Os
argumentos da Nova Liturgia foram elegantemente condicionados, e talvez agora
sejam estudados por recomendação. A nova forma da missa foi planejada para
empenhar o celebrante e o fiel numa atividade comunal. No passado, o fiel
servia a missa em isolamento pessoal, com cada crente fazendo suas preces
privadas, ou, na melhor, seguindo as fórmulas no missal. Hoje, o fiel pode
aproveitar o caráter social da celebração; estão aprendendo apreciá-la tal
quais os almoços comunitários.
Antigamente,
o sacerdote murmurava em língua morta, o que criava barreiras entre este e o
povo. Agora, todos falam em inglês, o que tende a unir estreitamente povo e
sacerdote. No passado, o sacerdote realizava a missa de costa para o povo,
dando um clima de ritual esotérico. Hoje, a missa é ocasião mais fraternal,
pois o sacerdote encara o povo. No passado, o sacerdote entoava estranhos
cânticos medievais. Hoje, toda a assembléia executa canções de melodias simples
e letras fáceis; estão até flertando com a música popular. Concluindo, o pleito
pela missa nova resume-se a isto: fazer o fiel estar mais a vontade na casa de
Deus.
Além do
mais, dizem ter tais inovações a sanção da Autoridade; elas são apresentadas
como resposta obediente ao espírito do Concilio Vaticano II. Todavia, o
concílio diz, na sua constituição sobre liturgia, que a missa vernacular só é
permitida em casos em que o bispo local ache-a oportuna; a constituição insiste
fortemente na permanência da missa latina e aprova, de forma inconteste, o
canto gregoriano. Porém, os "progressistas" litúrgicos não se
abalaram com a diferença entre permitir e ordenar. Sequer hesitaram quando
autorizaram modificações, tais como o estar de pé ao receber a Santa Comunhão,
o que não é mencionado pela constituição. Os progressistas argúem que podem
tomar tais liberdades, pois a constituição é, afinal de contas, apenas o
primeiro passo num processo evolucionário. Eles parecem estar neste caminho.
Hoje, em qualquer lugar, é mui difícil encontrar a missa latina; nos Estados
Unidos, são praticamente inexistentes. Até a missa conventual dos monastérios é
falada em vernáculo, e o glorioso gregoriano foi substituído por melodias
insignificantes.
Minha
preocupação não é com o estatuto legal das mudanças. Insisto: não quero dar a
entender que reclamo de a constituição ter permitido o vernáculo substituir o
latim. O que deploro é que a missa nova está substituindo a latina, que a
antiga liturgia está sendo imprudentemente estraçalhada e negada pela maioria
do povo de Deus.
Gostaria
de levantar algumas questões àqueles que estão a promover tais desdobramentos:
a missa nova, , melhorará o espírito humano mais que a antiga – evoca o sentido
de eternidade? Ajudará a elevar nossos corações acima das preocupações mundanas
– acima dos aspectos puramente naturais do mundo – até a Cristo? Aumentará a
reverência, a apreciação do sagrado?
Certo,
tais questões são retóricas e auto-evidentes. Fi-las, pois penso que cristãos
sérios vão querer considerar sua importância antes de chegarem a uma conclusão
sobre os méritos da nova liturgia. Qual o papel da reverência numa vida
verdadeiramente cristã, e, mais importante, numa verdadeira adoração cristã de
Deus?A reverência dá ao ser ocasião de falar conosco: a grandeza última do
homem é ser capax Dei. A reverência é de importância capital para todos os
domínios da vida do homem. Ela pode ser chamada corretamente de "mãe de
todas as virtudes", pois esta atitude básica pressupõe todas as virtudes.
O gesto mais elementar de reverência é um reflexo do próprio ser. Ela
distingue-se da majestade exterior do ser, que provém da mera ilusão ou ficção;
a reverência é o reconhecimento da consistência interior e da positividade do ser
– de sua independência às modas arbitrárias. A reverência dá ao ser a ocasião
de desdobrar-se para como que falar conosco, fecundar nossas mentes. Portanto,
a reverência é indispensável a qualquer intelecção adequada do ser. A
profundidade e a plenitude do ser, além de todos os seus mistérios, nunca
revelar-se-ão senão a uma mente reverente. Recordem-se de que a reverência é
elemento constitutivo da capacidade de "contemplar", que, como Platão
e Aristóteles insistiam, é condição indispensável para a filosofia. De fato, a
irreverência é a principal origem do erro filosófico. Se a reverência é a
condição necessária para qualquer conhecimento seguro do ser, é, além disso,
indispensável para acessar e compreender os valores baseados no ser. Somente o
homem reverente, pronto a admitir a existência de algo maior que ele mesmo e
predisposto ao silêncio, deixando o objeto falar-lhe – o homem que abre seu
espírito – é capaz de penetrar no mundo sublime dos valores. Reconhecida a
gradação dos valores, um novo tipo de reverência surge: a que responde não
tão-somente à majestade do ser enquanto tal, mas ao valor especifico de um ser
especifico e a sua posição na hierarquia de valores. Esta nova reverência
permite ainda a descoberta de novos valores.
Somente
numa atitude reverente o homem reflete seu caráter essencialmente receptivo:
sua grandeza última é ser capax Dei. Em outras palavras, o homem possui a
capacidade de apreender algo maior que ele mesmo, a fim de ser tocado e
fecundado, abandonando-se a este algo por vontade própria – como pura resposta
a tais valores. A habilidade de transcender-se distingue o homem da planta e do
animal; este último empenha-se apenas em desdobrar a própria enteléquia
[forma]. Ora, somente o homem reverente pode conscientemente transcender-se,
conforme sua condição humana fundamental e situação metafísica. Melhor iremos
ao encontro do Cristo elevando-nos a Ele, ou arrojando-O no mundo ordinário?Por
sua vez, o homem irreverente aproxima-se do ser numa atitude de superioridade
arrogante ou atrevida, de familiaridade presunçosa. Neste caso, está mutilado;
é o caso do homem que, por muito se aproximar duma árvore ou construção, não
pode mais vê-las. Em vez de manter a distância espiritual que lhe é própria –
conservando um silêncio reverente, o ser talvez diga alguma coisa –, fecha-se;
desta feita, silencia o ser. No incondicionado, a reverência é mais importante
que a religião. Sabemos como isso afeta a relação do homem para com Deus.
Existe uma ligação íntima entre a reverência e a sacralidade; a reverência
permite-nos experimentar o sagrado, ascender para além do profano; a
irreverência cega-nos a todo o mundo do sagrado. A reverência, incluindo o medo
– em verdade, temor e tremor – é a resposta adequada ao sagrado.
Isso foi
esclarecido por Rudolf Otto em seu famoso estudo The Idea of the Holy.
Kierkegaard também chama atenção para o papel essencial da reverência no ato
religioso, no encontro com Deus.
Igualmente,
os judeus não estremecem profundamente quando o sacerdote conduz o sacrifício
para o sanctum sanctorum? Isaias não estremeceu de medo devoto quando viu Jeová
no templo e exclamou: "Ai de mim, estou perdido! Eu que sou um homem de
lábios impuros... todavia meus olhos não viram o Rei"? Não foram tais as
palavras de São Pedro após a pescaria miraculosa: "Aparta-se de mim, oh!
Senhor, pois eu sou um pecador", testificando que quando a realidade de
Deus irrompe sobre nós, somos tomados de temor e reverência? O cardeal Newman
expôs num sermão formidável que o homem que não teme nem reverencia não conhece
a realidade de Deus. Quando São Boaventura escreve no Itinerarium Mentis ad
Deum que somente o homem de desejo (tal como Daniel) pode entender a Deus, quer
dizer que certa disposição de alma deve-se atingir a fim de entender o mundo de
Deus, para o qual Ele nos quer levar. Este conselho é aplica-se, sobretudo, à
liturgia da Igreja. O sursum corda – a elevação de nossos corações – é o
primeiro requisito para a participação real na missa. Nada melhor para impedir
a confrontação do homem para com Deus que a noção de "irmos ao altar de
Deus" como se fôssemos a um divertido e relaxante compromisso social. Eis
porque a missa latina com canto gregoriano, que eleva-nos à atmosfera sagrada,
é muitíssimo superior à missa vernacular com músicas populares, que nos inclina
a uma atmosfera meramente natural e profana.
O erro
fundamental da maioria das inovações é imaginar que a nova liturgia traz o
Santo Sacrifício da Missa para perto dos fiéis; que a podando dos velhos
rituais trará a missa para a substância de nossas vidas. Perguntamos se é
melhor encontrar com Cristo na missa elevando-se até Ele, ou arrojando-O em
nosso mundo prosaico e ordinário. Os inovadores substituem a sacra intimidade
com Cristo por uma inconveniente familiaridade. Realmente, a nova liturgia
ameaça frustrar a confrontação com Cristo, pois desencoraja a reverência em
face do mistério, elimina o temor, suprime o sentimento do sagrado. Não importa
realmente se os fiéis sentem-se em casa na missa, mas se são transportados de
suas vidas ordinárias para o mundo do Cristo – seja pela sua atitude de
reverência perfeita, seja por estarem impregnados da realidade do Cristo.
Aqueles
que decantam a nova liturgia insistem que, com o passar dos anos, a missa
perdeu o caráter comunal e tornou-se ocasião de adoração individualista. A
missa nova vernacular restauraria o sentimento de comunidade ao substituir as
preces privadas pela participação da comunidade. Porém, esquecem-se de que há
diferentes níveis e tipos de comunhão com outrem. O nível e a natureza da
experiência comunitária são determinados pelo tema da comunhão, em nome de que
ou por causa de que os homens estão reunidos. O maior bem representado pelo
tema, o qual empenha todos os homens, se for o mais sublime e profundo, é a
comunhão. O ethos e a natureza da experiência comunitária no caso duma
emergência nacional é, obviamente, radicalmente diferente da experiência
comunitária num cocktail. As diferenças mais admiráveis serão encontradas entre
comunidades cujo tema é o sobrenatural ou o meramente natural. A base da união
comunitária é realização espiritual dos homens tocados por Cristo – a Santa
Comunhão – , muito mais sublime que a de qualquer comunidade natural. O genuíno
"nós comungamos" dos fiéis, tão bem expressado pela liturgia da
Quinta-feira Santa nas palavras congregavit nos in unum Christi amor, só é
possível como fruto da comunhão eu-Tu com o próprio Cristo. Somente a relação
direta Deus-homem pode realizar a sagrada união entre os fiéis.
O
"nós-experimentamos" despersonalizante é uma versão perversa da
comunidade.
Na
comunhão em Cristo, não há a auto-afirmação encontrada nas comunhões naturais.
Ela exala a Redenção. Liberta o homem de toda auto-centralização. Contudo, essa
comunidade não despersonaliza o indivíduo: longe de dissolver o sujeito numa
névoa cósmica e panteísta, tão preconizada hoje em dia, realiza por completo o
verdadeiro eu do sujeito. Na comunhão com Cristo não existe o conflito entre a
pessoa e a comunidade, que se apresenta nas comunhões naturais. Logo, a
comunidade da experiência sagrada está realmente em guerra com o
despersonalizante "nós-experimentamos" encontrado nas congregações e
nas assembléias populares que tendem a absorver e sublimar o individuo.Esta
comunhão em Cristo, que fora tão cheia de vida nos primeiros séculos cristãos,
de que todos os santos participaram, que descobriu na liturgia uma expressão
sem igual, está agora sob ataque – esta comunhão que nunca considerou o
individuo apenas como seguimento da comunidade, ou instrumento para servi-la.
Para tal propósito, é importante notar que a ideologia totalitária não está só
no sacrifício do individual pelo coletivo; algumas das idéias cósmicas de
Teilhard de Chardin, por exemplo, implicam no sacrifício coletivista. Teilhard
subordina o individual e sua santificação ao suposto desenvolvimento da
humanidade. Até na época em que esta teoria perversa foi adotada por vários
católicos, havia muitas razões para que se insistisse vigorosamente no caráter
sagrado da verdadeira comunhão em Cristo. Creio que a nova liturgia deva ser
julgada por este teste: contribui para a autêntica comunidade sagrada?
Concordamos que ela direciona o caráter da comunidade; porém, é o caráter
desejado? Essa comunhão é baseada no recolhimento, na contemplação e na reverência?
Qual das duas – a missa nova, ou a missa latina com canto gregoriano – evoca
tais atitudes d’alma de modo eficaz, permitindo comunhão mais profunda e
verdadeira? Não é patente que o caráter comunal da missa nova é puramente
profano, e que, como quaisquer outros encontros sociais, é mistura de
entretenimento casual e atividade incessante, impedindo a confrontação
reverente e contemplativa com Cristo e o mistério inefável da Eucaristia?
É claro
que nossa época esta permeada desse espírito de irreverência. Isso é a noção
distorcida da liberdade, que exige direitos ao mesmo tempo em que recusa
deveres, que exalta a auto-indulgência, que aconselha o "seja você
mesmo". O habitare secum dos Diálogos de São Gregório – o permanecer na
presença de Deus, o que pressupõe reverência – hoje é considerado como
antinatural, pomposo e servil. Porém, não é a missa nova um compromisso com o
espírito moderno? Donde vem a depreciação da genuflexão? Por que a Eucaristia
deve ser recebia em pé? Em nossa cultura, não é o ajoelhar-se a expressão
clássica da adoração reverente? O argumento de que durante a refeição devemos
antes estar de pé que ajoelhados é difícil de engolir. Além disso, esta não é a
postura natural para comer: no relógio de Cristo, o estar sentado é o mesmo que
dormir. Porém, o mais importante é a concepção irreverente da Eucaristia, para
lhe enfatizar o caráter de refeição, em detrimento do caráter especial de
mistério sagrado. Enfatizar a refeição às expensas do sacramento certamente
denuncia uma tendência a obscurecer a sacralidade do sacrifício. Tal tendência
parece ligada à lamentável crença de que a vida religiosa vai se tormar mais
vívida, mais existencial se for imersa em nossa vida cotidiana. Todavia,
corremos o perigo de absorver o religioso no mundano, de apagar a diferença
entre o sobrenatural e o natural. Temo que isso represente uma intrusão
inconsciente do espírito naturalista, do espírito tal como expressado pelo
imanentismo de Teilhard de Chardin.
Novamente,
porque se aboliu a genuflexão às palavras et incarnatus est do Credo? Não era
esse um gesto belo e nobre de adoração reverente ao professar o abrasador
mistério da Incarnação? Quaisquer que sejam as intenções do inovador,
certamente criaram o risco, mesmo que somente psicológico, da diminuição do
temor religioso e do respeito ao mistério. Porém, existe mais uma razão para
hesitar fazer mudanças desnecessárias na liturgia. As mudanças frívolas ou
arbitrarias são aptas a erodir um tipo especial de reverência: a pietas. A
palavra latina, como a alemã pietaet, não possui equivalente em inglês, mas
pode ser entendida como respeito geral pela tradição; honra àquilo que nos foi
legado pelas antigas gerações; fidelidade aos nossos ancestrais e suas obras.
Note que pietas é uma palavra derivada de reverência, porém não deve ser
confundida com a reverência enquanto tal, que descrevemos como resposta ao
grande mistério do ser e sobretudo, uma resposta a Deus. Segue-se que, se o
conteúdo de uma dada tradição não corresponde ao objeto de reverência original,
não merece a reverência derivada. Se uma tradição incorpora elementos maus,
tais como os sacrifícios de seres humanos, no culto dos Astecas, então esses
elementos não devem ser tomados por pietas. Não é, todavia, o caso cristão. Os
que idolatram nossa época, que se impressionam com o que é moderno simplesmente
por sê-lo, que acreditam que, em nossos dias, o homem finalmente "atingiu
a maioridade", carece de pietas. O orgulho desses "nacionalistas
temporais" não é somente irreverente, mas incompatível com a fé real. Um
católico deve observar a liturgia com pietas. Deve reverenciar, e portanto,
temer abandonar as orações, as posturas e as músicas que foram aprovadas por
tantos santos durante a Era Cristã, deixadas para nós como preciosa herança.
Para não ir muito longe, a ilusão de que possamos substituir o canto
gregoriano, com seus hinos inspirados e ritmos, por uma música tão boa quanto,
senão melhor, denuncia uma auto-afirmação ridícula e falta de auto-conhecimento.
Não podemos esquecer que, através da história do cristianismo, silêncio e
solidão, contemplação e recolhimento foram considerados necessários para
alcançar uma confrontação real com Deus. Este não é apenas um conselho da
tradição cristã, a qual deve ser respeitada pela pietas: está enraizado na
natureza humana. O recolhimento é a base necessária para a verdadeira comunhão;
da contemplação surge a base necessária para a ação efetiva na vinha do Senhor.
Uma espécie superficial de comunhão – a camaradagem jovial duma relação social
– arrasta-nos para a periferia. Uma verdadeira comunhão cristã arrasta-nos para
dentro dos abismos espirituais.
O caminho
da verdadeira comunhão cristã: reverência..., recolhimento..., contemplação.
Claro que devemos lamentar a carolice sentimental e individualista,
reconhecendo que muitos católicos praticam-na. A experiência não é remédio para
isso, nem a atividade é cura para a pseudo-contemplação. O remédio é encorajar
a verdadeira reverência, a atitude de autêntico recolhimento e devoção
contemplativa do Cristo. Somente tal atitude possibilita que aconteça uma
verdadeira comunhão em Cristo. As leis fundamentais da vida religiosa que
governam a imitação de Cristo, a transformação em Cristo, não se modificam de
acordo com as modas e hábitos do momento histórico. A diferença entre a
experiência comunitária superficial e a experiência comunitária profunda é
sempre a mesma. O recolhimento e a adoração contemplativa do Cristo – que só a
reverência torna possível – seria a base necessária para a verdadeira comunhão
com os demais em Cristo, em qualquer era da história humana.
TRIUMPH,
Outubro 1966
Dietrich von Hildebrand foi um
dos filósofos cristãos mais eminentes do mundo. Professor na Fordham
University, o Papa Pio XII chamou-o "o Doutor da Igreja no século
20". Ele é autor de vários livros, incluindo Transformation in Christ e
Liturgy and Personality.
Fonte: Traduções Gratuitas
TRANSCRITO DO BLOG: http://catolicosribeirao.blogspot.com.br
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