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"“Tive assim que destruir a ciência para substituir-lhe a fé”. Nesta frase onde revê a doutrina luterana da oposição entre a razão e a fé resume-se todo o trabalho das duas Críticas." |
- Pe. Leonel Franca, S. J
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Do agnosticismo empírico nas suas diferentes modalidades passamos ao agnosticismo subjetivista que reconhece em KANT o seu iniciador nos tempos modernos. Com esta transição variam as razões fundamentais da atitude agnóstica, atenua-se notavelmente a rigidez das primeiras exclusões do positivismo ortodoxo, mas permanece ainda substancialmente idêntico o resultado final, a essência de todo o agnosticismo, constante em afirmar a impossibilidade insanável de chegarmos por via racional a uma certeza da existência de Deus.
Para o empirismo nominalista, os nossos conceitos não passam de simples imagens compósitas; os princípios racionais – e entre eles, o de causalidade – de meras associações de imagens formadas pela experiência dos indivíduos e organizadas biologicamente pela experiência da espécie (SPENCER). Axiomas de valor necessário e universal que nos permitam a certeza de conclusões transcendentes à ordem empírica, não as possuímos. A inteligência não é uma faculdade que pode elevar-se ao conhecimento do ser; seu alcance não ultrapassa o domínio dos fenômenos. Qualquer esforço para altear-nos acima do dado experimental é um querer voar no vazio: tentativa de movimento sem apoio. Esta teoria do conhecimento tolhe-nos pela raiz, com a liberdade soberana dos grandes vôos, a possibilidade de uma demonstração da existência de Deus; não chega, porém, a este resultado fatal sem haver antes destruído a própria razão e comprometido para sempre a possibilidade da própria ciência.
Bem o viu KANT, A ciência, observou ele, não pode viver sem princípios universais e necessários. É antes de tudo um fato: “é fácil mostrar que no conhecimento humano existem semelhantes juízos, necessários e universais, no sentido mais rigoroso”1. É ainda uma exigência a que nos não pudemos furtar sem aluir pela base a certeza dos próprios conhecimentos experimentais: “sem recorrer a exemplos poder-se-ia ainda ... demonstrar que estes (princípios) são indispensáveis à possibilidade da própria experiência”2. Uma teoria como a de HUME que reduzisse esta necessidade a uma simples aparência ilusória, fruto do hábito, seria no dizer textual de KANT “destrutiva de toda filosofia”3.
E eis nitidamente delineada a primeira fronteira que separa o empirismo do kantismo. Não há princípios rigorosamente universais e necessários – proclama o positivismo de todos os matizes de HUME a SPENCER, de COMTE a MILL ou TAINE. Sem estes princípios, revida KANT, não pode haver conhecimento científico; a sua existência é tão certa quanto a da própria ciência.
Até aqui de acordo. A divergência começa na explicação da possibilidade, da natureza e do alcance objetivo destes princípios. A teoria do criticismo transcendental resolve-se, em última análise, no agnosticismo e, também ela, acaba destruindo a própria ciência, ou melhor ainda a razão como faculdade do conhecimento do ser. Para demonstrá-lo, não podemos prescindir de nossa exposição sumária do sistema de KANT. Omitiremos tudo quanto não se refere diretamente ao nosso assunto, e este mesmo, reduzi-lo-emos ao essencial, aliando, quanto possível, a exatidão à clareza.
A razão de ser fundamental da Crítica da Razão Pura é resolver o grande problema que acabamos de propor; a possibilidade e os limites do nosso conhecimento científico. E como não há nem pode haver ciência sem princípios universais e necessários, o fim que se propõe KANT é a explicação destes juízos que o empirismo inconsiderado de HUME comprometera com a sua teoria superficial do associacionismo. De modo geral podemos distinguir duas espécies de juízos: analíticos e sintéticos.
Os juízos analíticos são juízos de identidade; neles o predicado não exprime outra coisa mais do que a essência do próprio sujeito. Basta analisar a idéia do sujeito para nele encontrar o predicado. Assim, por exemplo, os corpos são extensos; o atributo – extenso – nada mais acrescenta ao sujeito – o corpo – que, na sua natureza, já inclui a extensão. Estes juízos são, por isso mesmo, recíprocos; os seus termos podem inverter-se como os de uma identidade. São necessários e universais, imediatamente baseados no princípio de contradição; enquanto uma coisa é o que é não pode deixar de ser o que é; enquanto o corpo for corpo não poderá deixar de ser extenso. No ponto de vista científico, sua importância é somenos; estas preposições são apenas explicativas não extensivas do conhecimento; podem esclarecer uma idéia apresentando-a sob vários aspectos mas não ampliam nem enriquecem o tesouro do saber.
Outra é a natureza dos juízos sintéticos.. Aqui, o predicado acrescenta ao sujeito algo de novo; nenhuma análise é capaz de encontrar um termo no outro. A inteligência realiza uma verdadeira síntese dos dois. Qual a lei que explica e justifica esta síntese? Por que motivos atribuímos a um determinado sujeito um predicado que é estranho à sua natureza. Nos juízos analíticos o princípio de identidade é uma garantia de sua certeza absoluta; e, por isso, um juízo deste gênero não pode ser falso sem ser, ao mesmo tempo, contraditório. Qual a razão que justifica a síntese intelectual nos outros que podem ser falsos e não contraditórios? Examinemo-los mais de perto.
Alguns destes juízos são particulares e contingentes; esta pedra, exposta ao sol, está quente; doe-me a cabeça. Nestes casos, a experiência, a percepção externa ou interna, Wahrnehmung, constitui um motivo suficiente da afirmação. A síntese faz-se aqui em virtude de um motivo a posteriori; chamemo-los, por isto, juízos sintéticos a posteriori; Seu valor científico, porém, é nulo; não é de semelhantes afirmações particulares que só se verificam num determinado ponto do espaço e do tempo que se constitui a ciência.
Os princípios científicos apresentam outros caracteres; são necessários e universais, por um lado, e, por outro, não são analíticos, não são explicativos mas extensivos do saber. Porque neles o predicado se acrescenta por uma verdadeira justaposição ou composição de uma idéia que não se encontra na análise do sujeito, chamemo-los sintéticos; porque, universais e necessários, não podem ter, na experiência, particular e contigente, a razão desta síntese, denominemo-los sintéticos a priori.
Dificilmente poderia exagerar-se a importância capital destes juízos, que, pelos caracteres acima indicados, são os que constituem verdadeiramente a ciência. E, percorrendo as diferentes ciências, físicas e matemáticas, julga KANT haver demonstrado que todos os seus princípios são juízos sintéticos a priori.
Explicar-lhes a possibilidade é, pois, explicar a possibilidade da própria ciência. Para tão momentosa tarefa, o filósofo de Koenigsberg não julga demasiada a constituição de uma nova ciência, que ele fundou e a que deu por título: Crítica da Razão Pura4.
Já é conhecida a resposta dada pelo fundador do criticismo a esta questão fundamental. Conhecimento a priori, diz ele, é todo aquele que é necessário e universal, e, por isso, não tem sua explicação adequada na experiência que só nos oferece casos singulares. Estes caracteres, porém, que não têm sua origem no objeto conhecido, advêm-lhe do sujeito que conhece. Anterior a qualquer experiência, existem em nós umas tantas disposições que condicionam a experiência e a tornam possíveis e, por isso mesmo, se podem afirmar necessária e universalmente de todo o objeto experimentado, como de modo necessário e universal podemos afirmar que se acha na trajetória da bala a caça abatida, qualquer que seja, de pena ou de montaria. Estas condições KANT chamou-as formas a priori do conhecimento e num esforço ingente de sistematização deu-se ao trabalho de inventariar-lhes um catálogo completo, onde se estadeia todo o seu gosto pelas simetrias arquitetônicas. Duas formas na sensibilidade: o espaço e o tempo, a primeira da sensibilidade externa, a outra da sensibilidade interna; Doze no entendimento, as categorias, simetricamente dispostas em grupos de três segundo as diversas formas do juízo da tabela leibniziana; Três da Razão pura, as idéias de Deus, do Mundo e do Eu; Duas ainda na faculdade do juízo: a do belo e da finalidade.
Eis agora como se explica o mecanismo do conhecimento. A realidade externa, cuja natureza, em si, permanecerá sempre para nós uma incógnita impenetrável, impressiona a nossa sensibilidade que a esta matéria informe aplica a forma do espaço – não há objeto de experiência senão localizado no espaço – e a forma do tempo – toda a percepção para ser consciente vem inserir-se na continuidade sucessiva dos estados psíquicos. Desta primeira síntese resultam as intuições da sensibilidade, que legitimam a existência das matemáticas. Delas se ocupa a Estética transcendental.
As instituições da sensibilidade são, por sua vez, submetidas ao entendimento, Verstand, onde se encontram as doze formas a priori, chamadas categorias, não no sentido aristotélico de “subdivisões do ser”, mas na acepção etimológica de “modos de afirmar”. Graças às categorias, realizam-se as novas sínteses de causalidade, possibilidade, unidade, pluralidade, etc. A sua existência explica a possibilidade da física, no sentido amplo de ciências da natureza. O seu estudo constitui objeto da Analítica transcendental.
Com esta explicação, inverte-se completamente a noção de conhecimento que, de uma representação passa a ser uma construção do objeto. As coisas, não as conhecemos como são em si, mas através das formas que lhes aplicamos. A natureza é parcialmente criação do espírito. Pelo uso pré-consciente ou, na linguagem de KANT, transcendental das formas de conhecimento nós construímos o objeto, só assim construído, o tornamos suscetível de experiência. A necessidade e universalidade das afirmações científicas não resultam da realidade, mas apenas das condições subjetivas inseparáveis da nossa natureza. 2 + 2 = 4 não representa uma verdade objetiva, mas, tão-somente, para nós, uma impossibilidade física de pensarmos diversamente.
Quanto ao alcance do nosso saber são óbvias também as conseqüências. O mundo que nos é acessível é unicamente o dos fenômenos enquanto fenômeno diz o real na medida que se adaptou às nossas condições subjetivas de percepção. A realidade em si, o noumenon é e permanece sempre impérvio às possibilidades do conhecimento. Tudo o que não estiver no tempo e no espaço acha-se “fora das condições de uma experiência possível”. O princípio de causalidade é, para KANT, sintético a priori; vale, como necessário e universal no domínio da física; qualquer esforço para com este princípio, transcender a ordem dos fenômenos, está de antemão condenado à impotência sem remédio.
No entretanto, no trabalho ascendente de unificação do saber não descansamos ainda nos juízos condicionados pelas categorias do entendimento. A razão tende naturalmente a ir além e a procurar a explicação derradeira do relativo no absoluto, do condicionado no incondicionado. A esta função sintética superior servem as “idéias” da razão, Vernumft. Assim, a idéia cosmológica do universo é a condição incondicionada dos fenômenos externos; a idéia psicológica da alma, a condição incondicionada dos fenômenos internos; a idéia teológica de Deus, o absoluto onímodo, condição incondicionada de toda a existência. O movimento do espontâneo da nossa razão leva-nos a conceber Deus como o primeiro dos seres, um ideal sem defeitos que vem dar o todo o edifício do conhecimento o seu remate natural e a sua suprema unidade. Esta demonstração metafísica, porém, é ilusória, não passa de um puro jogo dialético a que nenhuma realidade corresponde. As “idéias” da razão são, conceitos vazios, Begriffe, uma pura essência, sem existência, são como focos imaginários para os quais tendem todos os raios do pensamento, mas sem nenhuma realidade. Elas não se aplicam, como as categorias do entendimento, a intuições da sensibilidade. Onde, por hipótese, como precisamente no caso da razão, o objeto do saber se acha fora do espaço e do tempo, aí já não é possível nenhuma experiência e portanto as formas a priori ficam sendo puras formas do pensamento, sem nenhum conteúdo de realidade. As idéias do “mundo”, da “alma”, de “Deus” permanecem como supremos “princípios reguladores” que estimulam o espírito à unificação do saber. Sua função é reduzir à unidade sistemática a variedade dos nossos conhecimentos. Tudo de fato se passa para a nossa razão como se (als ob) atrás dos fatos de consciência existisse um eu, como se os fenômenos externos fossem parte de um todo determinado, como se acima dos seres finitos e contingentes existisse um Ser supremo e necessário. Esta, porém, é uma função puramente ideal. A razão não é faculdade capaz de atingir o absoluto. A suas “idéias”, formas puras, não podemos afirmar corresponda alguma realidade objetiva5. Assim Deus, realidade, se acha fora do alcance da razão pura, tão incapaz de provar-lhe, quanto de negar-lhe a existência. Como o teísmo racional, o ateísmo é uma tentativa ilusória.
Se, ultrapassando os seus limites naturais, a razão quiser atribuir às “idéias” uma realidade extramental, incorrerá em antinomias insolúveis. Achar-se-á diante de proposições contraditórias, acerca de um mesmo objeto, provadas com igual peso de razões. E KANT desenvolve aqui estas antinomias – teses e antíteses – nas quais vê mais uma confirmação dos resultados de sua crítica, mais uma prova da impossibilidade de atingir a Deus com a razão demonstrativa, impotente para as ressalvas6.
Conclusão da Dialética Transcendental: não é possível uma metafísica do futuro, cujos prolegômenos escreveu KANT será exclusivamente uma metafísica crítica, tendo por objeto determinar os limites naturais e intransponíveis das nossas possibilidades de saber.
Um agnosticismo sem esperanças no domínio especulativo, eis a conclusão da Crítica da Razão Pura.
A obra de KANT, porém, ainda não está completa. Ao agnosticismo especulativo vai suceder o dogmatismo moral. O que os olhos da razão pura não se afigurava senão como ideal, como hipótese inverificável e inafirmável, passa para a razão prática a ter uma existência real. É, na construção do mundo das realidades transcendentes, a afirmação do Primado da Vontade sobre a Inteligência.
O dever é a grande realidade da nossa vida moral. O imperativo categórico impõe-se à consciência como um absoluto. Faze o teu dever. Um imperativo hipotético ou condicionado – faze isto se queres aquilo – destruiria o dever, substituindo-o ao meu bel-prazer. Tudo, portanto, o que condiciona a existência do dever, constitui um postulado indispensável da vida moral. Ora, não podemos conceber a virtude senão como unida indissoluvelmente à felicidade. O justo, o santo definitivamente infeliz repugna à nossa justiça. Por outro lado, porém, moralidade e felicidade são heterogêneas, pertencem a ordens distintas e irredutíveis. Agir em vista de uma recompensa, ser virtuoso para ser feliz, é imoral. A felicidade visada como fim de uma ação destrói-lhe a moralidade. O dever pelo dever: eis a fórmula austera da obrigação moral. Destarte, porém, como a ordem da virtude não pode, sem negar a si mesma, levar à ordem da felicidade, é mister que exista um Ser inteligente e onipotente, capaz de realizar a união definitiva da virtude e da felicidade. Este Ser não pode ser outro senão o Criador do homem: Deus. É portanto necessária e legítima a afirmação da existência de Deus7/
Por um processo análogo chega KANT a estabelecer também a liberdade e a imortalidade da alma. Existência de Deus, liberdade e imortalidade da alma constituem assim os três requisitos indispensáveis à nossa vida moral. A razão pura chegava apenas a conceber estas realidades metafísicas, como possíveis, sem asconhecer; a razão prática afirma-as não como objeto de ciência mas como exigência prática. A ordem das realidades transcendentes que para a razão especulativa ficava no domínio do problemático, passa a ter um valor objetivo, em face do uso prático da razão. O processo ético precisa destas realidades metafísicas e pede sua afirmação à razão especulativa que só as havia podido conceber8. Afirmar sem saber, eis o que para KANT se chama crer. Estas verdades fundamentais não são, pois, objeto de ciência mas de crença, e as proposições teóricas em que se enunciam estas afirmações chamam-se postulados9.
“Tive assim que destruir a ciência para substituir-lhe a fé”10. Nesta frase onde revê a doutrina luterana da oposição entre a razão e a fé resume-se todo o trabalho das duas Críticas. Tive que destruir a ciência – é o resumo da Crítica da Razão Pura. Deus não pode ser objeto de ciência: o conhecimento humano de sua natureza circunscreve-se à esfera da experiência atual ou possível. A metafísica, que por definição se priva de toda a intuição sensível, não é uma ciência, um conhecimento objetivo. As “idéias” de que se ocupa são puras formas sem matéria real. A razão especulativa julga atingir o ser, de fato, manipula apenas as suas “idéias” ou formas vazias num jogo dialético de perpétuas ilusões. “Para substituir-lhe a fé” – eis a função da Razão prática. O agnosticismo especulativo deve ser completado com o dogmatismo moral11. Aqui a existência de Deus é afirmada como uma exigência prática da ação. Esta adesão subjetiva reconduz-nos ao mundo do absoluto e das realidades transcendentes inacessíveis à razão pura.
Como se vê, o agnosticismo moderno no seu duplo aspecto: desconfiança dos argumentos racionais, supervalorização dos motivos alógicos e práticos – reconhece em KANT o seu verdadeiro indicador.
Não nos é possível fazer aqui uma crítica pormenorizada de toda esta grande sistematização filosófica. Uma discussão analítica cerrada mostraria facilmente como os noumenous e fenômenos, as categorias e as idéias, os a priori e os transcendentais – todas estas ilustres personalidades do kantismo não podem dar um passo sem tropeçar em contradições imanentes inelutáveis.
Em vez de uma ofensiva em todos os setores, limitar-nos-emos, para os fins que levamos em mira, a uma crítica de princípios e de fundamentos. Ver uma dificuldade até à raiz e resolvê-la integralmente, que prazer para a inteligência! Que paz interior para a alma!
O ponto de partida da Crítica é a existência dos juízos sintéticos a priori. Daí inicia ele o exame das condições do conhecimento a priori em geral, para explicar-lhe a possibilidade por meio das formas subjetivas. KANT não desconheceu esta importância capital. “O que de mais desastroso poderia suceder a estas investigações é que alguém fizesse a descoberta inesperada que não existe nenhum conhecimento a priori. Mas deste lado não há nenhum perigo”12. Em outra obra confessa que se alguém demonstrasse a falsidade de sua concepção relativa aos juízos que ele chamou sintéticos a priori, com isto “poria fim a toda a sua crítica e o obrigaria a voltar aos antigos métodos”13.
Ora, estes juízos sintéticos a priori não existem. A descoberta inesperada que seria fatal ao sistema é uma realidade. A razão alegada pelo kantismo em seu favor é a existência de proposições que, por um lado, não são analíticas, não se podem explicar pela conexão interna entre o sujeito e o predicado e, por outro, por serem universais e sucessivas não têm ou não podem ter na experiência o motivo do assentimento do intelectual. Ora, se a experiência enquanto objeto apenas da sensibilidade não nos oferece mais que a sucessão de fatos particulares, submetida à abstração intelectual é capaz de fundar um juízo universal e necessário. A inteligência é dotada do poder de abstrair, isto é, de considerar num objeto alguns dos seus aspectos e omitir outros ou prescindir deles. Ante os objetos concretos e singulares podemos abstrair daquilo que os concretiza e individua e considera apenas o que os especifica, isto é, a sua natureza, prescindindo do modo por que ela aqui ou ali se realiza. Em face de vários triângulos, os sentidos percebem um e outro e outro, cada um com as suas características próprias pelas quais se distingue dos demais; a inteligência abstrai daquilo que é próprio de cada um e considera só o que pertence ao triângulo, como tal, a uma superfície limitada por três retas que se cortam. Nesta noção geral do triângulo vê, por exemplo, que equivale à metade de um paralelogramo da mesma base e da mesma altura e que, portanto, a sua área é dada pelo semiproduto da base pela altura. Este resultado é universal e necessário, verifica-se em todos os triângulos, atuais ou possíveis, porque é uma conseqüência que decorre da própria natureza do triângulo: verificar-se-á necessariamente onde quer que haja triângulos. Para elevar-se a este conhecimento necessário e universal bastou à inteligência abstrair a idéia, a noção de um objeto das condições de espaço e de tempo que a singularizam nos diferentes indivíduos. Destarte explicam-se perfeitamente os caracteres de universalidade e de objetividade do conhecimento científico. A objetividade resulta dos elementos sensíveis da realidade experimentada ou atingida em si mesma, a universalidade da purificação destes dados sensíveis pela inteligência que, prescindindo dos caracteres individuantes conserva a noção em sua pureza e generalidade específica.
Esta explicação tão simples e tão compreensiva, tão coerente e tão em harmonia com os dados da consciência, clássica na história da filosofia, KANT desconhece-a por completo. Todas as vezes que se lhe oferece o ensejo de confrontar a sua tese com outras doutrinas filosóficas só lhe ocorrem na pena o empirismo, de LOCKE ou de HUME, o inatismo de LEIBNIZ, ou o ontologismo de MALEBRANCHE. Aos seus olhos, num esquematismo excessivamente simplificador, PLATÃO personifica o apriorismo, ARISTÓTELES o empirismo. Esta ignorância quase completa da história do pensamento humano foi uma das lacunas mais sensíveis e mais prejudiciais na formação do solitário de Königsberg. Reconhecem-no os seus melhores biógrafos e mais entusiastas admiradores14. Consolam-se, porém, com a idéia de que esta ignorância salvou a sua originalidade.
Deste desconhecimento, porém, do estado a que já chegara historicamente a questão resultou o não levar ele em consideração mais que as duas teorias extremadas e insuficientes do empirismo e do idealismo, uma, pedindo unicamente aos dados sensíveis a chave de toda a vida do espírito, outra, vendo na atividade da inteligência a fonte única de todos os conhecimentos. A doutrina verdadeira, que recorre ao concurso harmonioso do espírito e da realidade, da inteligência e dos sentidos e explica assim a possibilidade de uma ciência real, sem lhe sacrificar nem a objetividade com o idealismo, nem a necessidade e universalidade com o empirismo, esta, KANT nem a descobriu por um esforço pessoal nem a conheceu já descoberta por outrem.
A diferença de envergadura filosófica entre ARISTÓTELES e KANT ressalta aqui evidente. No século XVIII o pensador de Königsberg achava-se em face do problema da possibilidade do saber científico, comprometida pelo inatismo cartésio-leibniziano e pelo empirismo locke-humiano, em condições muito semelhantes às em que se achara, no século IV antes da nossa era, o filósofo de Estagira, entre o idealismo de PLATÃO e o empirismo fenomenista de HERÁCLITO. O grego, com o vigor de sua genialidade, pela primeira vez, na história do pensamento, deu a solução do problema, definitiva na suas linhas gerais; o alemão, não só não a encontrou por si – falta de originalidade criadora – ma nem sequer a conheceu já existente – lacuna imperdoável de erudição. Enveredou por um caminho novo que não devia nem podia levá-lo ao termo desejado.
Ora enquanto se não demonstrar a ineficácia da explicação por meio da abstração intelectual, evidentemente atestada pela nossa experiência psicológica, fica suspensa no ar, como construção sem alicerce, toda a teoria do criticismo transcendental. A impossibilidade de explicar por outra via a existência do conhecimento científico – título capital por ele apresentado à adesão da inteligência – é um falso suposto. Damos mais um passo e para rigor de metodologia científica observamos ainda quando se demonstrasse a insuficiência da teoria da abstração, nem por isso se seguiria a necessidade imediata de admitir a solução das formas a priori do criticismo. Semelhante solução não se imporia senão depois de demonstrada a impossibilidade de qualquer outra teoria explicativa. Esta demonstração imprescindível não só não a deu KANT, mas nem sequer tentou dá-la, nem mesmo suspeitou a necessidade lógica de dá-la. Toda a sistematização arquitetônica da Crítica da Razão Pura, é, pois, uma construção sem fundamento. O que ela supõe ou assume – a impossibilidade de explicar de outro modo os caracteres de necessidade e universalidade do conhecimento científico – é simplesmente falso; todo o esforço intelectual provocado por esta falsa suposição não tem razão de ser.
KANT continua a sua tarefa e procura mostrar em concreto a existência dos juízos sintéticos a priori nas diferentes ciências. Tais são, diz ele, todas as proposições da matemática, da física e da metafísica.
Ora, nenhuma destas afirmações resiste à crítica. Ao caráter analítico do princípio de causalidade que mais de perto nos interessa consagraremos o parágrafo seguinte. Os princípios da física newtoniana são hoje universalmente reconhecidos como princípios sintéticos, obtidos por indução como as outras leis das ciências positivas. Os princípios matemáticos são simplesmente analíticos. Tomemos o exemplo e examinemos as considerações de KANT. 7 + 5 = 12, diz ele, não é um juízo analítico; não se baseia no princípio de contradição nem é possível obter-se o predicado pela simples análise do sujeito. Do sujeito encontramos apenas a idéia de uma soma 7 + 5, não a natureza desta soma; para obtê-la é mister recorrer a uma intuição no espaço15. Nada mais falso; analisemos o sujeito. 7 = 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1; 5 = 1 + 1 + 1 + 1 + 1. Desta simples análise da definição do sujeito resulta a idéia do predicado 12. A identidade é perfeita, e a inteligência a vê não mediante uma demonstração que compare os extremos com um termo médio distinto, mas pela simples análise imediata da noção dos termos. Enquanto o princípio de identidade A = A for a expressão fulgurante da evidência; enquanto o princípio de contradição “A não pode ser e não ser A ao mesmo tempo”, for a condição lógica de inteligibilidade das coisas e ontológica de sua existência, 7 + 5 = 1216. Estamos em presença de um princípio evidentemente analítico. KANT não conseguiu demonstrar a existência de um só juízo sintético a priori, existência que, por confissão sua, deveria constituir o objeto da nova ciência.
Não existem, pois, juízos sintéticos a priori; nem poderiam existir sem destruir pela raiz a própria natureza do conhecimento. O juízo é uma afirmação de identidade expressa pelo verbo ser; em ver uma coisa idêntica a si mesma sob dois aspectos diferentes consiste essencialmente o conhecimento. Conhecer um triângulo é saber que é esta determinada figura de três lados. Ora esta identidade não a pode afirmar a inteligência, sem vê-la – ou na análise das noções – juízos analíticos – ou na experiência das coisas existentes – juízos sintéticos. Afirmar uma identidade que se não vê, pela aplicação de formas subjetivas a priori, por uma síntese preconsciente ou inconsciente entre elementos que se não conhecem é destruir todo o conhecimento, fazendo de afirmações sem razão suficiente a própria condição da ciência. Instala-se assim o irracional na estrutura mais íntima da nossa vida racional. O juízo que se não legitimasse por uma das duas evidências objetivas – evidência analítica ou experimental – seria um ato inexplicável sem motivo suficiente, nem justificação crítica. Fazer destes juízos a condição da ciência não é explicar, é destruir a ciência. E este é na realidade o resultado final da Crítica da Razão Pura17.
A estrutura do conhecimento humano tal qual foi arquitetada pelo solitário de Königsberg não suporta a cúpula de uma demonstração racional da existência de Deus, mas não chega a esta conclusão agnóstica sem arruinar pela base toda a nossa vida intelectual. Ruiu a teodicéia racional, mas com ela, todo o edifício científico. Não conhecemos a Deus, mas também não conhecemos a nenhuma outra realidade. O mundo e o homem serão para sempre incógnitas indecifráveis; nega-se a inteligibilidade radical do ser, nega-se a inteligibilidade dos mesmos fenômenos. A própria existência de uma realidade extramental KANT não a pode afirmar senão a preço de uma contradição imanente. JACOBI, contemporâneo de KANT e um dos primeiros e mais atilados críticos de sua obra, escreveu com acerto: “Sem a suposição das coisas em si, não posso entrar no sistema; com esta suposição, nele não posso ficar”18. FICHTE, entre os contemporâneos do filósofo, COHEN em nossos dias, viram esta impossibilidade e, por isto, enveredaram para o idealismo absoluto como conseqüência lógica do kantismo. O solipsismo mais desesperador, que isolaria cada inteligência em si mesma sem possibilidade de entrar em contato com o mundo das coisas e no convívio com as outras inteligências, seria o paradeiro fatal desta filosofia destruidora. Um imenso polvo a bracejar no vazio os longos tentáculos em esforço eternamente estéril de aferrar uma consistência; eis a imagem da inteligência humana na filosofia nevoenta deste filho das nórdicas brumas.
Desta concepção da inteligência nascem todas as lutas e antinomias, todas as incompatibilidades e divórcios que desvirtuam a síntese kantista. A unidade harmoniosa, filha da sabedoria que sabe ordenar, sucedem os contrastes de dualismo inconciliáveis. Dualismo entre os sentidos e a inteligência; entre a razão teórica e a razão prática; entre o mundo interior do espírito e o mundo externo da matéria; entre a liberdade noumênica e o determinismo dos fenômenos; entre a virtude e a tendência à felicidade; entre a moralidade e a religião; entre a filosofia e a vida.
As antíteses vão por vezes a dilaceração da ruptura ao que há em nós de mais profundo e inextirpável. Aspiramos irresistivelmente à felicidade que reside na perfeição da natureza, mas não podemos agir em vista da perfeição que felicita porque ofendemos a moral que é a lei do homem. As questões metafísicas impõem-se à razão com uma necessidade natural inevitável, mas resolve-las é emaranhar-se em contradições insolúveis. Deus é indispensável para a coroa da ordem moral mas agir por amor de Deus é uma heteronomia que torna imoral a ação e desvirtua a autonomia da vontade. Sem Deus, sem liberdade, sem imortalidade não podem viver as consciências, mas a razão pura declara que a afirmação objetiva destas realidades implica antinomias inextricáveis.
Nunca se fez à unidade, à harmonia, ao equilíbrio sadio da personalidade humana violência mais dolorosa nem mais funesta.
Pela sua teoria gnoseológica, pela separação entre a esfera do pensamento especulativo e as exigências da vida moral, KANT é talvez o filósofo que mais contribuiu para a difusão moderna do agnosticismo. Não é difícil estabelecer as transições dialéticas e o itinerário histórico entre o kantismo de um lado e de outro o protestantismo liberal, o pragmatismo e o modernismo. SCHLEIERMACHER e RITSCHL sentiram poderosamente a influência de KANT, SPENCER, LITTRÉ e os agnósticos ingleses mais recentes reportam-se às suas críticas da teodicéia racional como a resultados definitivamente adquiridos pela filosofia19. A desconfiança nas forças nativas da inteligência, a supervalorização dos motivos alógicos, sentimentais e pragmatistas – que encontramos como características de uma parte do moderno pensamento religioso – prendem as suas raízes mais profundas nas duas Críticas de E.KANT. “É absolutamente necessário que nos compenetremos da existência de Deus, mas não é tão necessário que a demonstremos”20.
BIBLIOGRAFIA – A. VALENSIN, S. J. , A travers la Métaphysique, Paris, 1925, kantiana, pp. 1-76; J. GEYSER, Einige Hauptprobleme der Metaphysik mit besunderer Bezugnahme auf die Kritik Kants, Freiburg i. B., 1923; J.MARECHAL, Le point de depart de la métaphysique, Cahier III, La critique de Kant, Paris, 1923; C. SENTROUL, L’Objet de la métaphysique selon Kant et selon Aristote, Louvain, 1905; B. JANSSEN, Le Philosophie religieuse de Kant, tr. Chaillet, Paris, 1934; KNULPE, Immanuel Kant, Leipzig, 1927; E. BOUTROUX, La Philosophie de Kant, Paris, 1926. Uma bibliografia copiosa sobre KANT em Ueberweg, Grundriss der Geschichte der Philosophie, III, Berlin, 1924, 709-758.
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