação, a Escritura santa não falou desse firmamento que vemos, e sim de
outro céu invisível para nós; só depois o nosso céu visível se chamou
firmamento. Nele está recolhida metade das águas, para fornecer à humanidade
chuvas, tempestades e orvalhos; a outra metade foi deixada na terra para os
rios, fontes e mares. Assim, quando a água ainda cobria a terra, principalmente
nos lugares baixos, Deus fez, através de seu Verbo, com que a água se reunisse
em um só lugar e que a parte seca se tornasse visível, pois no princípio era
invisível. A terra tornada visível estava ainda informe. Deus lhe deu forma e a
adornou com toda espécie de ervas, sementes e plantas.
Capítulo XIV - Cosmologia bíblica
(cont.)
Além disso,
considera a diversidade que há nessas coisas, sua variada beleza e multidão, e
como, através deles, se nos manifesta a ressurreição, sendo prova daquela que
um dia se realizará em todos os homens. De fato, se refletes bem, quem não se
admirará que de uma semente minúscula de figo se forme uma figueira e que de
outras peque ninas sementes nasçam árvores enormes?
O mundo também nos
oferece semelhança com ornar. Assim como o mar teria secado há muito tempo por
causa de seu sal se não houvesse afluência dos rios e fontes que lhe fornecem
alimento, de modo semelhante o mundo, se não tivesse recebido a lei de Deus e
os profetas, que fazem correr para ele fontes de doçura, misericórdia e justiça
e mantêm o ensinamento dos santos mandamentos de Deus, também já teria perecido
por causa da maldade e do pecado que nele se multiplica. Do mesmo modo que no
mar existem ilhas habitáveis, com água e vegetação, enseadas e portos para
refúgio durante as tempestades, assim Deus deu ao mundo, em meio às tormentas e
ondas de pecados, os lugares de reunião, as chamadas igrejas santas, nas quais,
como nas ilhas de portos acolhedores, se encontramos ensinamentos da verdade,
nas quais se refugiam os que querem salvar-se, tornados amantes da verdade e
decididos a fugir da cólera e do julgamento de Deus. Há, porém, outras ilhas
rochosas, sem água nem vegetação, repletas de feras, inabitáveis, para dano dos
navegantes e náufragos, onde os navios atracam e perecem os que e elas descem;
do mesmo modo, há também doutrinas que extraviam, isto é, as das heresias, que
levam à perdição aqueles que aderem a elas. Porque não se guiam pelo Verbo da
verdade, mas à maneira dos piratas que, enchendo os navios, os atracam em
recifes para arruiná-las. Assim acontece com aqueles que se extraviam da
verdade, que acabam perecendo por causa do erro.
Capítulo XV - Cosmologia bíblica (cont.)
No quarto dia
foram criados os luzeiros. Deus, que sabe tudo de antemão, sabia as bobagens
queos vãos filósofos iriam dizer, com intenção de eliminar a Deus: que tudo
quanto nasce na terra se deve ao influxo dos elementos. Por isso, para que a
verdade ficasse clara, as plantas e as sementes foram criadas antes dos
elementos, pois o posterior não pode produzir o que é anterior.
Os luzeiros contêm
o exemplo e símbolo de um grande mistério, pois o sol é símbolo de Deus e a lua
o é do homem. Como o sol difere muito da lua em poder e glória, assim Deus é
muito diferente da humanidade; como o sol permanece sempre cheio e não diminui,
assim Deus permanece sempre perfeito, repleto de poder, inteligência,
sabedoria, imortalidade e de todos os bens. Em troca, a lua perece cada mês, e
de certo modo, morre, e é símbolo de como é o homem; depois torna a nascer e
cresce, para demonstrar a ressurreição futura.
Igualmente os três
dias que precedem a criação dos luzeiros são símbolo da Trindade, de Deus, de
seu Verbo e de sua Sabedoria. No quarto símbolo está o homem, que necessita de
luz. Assim temos: Deus, Verbo, Sabedoria, Homem. É também por isso que os
luzeiros foram criados no quarto dia.
Por outro lado, a
disposição dos astros representa a economia e a ordem dos justos e piedosos,
que guardam a lei e os mandamentos de Deus. Com efeito, os astros mais visíveis
e brilhantes representam os profetas; por isso permanecem fixos, não mudando de
um lugar para outro. Aqueles que ocupam o segundo grau de brilho são tipo do
povo dos justos; por fim, os que mudam e passam de um lugar para outro, os
chamados planetas, são símbolo dos homens que se afastam de Deus, abandonando
sua lei e seus mandamentos.
Capítulo XVI - Cosmologia bíblica (cont.)
No quinto dia
foram criados os animais que procedem das águas, pelas quais e nas quais se
mostra a multiforme sabedoria de Deus. De fato, quem seria capaz de enumerar
sua quantidade e a variedade de suas variadíssimas espécies? Além disso, o que
foi criado das águas por Deus foi abençoado por ele, para que isso servisse de
prova sobre o que os homens deveriam receber: penitência e remissão dos pecados
através da água e banho de regeneração, todos os que se aproximam da verdade,
renascem e recebem a bênção de Deus.
Os monstros
marinhos e as aves carnívoras são símbolo dos avarentos e transgressores. De
fato os animais aquáticos e aves, embora sendo de uma única natureza, alguns
permanecem no que é conforme a natureza, sem prejudicar aos mais fracos, guardam
a lei de Deus e se alimentam das sementes da terra; outros transgridem a lei de
Deus, comendo carne, e prejudicam os mais fracos. De modo semelhante, os
justos, guardando a lei de Deus, não mordem nem causam dano a ninguém, vivendo
santa ejustamente; mas os ladrões, assassinos e ateus assemelham-se aos
monstros marinhos, às feras e aves carnívoras, pois de certo modo engolem os
mais fracos.
Capítulo XVII - Cosmologia bíblica
(cont.)
No sexto dia, Deus
fez os quadrúpedes, as feras e os répteis da terra, mas não se fala da bênção
correspondente, guardando-a para o homem, que criaria no mesmo sexto dia.
Assim, os quadrúpedes e feras se tornaram tipo de alguns homens que desconhecem
a Deus, que são ímpios e não fazem penitência. De fato, os que se convertem de
suas iniqüidades e vivem justamente voam como aves em sua alma, sentindo as
coisas de cima e agradando à vontade de Deus; mas os que desconhecem a Deus e
vivem de modo ímpio são parecidos com essas aves, que tem asas e não podem
voar, nem subir até a altura da divindade. De modo semelhante, estes se chamam
homens, mas sentem o que é baixo e terreno, pois estão pesados por causa de
seus pecados. Quanto às feras, elas se chamam assim por causa da sua
ferocidade, não porque desde o princípio fossem más ou venenosas, pois nada do
que é mau foi criado por Deus desde o princípio; ao contrário, tudo era bom e
até muito bom, mas o pecado do homem as tornou más. Quando o homem se tornou
transgressor, elas também transgrediram. É como numa casa: se o senhor se comporta
bem, os domésticos não têm outro remédio a não ser comportar-se bem; contudo,
se o senhor peca, os servidores pecam junto com ele. Da mesma forma, quando o
homem, que é o senhor, pecou, também os animais, seus escravos, pecaram com
ele. Portanto, quando o homem voltar a viver conforme a natureza e não agir
mal, também os animais serão estabelecidos em sua mansidão original.
Capítulo XVIII - O ensinamento dos
autores sacros sobre antropologia
Quanto à criação
do homem, não há palavra humana que possa expressar a sua grandeza, ainda que a
narração da Escritura divina seja tão breve. Com efeito, o fato de que Deus
diga: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" dá, antes de
tudo, a entender a dignidade do homem. De fato, tendo Deus feito o universo por
sua palavra, considerou tudo como coisa acessória e julgou como obra eterna
digna de sua criação somente a criação do homem. Além disso, Deus se apresenta
como se precisasse de ajuda, pois diz: "Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança", mas não diz a ninguém essa palavra "Façamos", a não
ser a seu próprio Verbo e à sua Sabedoria.
Tendo feito o
homem e tendo-o abençoado para que se multiplicasse e enchesse a terra,
submeteu a ele todas as coisas para que o servisse, ordenou que desde o
princípio se alimentasse com os frutos da terra, sementes, ervas e árvores e
que os animais fossem seus comensais, os quais também deveriam comer todas as
sementes da terra.
Capítulo XIX - O ensinamento dos autores
sacros sobre antropologia (cont.)
19. Tendo Deus
terminado, no sexto dia, o céu, a terra, o mar e tudo o que nele existe, no
sétimo dia descansou de todas as obras que fizera. Em seguida, a divina
Escritura recapitula assim: "Este é o livro da origem do céu e da terra,
quando existiu o dia em que Deus fez o céu e a terra, toda verdura do campo
antes de nascer, toda erva do campo antes de brotar, pois Deus não havia feito
chover sobre a terra e não havia homem para cultivar a terra". Com essas
palavras nos dá a entender que, naquele tempo, toda a terra era rega da por uma
fonte divina e o homem não tinha necessidade de cultivá-Ia, pois, por
mandamento de Deus, ela brotava espontaneamente, a fim de que o homem não se
fatigasse trabalhando-a.
Para mostrar-nos a
formação do homem e para que não parecesse um problema insolúvel aos homens
Deus ter dito: "Façamos o homem" e não nos ter mostrado sua criação,
a Escritura nos ensina, dizendo: "E uma fonte subia da terra e regava toda
a face da terra, e Deus formou o homem do pó da terra, e lhe insuflou alento de
vida em seu rosto, e o homem foi feito alma vivente. É por isso que a alma é
chamada imortal. Depois de ter formado o homem, Deus escolheu um lugar pelas
bandas do Oriente, excelente por sua luz, iluminado por um ar mais brilhante,
adornado com as mais belas plantas, e aí Deus colocou o homem.
Capítulo XX - Descrição do paraíso /
Criação da mulher
Este é o relato da
história sagrada, conforme a Escritura: "Deus plantou um jardim no Éden,
no Oriente, e aí colocou o homem que formara. E Deus fez brotar da terra toda
árvore formosa à vista e saborosa ao paladar, e a árvore da vida no meio do
paraíso, e a árvore da ciência do bem e do mal. Do Éden saía um rio para regar
o jardim e a partir daí se dividia em quatro braços. Um se chamava Fison e é
este aquele que rodeia toda a terra de Hévila, onde existe o ouro. O ouro dessa
terra é bom, e aí também se encontra o carvão e a pedra ônix. O segundo rio se
chama Geon e é aquele que rodeia toda a terra da Etiópia. O terceiro rio é o
Tigre, que corre diante dos assírios. O quarto rio é o Eufrates. E o Senhor
Deus tomou o homem a quem formara e o colocou no jardim para que o cultivasse:
'Comerás de toda árvore do jardim, mas não comerás da árvore da ciência do bem
e do mal, pois no dia em que dela comerdes, morrereis de morte'. E o Senhor
Deus disse: 'Não é bom que o homem esteja só; façamos para ele uma ajuda que
lhe seja semelhante'. E Deus plasmou então da terra todas as feras do campo e
todas as aves do céu e as apascentou diante de Adão. O nome com que Adão chamou
a toda alma vivente, esse é o seu nome. E Adão pôs nomes em todos os animais,
em todas as aves do céu e em todas as feras do campo; mas não se achou para
Adão ajuda que lhe fosse semelhante. Então Deus fez cair sobre Adão um êxtase e
um sono profundo, tomou uma de suas costelas e preencheu de carne o lugar
vazio. E o Senhor Deus construiu a costela tirada de Adão em forma de mulher e
a apresentou a Adão. Adão disse: 'Isto sim é osso de meus ossos e carne de minha
carne; esta se chama mulher, porque foi tirada do homem. Por isso, o homem
abandonará seu pai e sua mãe, juntar-se-á com sua mulher e serão dois em uma só
carne'. E os dois, Adão e sua mulher, estavam nus e não se envergonhavam.
Capítulo XXI - Retomada de Gênesis sobre
a tentação e queda de Adão e Eva
A serpente, porém,
era a mais astuta de todas as feras sobre a terra que o Senhor Deus fizera. A
serpente disse à mulher: 'Como é que Deus disse: Não comas de toda árvore do
jardim?' A mulher disse à serpente: 'Nós comemos de toda árvore do jardim; mas
a respeito do fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos disse: Não
comais dele, nem o toqueis para que não morrais'. A serpente disse à mulher:
'Não morrereis de morte. É que Deus sabia que no dia em que dele comerdes
vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.' E a
mulher viu que a árvore era boa para comer, agradável aos olhos para ver e
preciosa para entender; então, tomando de seu fruto, comeu e deu também a seu
marido; eles comeram e os olhos de ambos se abriram, perceberam que estavam
nus, colheram folhas de figueira e fizeram cinturões para si. Então ouviram a
voz do Senhor Deus, que passeava no jardim depois do meio-dia, e Adão e sua
mulher se esconderam da face de Deus no meio da árvore do paraíso. O Senhor
Deus chamou Adão e lhe disse: 'Onde estás?' Adão respondeu: 'Ouvi tua voz no
jardim e temi, pois estava nu, e me escondi'. Deus disse: 'Quem te disse que
estavas nu, senão que comeste da única árvore que te mandei não comeres?' Adão
disse: 'A mulher que me destes, foi ela que me deu da árvore e eu comi'. Então
Deus disse à mulher: 'Por que fizeste isso?' A mulher respondeu: 'A serpente me
enganou e eu comi'. O Senhor Deus disse à serpente: 'Porque fizeste isso serás
maldita entre todas as feras da terra. Caminharás sobre teu peito e sobre teu
ventre, e comerás terra todos os dias de tua vida. Porei inimizade entre ti e a
mulher, entre a tua descendência e a descendência dela: ela esmagará a tua
cabeça e tu lhe morderás o calcanhar'. E disse à mulher: 'Multiplicarei muito
as tuas tristezas e o teu gemido; darás à luz a teus filhos na dor, estarás
voltada para teu marido e ele te dominará'. E disse a Adão: 'Porque ouviste a
voz de tua mulher e comeste da única árvore que te mandei não comer, a terra
será maldita em teus trabalhos, a cultivarás na tristeza todos os dias de tua
vida; ela produzirá espinhos e cardos para ti e comerás a erva do campo.
Comerás o teu pão com o suor do teu rosto até que voltes para a terra de onde
foste tirado, porque és terra e à terra retornarás". Esse é o relato da
santa Escritura sobre a história do homem e do jardim.
Capítulo XXII - Retomada de Gênesis
sobre a tentação e queda de Adão e Eva (cont.)
Agora me dirás:
"Tu dizes que Deus não deve estar circunscrito a nenhum lugar. Como agora
dizes que Deus passeava no jardim?" Ouve minha resposta. Deus, o Pai do
universo, é imenso e não está limitado a um lugar, pois não existe lugar para
seu descanso. O seu Verbo, porém, pelo qual ele fez todas as coisas, sendo sua
potência e sabedoria, tomando a figura do Pai e Senhor do universo, foi ele que
se apresentou no jardim em figura de Deus e conversava com Adão. De fato, a
própria divina Escritura nos ensina que Adão disse ter ouvido a sua voz. Que outra
coisa é essa voz senão o Verbo de Deus, que é também seu Filho? Filho não à
maneira como poetas e mitógrafos dizem que nascem filhos dos deuses por união
carnal, mas como a verdade explica que o Verbo de Deus está sempre imamente no
coração de Deus. Porque antes de criar alguma coisa, o tinha por conselheiro,
pois era sua mente e pensamento. E quando Deus quis fazer tudo o que havia
deliberado, gerou esse Verbo proferido, como primogênito de toda criação, não
esvaziando-se de seu Verbo, mas gerando o Verbo e conversando sempre com ele.
Por isso, as santas Escrituras e todos os portadores do espírito nos ensinam,
dentre as quais João diz: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em
Deus", dando a entender que no princípio existia apenas Deus e nele o seu
Verbo. Depois diz: "E Deus era o Verbo. Tudo foi feito por ele, e sem ele
nada foi feito." Portanto, sendo o Verbo Deus e nascido de Deus, quando o
Pai do universo quer, ele o envia a algum lugar e, chegando aí, ele é ouvido e
visto, pois é enviado por ele e se encontra em algum lugar.
Capítulo XXIII - Retomada de Gênesis
sobre a tentação e queda de Adão e Eva (cont.)
Portanto, Deus fez
o homem no sexto dia, mas sua modelação foi manifestada no sétimo dia, quando
fez também o jardim, para que estivesse em lugar melhor e local excelente. Que
isso seja verdade, a própria experiência o demonstra. Com efeito, como não
considerar a dor que as mulheres sofrem no parto e como logo se esquecem disso,
para que se cumpra a palavra de Deus que o gênero humano cresça e se
multiplique? O mesmo se diga da condenação da serpente: como nos parece odiosa,
arrastando-se sobre o seu próprio ventre e comendo terra, para que também isso
seja demonstração do que antes foi dito.
Capítulo XXIV - Retomada de Gênesis
sobre a tentação e queda de Adão e Eva (cont.)
Deus ainda fez
brotar da terra toda árvore formosa à vista e boa para comer. De fato, no
princípio havia apenas o que foi criado no terceiro dia: plantas, sementes e
ervas; mas o que havia no jardim nasceu com extrema beleza e formosura, pois se
diz que era uma plantação plantada pelo próprio Deus. Quanto ao resto das
plantas, no mundo há semelhantes. Todavia, há duas árvores, a da vida e a da
ciência, que não existem em nenhuma terra, mas somente no jardim do Éden. Que o
jardim seja terra e esteja plantado sobre a terra, a Escritura diz: "E
Deus plantou um jardim em Éden, ao Oriente, e colocou aí o homem, e Deus ainda
fez brotar da terra toda árvore formosa à vista e boa para comer." Pelas
expressões "ainda da terra" e "para o Oriente", a divina
Escritura claramente nos ensina que o jardim estava sob o nosso céu, assim como
o Oriente e a terra. O que se chama Éden em hebraico é traduzido por
"delícias". A Escritura indica que de Éden saía um rio para regar o
jardim e que a partir daí se dividia em quatro braços. Dois deles são o Fison e
o Geon, que regam as partes orientais, principalmente o Geon, que rega toda a
terra da Etiópia e que dizem aparecer no Egito com o nome de Nilo. Quanto aos
outros dois rios, os chamados Tigre e Eufrates, são bem conhecidos entre nós,
pois correm perto de nossas regiões.
Como dissemos
acima, Deus colocou o homem no jardim, para que o cultivasse e o guardasse, e
mandou que ele comesse de todos os frutos, portanto também da árvore da vida, e
mandou que só não experimentasse da árvore da ciência. E Deus o transportou da
terra da qual fora criado para ojardim, dando-lhe ocasião de progresso, para
que crescendo e chegando a ser perfeito e até declarado deus, subisse então até
o céu, possuindo a imortalidade, pois o homem foi criado como ser intermédio,
nem completamente mortal nem absolutamente imortal, mas capaz de uma e outra
coisa, assim como seu lugar, o jardim, se considerarmos a sua beleza, é lugar
intermédio entre o mundo e o céu.
Quando a Escritura
diz "trabalhar", não dá a entender outro trabalho, mas a observância
do mandamento de Deus, a fim de que o homem, violando-o, não se perca, como
efetivamente aconteceu quando se perdeu pelo pecado.
Capítulo XXV - A desobediência expulsa o
homem do paraíso
A própria árvore
da ciência era boa e bom era também o seu fruto. Não produziu, como pensam
alguns, a árvore da morte, pois o que produziu esta foi a desobediência. De
fato, em seu fruto não havia outra coisa senão ciência, e a ciência é boa,
desde que seja usada devidamente. Acontece que, por sua idade, Adão era uma
criança e por isso ainda não podia receber de modo digno a ciência. Quando uma
criança nasce, não pode imediatamente comer pão, mas primeiro se alimenta de
leite e depois, conforme vai crescendo em idade, usa-se alimento sólido. Algo
parecido aconteceu com Adão. Não foi também por inveja, como pensam alguns, que
Deus lhe proibiu comer da ciência.
Além disso, Deus
queria prová-lo, para ver se era obediente ao seu mandamento, e também queria que
o homem permanecesse o mais tempo possível simples e inocente na idade de
criança. Com efeito, é coisa santa, não só diante de Deus, mas também diante
dos homens, que os filhos se submetam aos pais em simplicidade e inocência.
Portanto, se os filhos devem se submeter aos pais, quanto mais o homem a Deus,
Pai do universo? Além do mais, não é normal que as crianças pequenas tenham
pensamentos acima de sua idade, pois assim como o crescimento em idade acontece
ordenadamente, do mesmo modo o entender e o sentir. Por outro lado, quando uma
lei manda abster-se de algo e não se obedece, é evidente que não é a lei que
nos traz o castigo, mas a transgressão e a desobediência. Com efeito, se um pai
manda seu filho abster-se de certas coisas e ele não obedece à ordem do pai,
este o açoita e castiga; contudo, não é por isso que se dirá que tais coisas
são os açoites, mas que é a desobediência que acarreta o castigo ao
desobediente. Assim, foi a desobediência que acarretou ao primeiro homem ser
expulso do jardim do Éden; não porque a árvore da ciência tivesse alguma coisa
de mau, mas foi por causa de sua desobediência que o homem atraiu trabalho,
dor, tristeza e caiu finalmente sob o poder da morte.
Capítulo XXVI - A desobediência expulsa
o homem do paraíso (cont.)
26. Também foi um
grande beneficio feito por Deus ao homem que este não permanecesse sempre em
pecado, mas, de certo modo, como se tratasse de um desterro, o expulsou do
paraíso, para que pagasse por tempo determinado a pena de seu pecado e, assim
educado, fosse novamente chamado. Tendo sido o homem formado neste mundo,
misteriosamente se escreve no Gênesis como se ele tivesse sido colocado duas
vezes no jardim. A primeira vez se realizou quando foi aí colocado; a outra se
realizaria depois da ressurreição e do julgamento.
Podemos ainda
dizer mais. Do mesmo modo como um vaso que depois de fabricado tem algum
defeito, é novamente fundido e modelado para que fique novo e inteiro, assim
acontece com o homem através da morte: de certo modo se quebra, para que na
ressurreição surja sadio, isto é, sem mancha, justo e imortal.
Quanto ao fato de
Deus chamar e dizer: "Adão, onde estás?", Deus não o fez como se não
soubesse, mas, por causa de sua longanimidade, oferecia ao homem ocasião de
penitência e confissão.
Capítulo XXVII - O homem é, por
natureza, mortal ou imortal
Poder-se-á dizer:
"O homem não foi criado mortal por natureza?" De jeito nenhum.
"Então foi criado imortal?" Também não dizemos isso. "Então não
foi nada?" Também não dizemos isso. O que afirmamos é que por natureza não
foi feito nem mortal, nem imortal. Porque se, desde o princípio, o tivesse
criado imortal, o teria feito deus; por outro lado, se o tivesse criado mortal,
pareceria que Deus é a causa da morte. Portanto, não o fez mortal, nem imortal,
mas, como dissemos antes, capaz de uma coisa e de outra. Assim, se o homem se
inclinasse para a imortalidade, guardando o mandamento de Deus, receberia de
Deus o galardão da imortalidade e chegaria a ser deus; mas se se voltasse para
as coisas da morte, desobedecendo a Deus, seria a causa da morte para si mesmo,
porque Deus fez o homem livre e senhor de seus atos. O que o homem atraiu sobre
si mesmo por sua negligência e desobediência, agora Deus o presenteou com isso,
através de sua benevolência e misericórdia, contanto que o homem lhe obedeça.
Do mesmo modo como o homem, desobedecendo, atraiu sobre si a morte, assim
também, obedecendo à vontade de Deus que quer, pode adquirir para si a vida
eterna. De fato, Deus nos deu lei e mandamentos santos, e todo aquele que os
cumpre pode salvar-se e, tendo alcançado a ressurreição, herdar a
incorruptibilidade.
Capítulo XXVIII - O ensinamento dos
autores sagrados sobre a história da humanidade
Adão foi expulso
do jardim e nessas condições ele conheceu a sua esposa Eva, que Deus havia
feito de sua costela para que fosse sua mulher. Não porque não pudesse plasmar
a mulher separadamente, mas porque sabia de antemão que os homens haveriam de
nomear uma multidão de deuses. Sendo presciente e sabendo que o erro haveria de
nomear, através da serpente, uma multidão de deuses -embora não havendo mais do
que um Deus, já desde aquele tempo o erro pensava em semear subrepticiamente
multidão de deuses, dizendo: "Sereis como deuses" -para que não se
pudesse imaginar que um Deus fez o homem e outro fez a mulher, fez os dois de
uma única criação. Entretanto, Deus fez junto a mulher não só para mostrar o
mistério de sua monarquia e unicidade, mas também para lhes mostrar maior
benevolência. Depois que Adão disse a Eva: "Esta sim é osso dos meus ossos
e carne da minha carne", profetizou mais dizendo: "Por isso o homem
deixará seu pai e sua mãe e juntar-se-á à sua mulher, e os dois serão uma só
carne". Isso se vê que se cumpre em nós mesmos. Com efeito, quem,
legitimamente casado, não abandona sua mãe e seu pai, toda a sua parentela e
todos os seus familiares, apegando-se e unindo-se à sua mulher, a qual quer
acima de todos? Sabe-se que houve aqueles que sofreram até à morte por amor a
suas esposas.
Esta Eva, por ter
sido extraviada desde o princípio pela serpente e por ter-se tornado guia do
pecado, o demônio perverso, que também se chama Satã e que lhe falou então
através da serpente, nomeia esta Eva em seus gritos até hoje, quando age nos
homens por ele possuídos. O demônio também se chama dragão, por ter-se afastado
de Deus, pois no princípio foi um anjo. Teria muito que falar sobre este.
Agora, porém, deixemos de lado sua explicação, pois já tratamos dele em outros
discursos.
Capítulo XXIX - O ciúme de Caim
Quando Adão
conheceu a sua mulher Eva, esta concebeu e deu à luz um filho chamado Caim. E
disse: "Tive um homem por meio de Deus". Novamente deu à luz um
filho, chamado Abel, que era pastor de ovelhas, enquanto Caim cultivava a
terra. A história dos dois irmãos é muito longa para adaptá-Ia à situação de
minha exposição; por isso, o próprio livro que se chama Origem do mundo pode
informar os estudiosos a respeito de seus pormenores.
Satanás, vendo que
Adão e Eva não só viviam, mas geravam filhos, foi tomado de inveja por não ter
podido levá-Ios à morte. Vendo que Abel era agradável a Deus, agiu sobre seu
irmão Caim e fez com que este matasse seu irmão Abel. Assim começou a existir a
morte neste mundo, que faz caminho até hoje por todo o gênero humano. Deus,
porém, sendo compassivo e querendo dar a Caim, como a Adão, ocasião de
penitência e confissão, disse: "Onde está o teu irmão Abel?" Caim,
desconfiado de Deus, respondeu: "Não sei. Por acaso sou guarda do meu
irmão?" Irritado contra ele, Deus disse: "Por que fizeste isso? A voz
do sangue de teu irmão clama da terra a mim. Agora, tu és maldito da terra, que
se abriu para receber de tua mão o sangue de teu irmão. Ficarás gemendo e
tremendo sobre a terra." Por isso, a partir daí, a terra temerosa já não
recebe o sangue do homem, nem de nenhum animal, manifestando assim que ela não
é culpada, mas que o homem é transgressor.
Capítulo XXX - Início da construção da
cidade
Caim também teve
um filho, chamado Henoc. E edificou urna cidade, à qual chamou de Henoc, o nome
de seu filho. Então teve início a construção de cidades, antes do dilúvio, e
não corno Homero mente, dizendo: "Porque ainda não havia sido construída
cidade de míseros homens." Henoc teve um filho chamado Gaidad, o qual
gerou Meel, Meel gerou Matusala e Matusala gerou Lamec. Lamec tornou para si
duas mulheres, cujos nomes eram Ada e Sela. Daí começou a poligamia e também a
música. De fato, Lamec teve três filhos: Obel, Jubal e Tobel. Obel foi pastor,
habitando em tendas; Jubal foi o inventor do saltério e da cítara; Tobel foi
ferreiro, trabalhando com martelo em bronze e ferro. Até aqui chega a lista da
descendência de Caim, que é esquecida daqui para frente, por ter ele matado o
seu irmão.
Para substituir
Abel, Deus concedeu a Eva que concebesse e gerasse outro filho, que se chamou
Set, do qual procede todo o gênero humano até hoje. Aos que desejam e têm
vontade de conhecer todas as outras gerações, é fácil mostrar para eles nas
santas Escrituras. Nósjá tratamos em outra parte corno indicamos acima, da
formação das genealogias no primeiro livro Sobre as histórias.
O Espírito Santo
nos ensina tudo isso por intermédio de Moisés e dos outros profetas, de modo
que os nossos livros dos que adoramos a Deus, são mais antigos e sobretudo mais
verdadeiros que os de todos os historiadores e poetas. Eles fantasiam que foi
ApoIo o inventor da música; outros que foi Orfeu, dizendo que ele inventou a
música tomando-a do canto das aves. Vê-se, porém, que é tudo palavrório vão e
sem fundamento, pois esses nasceram muitos anos depois do dilúvio. Quanto a
Noé, que é chamado Deucalião por alguns, tratamos a respeito dele no livro
antes mencionado, no qual, se te agrada, podes tu mesmo ler.
Capítulo XXXI - Início da construção da
cidade (cont.)
Depois do dilúvio,
novamente recomeçaram a existir cidades e reis do seguinte modo: a primeira
cidade foi Babilônia, Orec, Arcat e Calana, na terra de Senaar, e seu rei se
chamava Nebrot. Destas saiu Assur, que deu nome aos assírios. Nebrot construiu
as cidades de Nínive, Roboom, Calac e Dasen (esta entre Nínive e Calac). No
início, Nínive foi uma grande cidade. Outro filho de Sem, filho de Noé, chamado
Mesraim, gerou os Ludomim, os que se chamam Enemiguim, os Labiim, os Neptalim,
os Patrosinim e os Caslonim, de onde saíram os Filistiim. Dos filhos de Noé e
de sua consumação e genealogia fizemos um resumo no livro anteriormente citado.
Recordaremos agora o que ali foi omitido sobre cidades e reis, assim como
acontecimentos do tempo em que havia uma só e mesma língua. Antes das línguas
se dividirem, existiram as cidades anteriormente descritas. No tempo em que iam
se dividir, decidiram, por própria conta e não segundo Deus, edificar uma
cidade e uma torre, cujo topo chegasse até o céu, para adquirir fama gloriosa.
Como se atreveram a empreender tão grande obra contra o conselho de Deus, Deus
atirou por terra a cidade deles e arrasou a torre. A partir disso, ele mudou as
línguas dos homens e deu fala diferente a cada um. A própria Sibila indicou
isso, anunciando a ira que deveria vir ao mundo: "Mas quando se cumprirem
as ameaças do grande Deus, que um dia ameaçara os mortais, quando construiram a
torre na terra da Assíria... tinham todos a mesma língua e quiseram subir até o
céu estrelado. Nesse momento, o Imortal impulsionou fortemente os ares, e os
ventos derrubaram a grande torre elevada, semeando a discórdia nas fileiras dos
mortais. Depois que a torre caiu, as línguas humanas se dividiram nas muitas
falas dos mortais." E o resto.
Isso aconteceu na
Caldéia. Em Canaã houve uma cidade chamada Carran. Nesse tempo, o primeiro rei
do Egito foi o faraó, que, segundo os egípcios, se chamava também Necaot. E
assim foram os outros reis que lhe sucederam. Na terra de Senaar, entre os
chamados caldeus, o primeiro rei foi Arioc; depois deste, veio outro chamado
Elasar, depois Codolagomor, rei de Elam; depois deste, Targal, rei dos povos
que se chamam assírios. Houve outras cinco cidades no território de Cam, filho
de Noé: a primeira se chamava Sodoma; e as outras, Gomorra, Adama, Seboim e
Balac, também chamada Segor. Os nomes de seus reis são: Balas, rei de Sodoma;
Barsas, rei de Gomorra; Senaar, rei de Adama; Himor, rei de Seboin; Balac, rei
de Segor, que também se chama Balac. Esses ficaram submetidos a Codolagomor,
rei dos assírios, durante doze anos. E no décimo terceiro ano se separaram de
Codolagomor. E assim aconteceu que os quatro reis dos assírios fizeram guerra
contra os cinco reis. Este foi o começo das guerras sobre a terra. Derrotaram
os gigantes Caranain e com eles nações fortes, os omeus na mesma cidade, e os
correus nos montes chamados Seir até a cidade chamada Terebinto de Farã, que
está no deserto. Nesse mesmo tempo, havia um rei justo chamado Melquisedec, na
cidade de Salém, que agora se chama Hierosólima. Este foi o primeiro de todos
os sacerdotes do Altíssimo e dele a cidade de Jerusalém recebeu o nome, aquela
que antes chamamos Hierosólima. Depois de Melquisedec, podemos ver que houve
sacerdotes por toda a terra. Depois dele, reinou Abimelec em Gerara, e depois
outro Abimelec. Depois reinou Efrom, também chamado Queteu. São esses os nomes
desses primeiros reis; os nomes dos outros reis dos assírios, que vieram muitos
anos depois, foram omitidos pela crônica. Dos nossos últimos tempos,
recordam-se os reis da Assíria: Teglafasar, depois Salamanasar e depois
Senacarim. Este último teve como triarca Adramalec, o etíope, que também foi
rei do Egito. Contudo, tudo isso, comparado com as nossas Escrituras, é coisa
muito recente.
Capítulo XXXII - Início da construção da
cidade (cont.)
Daí se podem
julgar as histórias dos estudiosos e amantes da antiguidade, pois são recentes
os últimos fatos a que aludimos sem utilizar os santos profetas. Em todo caso,
no início eram poucos os homens que habitavam a terra da Arábia e da Caldéia e
foi apenas depois da divisão das línguas que começaram, em seus territórios, a
ser muitos e a multiplicar-se por toda a terra. Então alguns foram viver no
Oriente e outros foram para os territórios do grande continente e para o Norte,
de modo que se estenderam até a Bretanha, nas regiões árticas; outros foram
para a terra de Canaã, também chamada Judéia e Fenícia, para os territórios da
Etiópia, Egito e Líbia, e para a chamada zona tórrida, até as regiões do
Ocidente. Outros ocuparam a terra que vai da costa e da Panfília, da Ásia,
Grécia, Macedônia e, mais além, a Itália e as chamadas Gálias, Espanhas e
Germânias, de modo que agora toda a terra está cheia de seus habitantes.
Portanto, o
povoamento da terra pelos homens se fez, no princípio, em três direções, para o
Oriente, para o meio-dia e para o Ocidente. Depois, com o afluxo de gerações
humanas, foi habitado o restante. Os historiadores ignoraram isso e querem
dizer que o mundo é esférico e comparável com um cubo! Mas como podem ser
verdadeiros nisso, se ignoram a criação do mundo e seu povoamento? Quando os
homens aumentaram e se multiplicaram conforme as regiões, como acabamos de
dizer, também foram povoadas as ilhas do mar e as outras regiões.
Capítulo XXXIII - Comparação das duas
histórias
Quem dos chamados
sábios, poetas e historiadores foi capaz de dizer a verdade nessas coisas? Eles
próprios são muito posteriores e introduzem uma multidão de deuses, que também
nasceram depois de muitos anos que as cidades tinham sido fundadas. E também
são posteriores aos reis, aos povos e às guerras. Seria preciso que tivessem
mencionado tudo, mesmo o que aconteceu antes do dilúvio, sobre a criação do
mundo, a formação do homem e o que aconteceu depois, se é fato que os profetas
dos egípcios ou os caldeus e outros historiadores falaram pelo espírito divino
e puro, e era verdade o que eles anunciavam. E não só deveriam dizer-nos o
passado e o presente, mas também anunciar de antemão o futuro do mundo. Daí se
demonstra que todos os outros estão errados e que só nós, cristãos, possuímos a
verdade, pois somos ensinados pelo Espírito Santo, que nos falou pelos santos
profetas e nos anuncia tudo antecipadamente.
Capítulo XXXIV - Comparação das duas
histórias (cont.) / O ensinamento dos autores sagrados sobre moral
Quanto ao resto,
procura investigar com empenho as coisas de Deus, isto é, o que os santos
profetas disseram, a fim de que, comparando o que nós dizemos e o que os outros
dizem, possas encontrar a verdade. Que os nomes dos chamados deuses são apenas
nomes de homens, como já apontamos antes, podemos demonstrá-lo pelas histórias
que eles próprios escreveram. Quanto às suas imagens, que são fabricadas
diariamente até hoje, são meros ídolos, "obras de mãos humanas".
Esses ídolos são cultuados por uma multidão de homens insensatos, enquanto
desprezam o Criador e Artífice do Universo, que alimenta todo o ser que
respira, acreditando em inúteis ensinamentos e transmitindo uns aos outros, de
pai para filho, uma doutrina errônea, cheia de insensatez.
Deus, porém, Pai e
Criador do universo, não abandonou a humanidade, mas deu-lhe uma lei e lhe
enviou seus santos profetas, para anunciar e ensinar todo o gênero humano, a
fim de que cada um de nós viva vigilante e conheça que há um só Deus. Também
nos ensinaram a nos afastarmos da sacrílega idolatria, do adultério, do
assassínio, da fornicação, do roubo, da avareza, do perjúrio, da mentira, da
ira e de toda dissolução e impureza. E que aquilo que o homem não quer que
façam a ele, também ele não faça a ninguém. Dessa forma, ele deve praticar a
justiça, para escapar dos castigos eternos e se tornar digno da vida eterna que
vem de Deus.
Capítulo XXXV - O ensinamento dos
autores sagrados sobre moral
A lei divina não
proíbe apenas adorar aos ídolos, mas também aos elementos, ao sol, à lua e aos
demais astros; também não se deve cultuar o céu, a terra, ornar, as fontes, os
rios, mas deve-se servir unicamente o Deus verdadeiro e Criador do universo,
com santidade de coração e intenção sincera. Com efeito, a lei santa diz:
"Não cometerás adultério, não matarás, não roubarás, não levantarás falso
testemunho, não desejarás a mulher do teu próximo." Do mesmo modo os
profetas. Salomão nos ensinou que não se deve pecar nem por sinais ou piscar de
olhos: "Que teus olhos vejam o que é direito, que tuas pálpebras se
inclinem sobre o que é justo." Moisés, que também é profeta, diz sobre a
uni cidade de Deus: "Este é O vosso Deus, aquele que firmou o céu e
alicerçou a terra, cujas mãos mostraram toda a milícia celeste, mas não a
mostou para que caminheis atrás dela." Isaías também diz: "Assim diz
o Senhor, ele que firmou o céu e colocou os alicerces da terra e de tudo o que
ela contém, ele que dá respiração ao povo sobre ela e alento para os que a
pisam. Este é o Senhor vosso Deus." O próprio Isaías diz ainda: "Diz
o Senhor: Eu fiz a terra e o homem sobre ela; com minha mão firmei o céu".
E em outro capítulo: "Este é o vosso Deus, aquele que preparou os cumes da
terra; não terá fome, nem se fatigará, nem é possível encontrar a profundeza de
seu pensamento." Do mesmo modo Jeremias: "Aquele que fez a terra com
a sua força, que levantou o orbe com a sua sabedoria, que segundo o seu
pensamento estendeu o céu e grande quantidade de água no céu, reuniu as nuvens
dos confins da terra, fez relâmpagos para a chuva e tirou os ventos de seus
depósitos."
Cumpre notar que
os profetas disseram coisas bem coerentes e concordes, falando todos com um só
e mesmo espírito sobre a monarquia de Deus, a origem do mundo e a criação do
homem. E não só falaram, mas também sofreram dor, chorando sobre o gênero
humano alheio a Deus, denunciaram os sábios aparentes pelo erro em que viviam e
endurecimento do coração deles. Assim diz Jeremias: "Todo homem se tornou
néscio por sua ciência, todo fundidor de ouro se cobriu de vergonha por suas
obras de ourivesaria, em vão o cunhador de prata cunha moeda; não há alento
neles; perecerão no dia da visitação." Davi também diz a mesma coisa:
"Corromperam-se e se tornaram abomináveis em suas obras; não há quem
realize obras boas, não há um só. Todos se desviaram, todos unanimemente se
tornaram inúteis." Igualmente Habacuc: "Para que serve ao homem o que
ele grava? Ele gravou uma imaginação mentirosa. Ai daquele que diz à pedra:
'Levanta-te', e à madeira: 'Sustém-te'."
Do mesmo modo
falaram os outros profetas da verdade. Para que enumerar toda a multidão de
profetas, que foram muitos e disseram infinitas coisas, coerentes e concordes
entre si? Os que quiserem podem, lendo seus escritos, conhecer exatamente a
verdade e não extraviar-se em especulação e trabalho inútil. Portanto, esses
foram os profetas dos hebreus, dos quais falamos: homens iletrados, pastores e
ignorantes.
Capítulo XXXVI - Concordância com a
Sibila
Quanto à Sibila,
que foi profetisa entre os gregos e demais nações, começa a sua profecia
recriminando o gênero humano: "Homens mortais e de carne, que não sois
nada, como vos apressais a vos exaltar, sem olhar para o fim da vida, e não
tremeis,. nem temeis a Deus, que vos vigia, conhecedor altíssimo, que tudo vê,
testemunha de tudo, criador que tudo alimenta, que infundiu em tudo doce alento
e que se fez guia de todos os mortais?
Único Deus, que
impera sozinho, máximo e não criado, onipotente, invisível, e o único que tudo
vê, embora não seja visto por nenhum olho de carne. Com efeito, que carne pode ver
com os olhos o celeste e verdadeiro, o Deus imortal, que habita no eixo do
mundo? Os homens, nascidos mortais, homens apenas em seus ossos, veias e
carnes, não podem olhar de frente sequer os raios do sol.
Reverenciai àquele
que é único, ao guia do mundo, o único que foi para o eterno e desde o eterno.
Nascido de si mesmo, incriado, que tudo domina para sempre, que distribui
julgamento a todos os mortais em luz comum.
Recebereis O justo
pagamento do vosso mau querer, pois deixando de glorificar ao Deus verdadeiro,
à fonte perene e de oferecer-lhe sagradas hecatombes, sacrificastes aos
demônios do Hades.
Caminhais no
orgulho e na loucura e, abandonando o caminho direito e reto, vos haveis
desviado e andais errantes entre os espinhos e estacas. Vãos mortais, cessai já
de errar entre sombras através da negra noite escura, abandonai a sombra da
noite e recebei agora a luz. Este é aquele que a todos se manifesta, ele não
erra. Vinde, não sigais a sombra e as trevas para sempre. Olhai: sobre tudo
brilha a doce luz do sol. Conhecei e coloca i sabedoria em vossos peitos:
existe um único Deus que nos envia chuvas, ventos, terremotos e relâmpagos,
fomes, pestes e lutos fúnebres, neve e geada... Para que citar tudo? Ele guia o
céu e domina a terra; unicamente ele existe."
E disse contra os
que são chamados deuses gerados: "Se todo o gerado se corrompe
inteiramente, Deus não pode ter sido formado dos músculos do homem e de matriz.
Unicamente Deus, porém, se ergue acima de tudo, ele que fez o céu, o sol, as
estrelas e a lua, a terra fértil em frutos, as ondas infladas do ponto, as
altas montanhas e as correntes perenes das fontes.
Ele criou a
incontável multidão de peixes dos rios, alimenta também os répteis, que se
arrastam sobre a terra, e as aves variadas, de voz sonora e gorgeios, com
plumagem dourada, de canto claro, que turbam o ar com suas asas.
Colocou a multidão
de feras selvagens nas florestas da montanha, submeteu a nós mortais todos os
animais e para todos fez um guia por sua mão formado, submetendo ao homem
variedade incompreensível de coisas. De fato, qual carne pode compreendê-Ias
uma a uma? Somente pode conhecê-Ias quem no princípio as fez: o Imortal, o
Criador e Eterno, que habita o éter, que oferece aos bons o bom e pródigo
pagamento, e aos maus e injustos reserva sua cólera e ira, guerra e peste,
dores e lágrimas.
Homens, por que,
inutilmente envaidecidos, vos desenraizais? Envergonhai-vos de elevar gatos e
insetos à condição de deuses! Não é loucura e raiva que tira o bom-senso,
existirem deuses que roubam os pratos e carregam as panelas?
Ao invés de morar
no céu dourado e florido, é visto comido pelo caruncho e coberto de espessas
teias de aranha.
Insensatos,
adorais serpentes, gatos e cães, e cultuais aves, répteis e feras do campo,
estátuas de madeira, imagens manufaturadas e montes de pedras nos caminhos,
quejá é vergonhoso apenas nomear. Esses são deuses enganosos dos homens sem
discernimento, de cuja boca veneno mortal se derrama; aquele Deus, porém, que
tem a vida e a luz imortal e perene derrama sobre os homens prazer mais doce do
que o mel... Somente diante dele deve-se inclinar a fronte, entrando nas sendas
dos séculos piedosos.
Tendo abandonado
tudo isso, essa taça cheia de justiça, vinho puro, abundante, plena sem mistura
alguma, a arrastastes em vossas loucuras, todos loucos de espírito, e mesmo
assim não quereis despertar, reaver mente sensata e conhecer a Deus rei, aquele
que tudo vê. Por isso, virá sobre vós uma chama de fogo abrasador e sereis
queimados em seu ardor para sempre, o dia todo, envergonhados de vossos ídolos
enganosos e inúteis; mas os que honram ao Deus verdadeiro e perene, herdarão
vida para sempre, habitando junto ao jardim florido do paraíso e comendo o doce
pão do céu estrelado."
É evidente que
isso é verdadeiro, proveitoso, justo e digno de ser amado por todos os homens;
também é evidente que aqueles que praticam o mal serão necessa. riamente
castigados, conforme mereçam as suas ações.
Capítulo XXXVII - Concordância com
textos poéticos
Alguns poetas
chegaram a falar a mesma coisa, como que emitindo oráculos contra si mesmos e
testemunhando contra aqueles que fazem o mal, dizendo que serão castigados.
Ésquilo diz: "Aquele que faz, também deve sofrer". Píndaro diz
também: "Pois aquele que fez algo convém que também sofra."
Igualmente Eurípides: "Suporta o que sofrer, pois fazendo gozaste. É uma
lei maltratar o inimigo se o pegas". Ele mesmo diz novamente: "Causar
danos aos inimigos: creio que isso é ser homem." De modo semelhante Arquíloco:
"Eu conheço uma grande coisa: àquele que me fez algum mal, responder com
um mal maior."
Sobre o fato de
que Deus tudo vê e nada lhe é oculto, mas que, sendo misericordioso, espera
pelo momento de julgar, Dioniso diz: "O olho da Justiça olha com rosto
tranqüilo, mas vê tudo ao mesmo tempo."
Que deverá haver
julgamento e que os malvados se tornarão repentinamente presa dos males,
Ésquilo também o deu a entender, dizendo: "A desgraça chega até os mortais
com pés velozes, conforme o pecado de quem ultrapassa o lícito. Vês ajustiça
silenciosa e invisível para aquele que dorme, que caminha, que se assenta. Cedo
ou tarde, ela te alcança na encruzilhada. Não esconde a noite para aquele que
realiza o mal. Ao fazer alguma coisa de mal, pensa que alguém a está vendo."
E Simônides também diz: "Não existe desgraça inesperada para os homens; em
pouco tempo Deus transtorna tudo". De novo Eurípides: "Nunca se deve
considerar como coisa sólida a fortuna do homem mau, nem a felicidade
excessiva, nem a raça dos injustos, pois o tempo, que não nasceu de ninguém,
manifesta as maldades dos homens." Ainda Eurípides: "A divindade não
é sem inteligência, mas pode distinguir os juramentos falsos e os que a eles se
obrigam." E Sófocles: "Se agiste mal, também deves sofrer o
mal."
Que Deus examinará
todo juramento injusto e qualquer outro pecado, os poetas quase o disseram,
assim como falaram, querendo ou sem querer, coisas concordes com os profetas
sobre a conflagração do mundo, apesar de serem muito posteriores a estes e de
terem tirado tudo isso da lei e dos profetas.
Capítulo XXXVIII - Concordância com
textos poéticos (cont.)
Não importa se
foram anteriores ou posteriores. O importante é que falaram de acordo com os
profetas. Sobre a conflagração, por exemplo, o profeta Malaquias predisse:
"Eis que chega o dia do Senhor como fornalha ardente e abrasará todos os
ímpios." E Isaías: "A ira do Senhor virá como granizo que cai com
violência e como água no vale que arrasta tudo."
Portanto, a
Sibila, os outros profetas, e até os filósofos e poetas falaram claramente
sobre a justiça, sobre o julgamento e o castigo. Falaram também sobre a
providência, que Deus cuida de nós não apenas enquanto vivemos, mas também
depois de mortos, embora o dissessem contra a vontade, convencidos que foram pela
própria verdade. Entre os profetas, Salomão disse sobre os mortos: "A
carne será curada e os ossos serão cuidados." E o próprio Davi: "Meus
ossos humilhados se regozijarão." De acordo com eles, disse Tímocles:
"Para os mortos, a misericórdia é o Deus benigno."
Os escritores que
falaram sobre a multidão dos deuses acabaram por admitir a unicidade ou
monarquia de Deus; aqueles que afirmaram a não-providência, depois falaram
sobre a providência; aqueles que negaram o julgamento, mais tarde o afirmaram;
aqueles que negaram a sensação após à morte, depois a confessaram. Homero, por
exemplo, diz em uma passagem: "A alma, como um sonho, alçou vôo e
partiu." Em outra passagem: "A alma, saindo dos membros, voou para o
Hades." Ainda: "Enterra-me quanto antes, pois quero atravessar as
portas do Hades."
Creio que sabes
perfeitamente como falaram os outros autores que leste. Aquele que busca a
sabedoria de Deus e que lhe agrada pela fé, justiça e boas obras entenderá tudo
isso. Com efeito, um dos profetas dos quais falamos, chamado Oséias, diz o
seguinte: "Quem é sábio e conhecerá estas coisas, inteligente e as
entenderá? Porque os caminhos do Senhor são retos e os justos entrarão neles,
mas os ímpios cairão de fraqueza nesses caminhos."
É preciso que quem
ama o saber, aprenda. Portanto, procura ter conversas mais freqüentes, para
que, ouvindo de viva voz, aprendas com exatidão a verdade.
* * *
Fonte: Veritatis Splendor (http://www.veritatis.com.br)
Tradução: Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin
É admirável a força da apologética católica.
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