Sessão III (24-4-1870)
Constituição Dogmática Sobre A Fé Católica
1781.
Agora, porém, Nós, juntamente com todos os bispos do mundo que conosco governam
a Igreja, congregados no Espírito Santo neste Concílio Ecumênico, sob a nossa
autoridade, apoiados na palavra de Deus, quer escrita quer transmitida por
Tradição, conforme a recebemos santamente conservada e genuinamente exposta
pela Igreja Católica, resolvemos professar e declarar, desta cátedra de Pedro,
diante de todos, a salutar doutrina de Cristo, proscrevendo e condenando, com o
poder divino a
Nós confiado, os erros contrários.
1782. A
Santa Igreja Católica Apostólica Romana crê e confessa que há um [só] Deus
verdadeiro e vivo, Criador e Senhor do céu e da terra, onipotente, eterno,
imenso, incompreensível, infinito em intelecto, vontade e toda a perfeição; o
qual, sendo uma substância espiritual una e singular, inteiramente simples e
incomunicável, é real e essencialmente distinto do mundo, sumamente feliz em si
e por si mesmo, e está inefavelmente acima de tudo o que existe ou fora dele se
possa conceber [cân. 1-4].
1783.
Este único e verdadeiro Deus, por sua bondade e por sua "virtude
onipotente", não para adquirir nova felicidade ou para aumentá-la, mas a
fim de manifestar a sua perfeição pelos bens que prodigaliza às criaturas, com
vontade plenamente livre, "criou simultaneamente no início do tempo ambas
as criaturas do nada: a espiritual e a corporal, ou seja, os anjos e o mundo; e
em seguida a humana, constituída de espírito e corpo" [IV Concílio de
Latrão].
1784.
Tudo o que Deus criou, conserva-o e governa-o com sua providência, atingindo
fortemente desde uma extremidade a outra, e dispondo de todas as coisas
com suavidade[cf. Sab 8,1]. Pois tudo está nu e descoberto aos seus
olhos [Heb 4,13], mesmo os atos dependentes da ação livre das
criaturas.
1785. A
mesma Santa Igreja crê e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas,
pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das
coisas criadas; pois as perfeições invisíveis tornaram-se visíveis
depois da criação do mundo, pelo conhecimento que as suas obras nos
dão dele [Rom 1,20]; mas que aprouve à sua misericórdia e bondade
revelar-se a si e os eternos decretos da sua vontade ao gênero humano por outra
via, e esta sobrenatural, conforme testemunha o Apóstolo: Havendo Deus
outrora falado aos pais pelos profetas, muitas vezes e de muitos modos,
ultimamente, nestes dias, falou-nos pelo Filho [Heb 1,1 s;
cân. 1].
1786. A
esta revelação divina deve-se certamente atribuir o poder em todos, mesmo nas
condições atuais do gênero humano, conhecer expeditamente, com firme certeza e
sem mistura de erro, aquilo que nas coisas divinas não é de per si inacessível
à razão humana. Contudo, não se deve dizer que a revelação é absolutamente
necessária por este motivo, mas porque Deus, em sua infinita bondade, ordenou o
homem para o fim sobrenatural, isto é, para participar dos bens divinos, que
estão inteiramente acima da compreensão humana; pois nem os olhos
viram, nem os ouvidos ouviram, nem penetrou no coração do homem, o que Deus
preparou para aqueles que o amam [1 Cor 2,9; cân. 2 e 3].
1787.
Esta revelação sobrenatural, porém, segundo a doutrina da Igreja universal,
definida pelo Concílio Tridentino, está contida "nos livros e nas
tradições não escritas que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio
Cristo, ou que transmitidas como que mão em mão pelos próprios Apóstolos sob a
inspiração do Espírito Santo, chegaram até nós" [Concílio Tridentino]. E
estes livros do Antigo e do Novo Testamento, inteiros e com todas as suas
partes, conforme vêm enumerados no decreto do mesmo Concílio e se encontram na
antiga edição latina da Vulgata, devem ser aceitos como sagrados e canônicos. E
a Santa Igreja os tem como tais, não por terem sido redigidos somente por obra
humana e em seguida aprovados pela sua autoridade, nem somente por conterem a
revelação isenta de erro, mas porque, escritos sob a inspiração do Espírito
Santo, têm a Deus por autor, e como tais foram confiados à mesma Igreja [cân.
4].
1788.
Todavia, já que o salutar decreto dado pelo Concílio Tridentino sobre a
interpretação da Sagrada Escritura para corrigir espíritos petulantes é
erradamente exposto por alguns, Nós, renovando o mesmo decreto, declaramos que
o seu sentido é que, nas coisas da fé e da moral, pertencentes à estrutura da
doutrina cristã, deve-se ter por verdadeiro sentido da Sagrada Escritura aquele
que foi e é mantido pela Santa Madre Igreja, a quem compete decidir do
verdadeiro sentido e da interpretação da Sagrada Escritura; e que, por
conseguinte, a ninguém é permitido interpretar a mesma Sagrada Escritura
contrariamente a este sentido ou também contra o consenso unânime dos Santos
Padres.
1789
Visto que o homem depende inteiramente de Deus como seu Criador e Senhor, e que
a razão criada está inteiramente sujeita à Verdade incriada, somos obrigados a
prestar, pela fé, à revelação de Deus, plena adesão do intelecto e da vontade
[cân. 1]. Esta fé, porém, que é "o início da salvação humana", a
Igreja a define como uma virtude sobrenatural pela qual, inspirados e ajudados
pela graça, cremos ser verdade o que Deus revelou, não devido à verdade
intrínseca das coisas, conhecida pela luz natural da razão, mas em virtude da
autoridade do próprio Deus, autor da revelação, que não pode enganar-se nem
enganar [cân. 2]. Pois, segundo o testemunho do Apóstolo, a fé é o fundamento
firme das coisas esperadas, uma prova das coisas que não se vêem [Heb
11,1].
1790. Não
obstante, para que a homenagem de nossa fé estivesse
em conformidade com a razão [cf. Rom 12,1], quis Deus ajuntar ao
auxílio interno do Espírito Santo os argumentos externos da sua revelação, isto
é, os fatos divinos, e sobretudo os milagres e as profecias, que, por
demonstrarem abundantemente a onipotência e a ciência infinita de Deus, são
sinais certíssimos as revelação divina, acomodados que são à inteligência de
todos [cân. 3 e 4]. Foi por isso que Moisés, os profetas e principalmente o
próprio Jesus Cristo fizeram muitos e manifestíssimos sinais e profecias; e dos
Apóstolos lemos: Eles, porém, partiram e pregaram em toda a parte,
cooperando com eles o Senhor econfirmando a sua palavra com os sinais que a
acompanhavam [Mc 16,20]. E em outro texto se lê: E temos ainda
mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem de atender,
como a uma candeia que alumia em um lugar tenebroso [ 2 Ped 1,19].
1791.
Embora, porém, a adesão da fé não seja de modo algum um movimento cego do
espírito, ninguém, contudo, pode "crer na pregação evangélica", como
se exige para conseguir a salvação, "sem a iluminação e a inspiração do
Espírito Santo, que a todos faz encontrar doçura em consentir e crer na
verdade" [Concílio II Arausicano]. Pelo que, [já] a própria fé em si,
embora não opere pela caridade [cf. Gál 5,6], é um dom de
Deus, e o seu exercício é um ato salutar, pelo qual o homem presta livre
obediência ao próprio Deus, prestando consentimento e cooperação à sua graça, à
qual poderia resistir [cân. 5].
1792.
Deve-se, pois, crer com fé divina e católica tudo o que está contido na palavra
divina escrita ou transmitida pela Tradição, bem como tudo o que a Igreja, quer
em declaração solene, quer pelo Magistério ordinário e universal, nos propõe a
crer como revelado por Deus.
1793.
Como, porém, sem a fé é impossível agradar a Deus [Heb 11,6] e
chegar ao consórcio dos seus filhos, ninguém jamais pode ser justificado sem
ela, nem conseguir a vida eterna se nela não permanecer até o fim [Mt
10,22;24,13]. E para que pudéssemos cumprir o dever de abraçar a verdadeira fé
e nela perseverar constantemente, Deus instituiu, por meio de seu Filho
Unigênito, a Igreja, e a muniu com os sinais manifestos da sua instituição,
para que pudesse ser por todos reconhecida como guarda e mestra da palavra
revelada.
1794.
Porquanto somente à Igreja Católica pertencem todos os caracteres, tão
numerosos e tão admiravelmente estabelecidos por Deus para tornar evidente a
credibilidade da fé cristã. Além disso, a Igreja em si mesma, pela sua
admirável propagação, exímia santidade e inesgotável fecundidade em todos os
bens, pela sua unidade católica e invicta estabilidade, é um grave e perpétuo
motivo de credibilidade, e um testemunho irrefragável da sua missão divina.
Donde resulta que a mesma Igreja, como um estandarte que se ergue no
meio das nações [Is 11,12], não só convida os incrédulos a entrarem no
seu grêmio, mas também garante a seus filhos que a fé que professam se baseia
em fundamento firmíssimo. A este testemunho acresce o auxílio eficaz da virtude
do alto. Porquanto o begníssimo Senhor excita e ajuda com a sua graça os que
vagueiam no erro, a fim de poderem chegar ao conhecimento da verdade [1
Tim 2,4]. E aos que chamou das trevas à luz maravilhosa [1
Ped 2,9], confirma-os com sua graça, para que permaneçam nesta mesma luz, não
os abandonando senão quando primeiro abandonado por eles. Pelo que, de maneira
alguma é igual a condição daqueles que, pelo dom celeste da fé, abraçaram a
verdade católica, e dos que, levados por opiniões humanas, seguem uma religião
falsa; pois os que receberam a fé sob o Magistério da Igreja, jamais poderão
ter justa razão de alterar ou por em dúvida esta mesma fé [ cân. 6]. E por
isso, dando graças a Deus Pai, que nos fez idôneos de
participar da sorte dos santos na luz [Col 1,12], não menosprezemos
tão grande vantagem, mas, pondo os olhos em Jesus, autor e consumador
da fé [Heb 12,2], conservemos firme a profissão da nossa
esperança [Heb 10,23].
1795. O
consenso constante da Igreja Católica tem também crido e crê que há duas ordens
de conhecimento, distintas não só por seu princípio, mas também por seu objeto;
por seu princípio, visto que numa conhecemos pela razão natural, e na outra
pela fé divina; e por seu objeto, porque, além daquilo que a razão natural pode
atingir, propõem-se-nos a crer mistérios escondidos em Deus, que não podemos
conhecer sem a revelação divina [cân. 1]. E eis por que o Apóstolo, que
assegura que os gentios conheceram a Deuspor meio das suas obras [Rom
1,20], discorrendo, todavia, sobre a graça e verdade que foram
anunciadas por Jesus Cristo [cf. Jo 1,17], diz: Falamos
da sabedoria de Deus em mistério, que fora descoberta e que Deus predestinou
antes dos séculos, para nossa glória. A qual nenhum dos poderosos deste mundo
conheceu..., a nós, porém, o revelou Deus pelo seu Espírito; porque
o Espírito tudo penetra, também as coisas profundas de Deus [1
Cor 7,8,10]. E o próprio Unigênito glorifica ao Pai, porque escondeu
essas coisas aos sábios e entendidos e as revelou aos pequeninos [cf.
Mt 11,25].
1796. Em
verdade, a razão, iluminada pela fé, quando investiga diligente, pia e
sobriamente, consegue, com a ajuda de Deus, alguma compreensão dos mistérios, e
esta frutuosíssima quer pela analogia das coisas conhecidas naturalmente, quer
pela conexão dos próprios mistérios entre si e com o fim último do homem;
nunca, porém, se torna capaz de compreendê-los como compreende as verdades que
constituem o seu objeto próprio, pois os mistérios divinos, por sua própria
natureza, excedem de tal modo a inteligência criada, que, mesmo depois de
revelados e aceitos pela fé, permanecem ainda encobertos com os véus da mesma
fé, e como que envoltos em um nevoeiro, enquanto durante esta vida vivermos
ausentes do Senhor; pois andamos guiados pela fé, e não pela contemplação [2
Cor 5,6 s].
1797.
Porém, ainda que a fé esteja acima da razão, jamais pode haver verdadeira
desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistérios e
infunde a fé, dotou o espírito humano da luz da razão; e Deus não pode negar-se
a si mesmo, nem a verdade jamais contradizer à verdade. A vã aparência de tal
contradição nasce principalmente ou de os dogmas da fé não terem sido
entendidos e expostos segundo a mente da Igreja, ou de se terem as simples
opiniões em conta de axiomas certos da razão. Por conseguinte, "definimos
como inteiramente falsas qualquer asserção contrária a uma verdade de fé"
[V Concílio de Latrão].
1798.
Ademais a Igreja, que juntamente com o múnus apostólico de ensinar recebeu o
mandato de guardar o depósito da fé, tem também de Deus o direito e o dever de
proscrever a ciência falsa [1 Tim 6,20], a fim de que
ninguém se deixe embair pela filosofia e por sofismas pagãos [cf.
Col 2, 8; cân 2]. Eis por que não só é vedado a todos os cristãos defender como
legítimas conclusões da ciência tais opiniões reconhecidamente contrárias à fé,
máxime se tiverem sido reprovadas pela Igreja, mas ainda estão inteiramente
obrigados a tê-las por conta de erros, revestidas de uma falsa aparência de
verdade.
1799. E
não só não pode jamais haver desarmonia entre fé e a razão, mas uma serve de
auxílio à outra, visto que a reta razão demonstra os fundamentos da fé, e
cultiva, iluminada com a luz desta, a ciência das coisas divinas; e a fé livra
e guarda a razão dos erros, enriquecendo-a de múltiplos conhecimentos. Por isso
a Igreja, longe de se opor ao cultivo das artes e das ciências humanas, até as
auxilia e promove de muitos modos. Porquanto não ignora nem despreza as
vantagens que delas dimanam para a vida humana; pelo contrário, ensina que,
derivando elas de Deus, o Senhor das ciências [1 Rs 2,3], se
forem bem empregadas, conduzem para Deus, com o auxílio de sua graça. Nem
proíbe [a Igreja] que tais disciplinas, dentro de seu respectivo âmbito, façam
uso de seus princípios e métodos próprios; mas, reconhecendo embora esta justa
liberdade, admoesta cuidadosamente que não admitam em si erros contrários à
doutrina de Deus ou ultrapassem os próprios limites, invadindo e perturbando o
que é do domínio da fé.
1800.
Pois a doutrina da fé, que Deus revelou, não foi proposta ao engenho humano
como uma descoberta filosófica a ser por ele aperfeiçoada, mas foi entregue à
Esposa de Cristo como um depósito divino, para ser por ela finalmente guardada
e infalivelmente ensinada. Daí segue que sempre se deve ter por verdadeiro
sentido dos dogmas aquele que a Santa Madre Igreja uma vez tenha declarado, não
sendo jamais permitido, nem a título de uma inteligência mais elevada, afastar-se
deste sentido [ cân. 3]. "Cresçam, pois, e multipliquem-se abundantemente,
tanto em cada um como em todos, tanto no homem individual como em toda a
Igreja, segundo o progresso das idades e dos séculos, a inteligência, a ciência
e a sabedoria, mas somente no seu gênero, isto é, na mesma doutrina, no mesmo
sentido e no mesmo pensamento" [ Vicente de Lirino, Commonitorium, nº 28.
ML 50, 668 (c. 23)].
Imprimatur por comissão especial do
Exmo. e Revmo. Sr. Dr. Manuel Pedro da Cunha Cintra, bispo de Petrópolis. Frei
Desidério Kalverkamp, O. F. M. Petrópolis, 9-1-1959
Esta
tradução de Frei Guilherme Baraúna, O. F. M., foi feita diretamente do Enchiridion
Symbolorum de Denzinger-Banwart-Umberg (24º edição), da qual
conservamos também a numeração marginal.
Fonte: http://www.montfort.org.br
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