Por todos ou por muitos?
Quando começaram a ser usadas
as traduções da Missa de Paulo VI, muitos fiéis católicos não puderam ocultar
sua surpresa ao ouvir as palavras da consagração do cálice: “Este é o cálice de
meu Sangue, Sangue da aliança nova e eterna, que será derramada por vós e por
todos os homens para o perdão dos pecados”. Em efeito, o texto latim da nova
liturgia dizia em realidade: “pro vobis et pro multis – por vós e por muitos”.
Atribuiu-se isto naqueles tempos à traição das traduções.
Ora, a encíclica do Papa João
Paolo II ‘Eucaristia de Ecclesia’ parece assumir a tradução errada, desta vez
inclusive no texto latino: “Accipite et bibite omnes: hic calix novum
aeternumque testamentum est in sanguine meo, qui pro vobis funditur et pro omnibus in
remissionem pecatorum. (Ver Marc. 14, 24; Luc. 22, 20; 1 Cor. 11, 25). (No 2).
Versões Latinas e Gregas da
Bíblia
Se consultarmos as versões
latinas e gregas do Evangelho, e as edições críticas que mencionam as variantes
do texto que chegou até nós, não encontraremos nada parecido. Em todos os
textos da Sagrada Escritura acerca da narração da instituição da Sagrada
Eucaristia (Marc. 14, 24; Mat. 26, 28), lemos ‘pro multis’, por muitos, e não
‘pro omnibus’, por todos.
É certo que o mau exemplo veio
desde acima, pois um texto do concilio Vaticano II deixava já entrever este
deslizamento: “… de sorte que o que uma vez obrou-se para todos em ordem à
salvação, alcance seu efeito em todos no decurso dos tempos”. (Decreto ad
Gentes, 3)
Interpretação do Catecismo
Poderíamos pensar que é um
assunto de pouca importância e que as querelas bizantinas não influem muito
sobre a fé do povo e sua salvação. Lendo o Catecismo do Concilio de Trento,
percebe-se que não é assim: “As palavras que se ajuntam ‘por vós e por muitos’,
foram tomadas parte de São Mateus, parte de São Lucas. A Santa Igreja, guiada
pelo Espírito de Deus, coordenou-as numa só frase, para que exprimissem o fruto
e a vantagem da Paixão”.
De fato, se considerarmos sua
virtude, devemos reconhecer que o Salvador derramou Seu Sangue pela salvação de
todos os homens. Se atendermos, porém, ao fruto real que os homens dele
auferem, não nos custa compreender que sua eficácia se não estende a todos, mas
só a muitos homens.
Dizendo, pois, ‘por vós’,
Nosso Senhor tinha em vista, quer as pessoas presentes, quer os eleitos dentre
os judeus, como o eram os Discípulos a quem falava, com exceção de Judas.
No entanto, ao acrescentar
‘por muitos’, queria aludir aos outros eleitos, fossem eles judeus ou gentios.
Houve, pois, muito acerto em não dizer ‘por todos’, visto que o texto só alude
aos efeitos a Paixão, e esta sortiu efeito salutar unicamente para os
escolhidos.
Tal é o sentido a que se
referem aquelas palavras do Apóstolo: ‘Cristo se ofereceu uma só vez para
apagar os pecados de muitos’ (Hb. 9, 28); e também as que disse Nosso Senhor no
Evangelho de São João: ‘Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por estes
que Vós me destes, porque eles são Vossos’ (Jo. 17, 9). (II, 4, No 24).
Distinguir entre a virtude e o
efeito
O miolo da questão resume-se
assim: se Jesus Cristo ofereceu sua vida no Calvário para todos os homens,
pode-se dizer que todos se salvarão?
O Magistério da Igreja, no
Concilio de Trento, respondeu muito claramente a esta pergunta no seu decreto
sobre a justificação: “mas, ainda quando ‘Ele morreu por todos’ (2 Cor. 5, 15),
nem todos, porém, recebem o benefício de sua morte, mas apenas aqueles a quem
se comunica o mérito da sua Paixão” (Cap. 3; D.B. 795; D.S. 1523).
Procuremos compreender com
Santo Tomás de Aquino o que significa o texto tridentino.
Quando o Aquinate fala da
virtude da Paixão do Senhor, faz uma distinção dizendo que a morte redentora é
suficiente para a salvação de todos os homens, mas que sua eficácia real não os
salvará todos: “a Paixão de Cristo foi suficiente para todos e de sua eficácia
se aproveitarão muitos” (IIIa, Q78, Art. 3, arg. 8).
É certo que a vontade divina é
soberanamente eficaz, mas realiza-se segundo a natureza de cada criatura:
infalivelmente quando se trata de criaturas sem alma e por tanto sem liberdade,
condicionalmente quando se trata de criaturas gozando de livre arbítrio. E quem
diz livre arbítrio, afirma também a possibilidade de falhar: “Deus quer com
vontade antecedente que todos os homens se salvem, mas com vontade conseguinte
quer que alguns se condenem, porque assim o requer a sua justiça” (Ia, Q19,
Art. 6, ad 1um). “Por muitos, e também por todos, porque se consideramos o
caráter suficiente, ‘Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente
pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo’ (1Jo. 2, 2). Mas se
considerarmos o efeito [da Paixão], não produz efeito mais do que para os que
se salvam, e isto pela culpa dos homens” (Sobre São Mateus, Cap. 26, v. 28).
Aplicação Litúrgica
Destes princípios gerais sobre
a Teologia da Providência, Santo Tomás passa à aplicação litúrgica. Daí a
explicação que da às palavras da Liturgia para a consagração do Cálice: “O
Sangue de Cristo foi derramado suficientemente por todos, mas é eficaz apenas
pelos eleitos. E para que se não acredite que tinha sido derramado apenas pelos
judeus que receberam a promessa, disse: ‘por vós’ que são os judeus, e ‘por
muitos’, isto é para a multidão dos Gentis” (Sentencias, Liv. IV, Dist, 8,
Quest. 2, Art. 2, qc. 3, ad 7um). “Este Sangue foi derramado para remissão dos
pecados, não apenas por muitos, mas por todos segundo 1 Jo. 2, 2: ‘Ele é a
propiciação pelos nossos pecados, y não apenas pelos nossos, senão pelos do
mundo tudo’. Porém, já que alguns se fazem indignos de receber tal efeito, em
quanto à eficácia é derramado por muitos, para aqueles para os quais a Paixão
produz efeito” (Sobre os Corintios, Cap. 11, lect. 6).
Por isso é sumamente
conveniente que, nas próprias palavras da consagração do Preciosíssimo Sangue,
estejam indicados os frutos reais e efetivos do sacrifício do Calvário. Temos
de reconhecer que se todos podem alcançar a salvação, nem todos a aproveitarão
do mesmo modo.
Isto não é Jansenismo?
Alguns poderiam objetar que
semelhante jeito de falar se parece muito mais ao Jansenismo do que à doutrina
católica, e que suscita mais temor e tremor do que esperança e caridade.
Há um abismo, porém, entre o
rigorismo jansenista, condenado pela Igreja como contaminação das idéias
calvinistas dentro da Igreja, e a doutrina de Nosso Senhor, transmitida até nós
pela Igreja católica.
É certo que “Deus quer que
todos os homens sejam salvos” (1 Tim. 2, 4) e que “a vontade de Deus é vossa
santificação” (1 Tes. 4, 3). A vontade de Deus de salvar todo homem é
irrefutável.
Mas por outra parte, Nosso
Senhor não nos deixa ignorar as dificuldades para realizar este divino
desígnio: “Entrai pela porta estreita, porque dilatada é a porta, e espaçosa a
senda que leva à perdição, e são muitos quem entram por ela. Que estreita é a
porta e apertada a senda que leva à vida, e quão poucos são os que dão com
ela!” (Mat. 7, 13-14). “Muitos são os chamados e poucos os eleitos” (Mat. 22,
14). “Disse-lhe um: ‘Senhor, são poucos os que se salvam?’ Ele lhe disse:
‘esforçai-vos para entrar pela porta estreita porque vos digo que muitos serão
os que procuram entrar e não poderão’” (Luc. 13, 23-24).
Daí o conselho do Apóstolo
para nós trabalharmos à nossa salvação “com temor e tremor” (Fil. 2, 12) e as
palavras de São Gregório Magno: “Muitos abraçam a Fé, mas poucos chegam até o
reino celestial. Olhai que estamos muitos aqui reunidos para a festa de hoje e,
no entanto, quem conhece os poucos que pertencem ao número dos eleitos? A voz
de todos pronuncia o Nome de Jesus Cristo, mas não a vida de todos reproduz a
vida de Jesus Cristo. A maior parte dos que seguem Deus com os lábios,
afastam-se dEle com seus costumes” (Homilia 19 super Ev.).
Santo Tomás de Aquino explica
na Suma Teológica a razão de tal dificuldade para corresponder à graça
superabundante da Paixão redentora:
“O bem proporcionado ao estado
comum da natureza acontece amiúde, enquanto a falta deste bem acontece poucas
vezes. Mas o bem que ultrapassa o estado comum da natureza acontece poucas
vezes, e sua falta a miúdo.
Por isto vemos que são mais
numerosos os homens dotados de inteligência suficiente para o manejo de sua
vida diária, enquanto os que carecem dela, -chamados de tolos ou idiotas-, são
muito menos; mas os que alcançam um conhecimento profundo das coisas
inteligíveis são em proporção pouquíssimos.
Pois, como a bem-aventurança
eterna, que consiste na visão de Deus, está por cima do estado comum da
natureza, y principalmente em quanto está privada da graça pela corrupção do
pecado original, os que se salvam são os menos numerosos.
E, porém, nisto mesmo
descobre-se a imensidade da misericórdia divina, que eleva alguns a um gênero
de salvação do que muitos se vem privados, segundo o curso ordinário e a
inclinação da natureza” (Ia, Q23, Art. 7, ad 3um).
Com São Pio X
Após conhecermos esta doutrina
constante da Igreja, tão importante para a salvação das almas, não podemos
senão nós rebelar contra as insinuações da Nova Teologia contemporânea e nós
alegrar da recente decisão da Santa Sé corrigindo as traduções errôneas da
fórmula de consagração do cálice. Nisso segue-se o exemplo do Papa São Pio X:
“Faz alguns tempos, Pio X recebia um sacerdote, cujo nome calaremos, conhecido
pelas suas opiniões modernistas. O Santo Padre fez-lhe fortes observações: ‘o
senhor faz uma má obra e extravia a Igreja’. O religioso intentou replicar:
‘Desculpe-me Santo Padre, eu quis alargar um pouco a porta!’ Então, Pio X
estourou: ‘O quê! Quer ampliar a porta quando Nosso Senhor declara que é
estreita. O que resulta disso, de querer ampliar a porta? Pois, os que estão
adentro saem, e entre os que estão fora, ninguém entra!’”.
Pe F. Knittel, FSSPX
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