Divergências nos meios antimodernistas
2. Não são poucos, entretanto, os
desacordos que têm surgido, na teoria como na prática, entre os
antimodernistas. Alguns aceitam incondicionalmente o Concílio
Vaticano II, outros não. Alguns se denominam tradicionalistas, outros rejeitam
essa qualificação [1]. Alguns dizem que o Papa Honório
foi herege, outros o negam, e análogas divergências existem em relação a
numerosos fatos da história da Igreja. Muitos adotam algumas teorias
doutrinárias modernistas, a ponto de se afastarem da ortodoxia, embora
continuem a dizer-se tradicionalistas. E por aí seguem as diferenças nos modos
de ver, chegando com frequência a graves aversões pessoais.
3. No atual momento histórico,
não parece possível conciliar posicionamentos tão diversos e mesmo opostos
entre si. É de esperar que, com o tempo, com o amadurecimento das ideias, com o
influxo da graça que não pode abandonar a Igreja, as orientações dos fiéis
verdadeiros caminhem para convicções convergentes e sólidas, de modo que,
submissos ao Magistério como manda a lei da Igreja, os antimodernistas acabem
por harmonizar melhor suas posições, respeitado sempre o velho princípio: in
necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas.
Uma infalibilidade monolítica?
4. Existe um ponto doutrinário
fundamental ao qual não se vê que os doutrinadores mais eminentes do
antimodernismo, bem como seus seguidores, deem a importância devida. Trata-se
do princípio de que pode haver erros e heresias em documentos do Magistério
pontifício e conciliar não garantidos pela infalibilidade [2].
Com efeito, esse princípio está em geral ausente dos arrazoados
antimodernistas, que nos últimos decênios têm alimentado e sustentado o orbe
católico com a boa doutrina.
5. Negar de modo absoluto a
possibilidade de erro ou mesmo de heresia em documento pontifício ou conciliar
não garantido pela infalibilidade, é atribuir a esta um caráter monolítico, que
não corresponde ao que Nosso Senhor quis e fez ao instituí-la. As prefiguras
neotestamentárias são claras: a barca de Pedro quase soçobrou, só sendo salva
por um milagre; Pedro renegou a Jesus Cristo, e não esteve ao pé da Cruz. Para
o episódio da resistência de São Paulo a São Pedro na questão dos ritos
judaicos, busquem-se as explicações mais subtis que possam ser excogitadas, mas
é incontroverso que São Pedro era “digno de repreensão” (“reprehensibilis
erat”) [3].
Dos ensinamentos não infalíveis
6. Na história da infalibilidade
pontifícia prevalece até nossos dias, infelizmente, mesmo em autores
tradicionais dos mais consagrados, a divisão simplista e dicotômica, segundo a
qual o Papa só pode falar, em matéria doutrinária: (1) como doutor privado, ou
(2) numa definição infalível do Magistério extraordinário. Para tais autores, “non
datur tertium”, isto é, não há outro modo pelo qual o Papa possa falar, não
há como fugir a essas duas alternativas. Nessa linha, fica na sombra a terceira
possibilidade, que é a de um pronunciamento magisterial público mas não infalível.
Com efeito, foi apenas a partir do século XIX que se explicitou melhor e se
cristalizou a noção do Magistério ordinário não infalível, e que os Papas e os
grandes doutores aprofundaram a doutrina preciosa e riquíssima segundo a qual o
Magistério Ordinário pode gozar da infalibilidade, quando universal no tempo e
no espaço, preenchendo ainda as demais condições da infalibilidade.
7. Grandes autores da
neoescolástica, preocupados em combater o liberalismo, o modernismo e heresias
afins, ressaltaram sempre a autoridade doutrinária papal, parecendo insinuar às
vezes uma infalibilidade monolítica, que subsistiria de modo absoluto em todas
as circunstâncias, como se não dependesse de condições, nem mesmo das que foram
expressamente declaradas no Concílio Vaticano I. Na neoescolástica encontra-se
entretanto, com frequência, maior precisão nesses conceitos, tornando-se assim
claro que, ocasionalmente, ou em períodos de crise, ou quiçá em outras
circunstâncias extraordinárias, são possíveis pronunciamentos papais que não
exprimam a verdade. E, nesta matéria, o que vale para o Papa vale também, mutatis
mutandis, para o Concílio [4].
8. Há quem diga que, embora nem
sempre garantido pela infalibilidade, um pronunciamento doutrinário papal ou
conciliar não pode conter erro. Essa posição se enuncia melhor da seguinte
forma: dizer que um ensinamento não é infalível, não significa que nele possa haver
erro, significa apenas que tal ensinamento não está formalmente garantido pelo
carisma da infalibilidade; para esse ensinamento, no entanto, mesmo não
assegurado pela infalibilidade, permanece a assistência do Espírito Santo, e
portanto vale o princípio de que não pode conter erro. ― A boa doutrina,
contudo, é outra. Essa assistência prometida à Igreja pode ser absoluta,
assegurando a verdade do ensinamento, e o é quando estão preenchidas as
condições da infalibilidade. Quando, entretanto, não estão preenchidas tais
condições, é possível a recusa da graça pelo homem. E aplica-se então a regra
enunciada por Santo Tomás: “quod potest esse et non esse, quandoque non est” (“o
que pode ser e não ser, às vezes não é”). Em sã lógica, não se vê como
acolher a noção inflacionada e monolítica da infalibilidade, que levaria ao
absurdo de um “falível infalível” [5].
Distinguindo o herético do “heretizante”
9. Se pode haver erro ou mesmo
heresia em documentos papais e conciliares, a fortiori pode
haver neles proposições merecedoras de censuras menos graves. Aplicado esse
princípio ao Concílio Vaticano II, vê-se que o problema não é só saber se
nele haveria heresias formais, mas é também verificar se, em confronto com a
Tradição, há nos seus documentos finais proposições favorecedoras do erro ou da
heresia, com sabor de erro ou de heresia, ofensivas aos ouvidos pios,
escandalosas, ou merecedoras de outras censuras teológicas. Numa palavra, não
se trata apenas de saber se no Concilio há erros ou heresias, mas também de
verificar se nele há proposições heretizantes [6].
10. Manifestamente, uma
proposição conciliar errônea, herética ou heretizante não se incorporaria ao
patrimônio das verdades de fé, por não estarem aí preenchidas as condições da
infalibilidade do Magistério ordinário. Tal proposição seria uma declaração
falha do Concílio, o qual não goza de uma infalibilidade monolítica. Ademais,
caso ocorram várias proposições heretizantes, articuladas entre si num mesmo
sistema, este, igualmente, não se incorporaria à doutrina da Igreja.
Em conclusão
11. Entendo que são apodíticos os
argumentos escriturísticos e da Tradição que fundamentam a doutrina da
possibilidade de erro e heresia em documento papal e conciliar não infalível.
Por outro lado, a noção da infalibilidade monolítica inspira a maior parte,
tanto dos sedevacantistas, quanto dos neoconciliares que atribuem força
dogmática ao Vaticano II; e está na raiz de dúvidas, perplexidades e angústias
que atormentam numerosos espíritos fiéis. Um amplo esclarecimento dessa matéria
seria um fator de convergência, apto a eliminar mal-entendidos e a reduzir
diferenças de visão que há, na doutrina e na prática, entre pensadores e
movimentos antimodernistas.
________
[1] Para indicar o gênero
daqueles que abraçam a fé verdadeira, seguindo a Tradição católica, emprego de
preferência o termo “antimodernistas”, que parece mais abarcativo do que os
demais que são correntes, como ”tradicionalistas” e “antiprogressistas”.
[2] Ver “La
Nouvelle Messe de Paul VI: Qu’en Penser?”, que publiquei em 1975,
Diffusion de la Pensée Française, Chiré-en-Montreuil, parte II, caps. IX et X,
e trabalhos ali citados.
[3] Gal. 2, 11.
[4] “(…)
o problema do critério da infalibilidade não se põe de maneira essencialmente
diferente no caso do papa e no do concílio ecumênico. Um e outro, com efeito,
podem ter a intenção de envolver sua autoridade de maneira apenas parcial, ou
de maneira irrevogável. Somente esta última vontade é critério certo de
infalibilidade” (Charles Journet, “L’Eglise du Verbe Incarné”, Desclée de
Brouwer, 3ª ed. aumentada, 1962, t. I, p. 578, nº 1)].
[5] A expressão é de Jean Madiran, in Le faillible
infaillible : l’analyse de Jean Madiran, La Riposte Catholique,
27.11.2012.
[6] Pode-se perguntar se o
que aqui escrevo não se chocaria com o apelo de Bento XVI, em discurso à Cúria
Romana de 22-12-2005, para que o Concílio seja interpretado segundo uma “hermenêutica
da reforma na continuidade”. ― Na mesma ocasião, o Papa declarou que a
aceitação do Vaticano II, “em grande parte da Igreja”, isto é,
entre os antimodernistas, depende de uma “justa chave de leitura e de
aplicação”. Em espírito filial e de religiosa submissão ao Magistério vivo
em toda a medida que a doutrina católica a impõe, digo que as dúvidas e
polêmicas sobre o Vaticano II, que há décadas enchem de perplexidade os
católicos fieis, certamente se reduzirão, ou talvez mesmo desaparecerão, se Sua
Santidade declarar, de modo mais específico do que até agora o fez, e
absolutamente preciso, qual é essa “chave” da interpretação do Concílio
como “reforma na continuidade”. Por sua natureza, essa declaração não
pode deixar de esclarecer se é teologicamente possível que haja proposições
errôneas, heréticas ou heretizantes em ensinamentos conciliares de caráter
doutrinário que não preencham os requisitos da infalibilidade.
Fonte: http://santamariadasvitorias.org/infalibilidade-monolitica-e-divergencias-entre-antimodernistas/
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