Artigo
sobre uma das maiores batalhas navais da história, a batalha de Lepanto,
onde os católicos com a ajuda de Nossa Senhora venceram os turcos que
estavam invadindo a Europa.
Quando,
no ano da Redenção de 1566, o Cardeal Ghislieri foi elevado ao trono pontifício
com o nome de Pio V, a situação da Cristandade era angustiante. Com
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São Pio V |
efeito,
fazia aproximadamente um século que os turcos avançavam sobre a Europa, por mar
e através dos Bálcãs, no intuito insolente de sujeitar à lei de Mafoma as
nações católicas, e sobretudo de chegar até Roma, onde um de seus sultões
queria entrar a cavalo na Basílica de São Pedro.
Mas o
pior dos males não vinha de fora. O flagelo do protestantismo fizera apostatar
a Inglaterra (subjugando a Irlanda e ameaçando a Escócia), continuava a
alastrar-se pela Alemanha e convulsionava a França. A esse quadro de
desgraças somava-se a cobiça dos reis e príncipes católicos, que já não eram
movidos por aquele zelo da Fé e adesão à Igreja, que levara seus antepassados a
atender à convocação da cruzada aos brados de “Deus o quer!”. Alguns
não hesitavam ante vergonhosas e
espúrias alianças com os próprios turcos, para
investir contra outras nações católicas, visando conquistas territoriais,
glória mundana e poder.
O poderio
otomano atinge seu ápice
Em 1457
caíra Constantinopla. Transposto o Bósforo, os infiéis avançaram sobre as
regiões balcânicas, subjugando a Albânia, a Macedônia, a Bósnia. Ao mesmo
tempo iam tomando uma a uma as ilhas do arquipélago grego. Nos primeiros anos
do século XVI, o sultão Selim I aumentou seu poderio conquistando a Pérsia e o
Egito. O ano de 1522 viu cair a fortaleza de Rhodes, defendida heroicamente
pelos monges cavaleiros da Ordem de S. João de Jerusalém, como o
bastião avançado da Cristandade, para onde se haviam retirado após a perda de
seu último reduto na Palestina, o forte de São João d’Acre. Em 1524 o novo
sultão Solimão II, chamado o magnífico, ocupava e tratava duramente Belgrado.
Seis anos mais tarde, 300.000 otomanos chegaram às portas de Viena. Não
conseguindo tomar a cidade depois de quinze violentos assaltos, retiraram-se,
levando cativos 3.000 cristãos.
A crônica
anônima publicada em 1573 registra com espanto que em setembro de
1534 o senhor de Túnis, Barba Ruiva, terrível corsário do Sultão, “atacou uma
cidade através de uma praia marítima romana”, apanhando os habitantes de modo
tão imprevisto, que estes não puderam resistir. A cidade foi saqueada e
queimada, e todos os seus moradores de 10 a 30 anos foram levados como
escravos. Pouco depois o mesmo pirata assaltava Fondi, senhorio dos príncipes
Colonna e Itri, desta vez sem grande êxito. Roma não estava longe…
No
litoral dalmático os turcos não cessavam de atacar, saqueavam e destruíam as
cidades que estavam debaixo da tutela da sereníssima república de Veneza:
Clissa, Prevesa, Castelnuovo e as ilhas mais ao sul, próximas à Grécia.
Enquanto a Espanha engajava-se individualmente numa guerra contra a
Tunísia e a Argélia, em 1541 as hostes do Crescente investiam novamente contra
Viena. Em junho de 1552 tomavam elas parte da Transilvânia, onde os
cristãos perderam em três batalhas 25 mil homens. No ano seguinte o sultão
alia-se ao Rei Cristianíssimo, Henrique III da França, para a conquista da
Córsega, domínio do rei da Espanha, Imperador Carlos V.
Nesse
ínterim os bravos cavaleiros da Ordem de São João de Jerusalém, que haviam
perdido Rhodes mas não queriam abandonar a luta contra o Crescente,
transferiram-se para a Ilha de Malta, ao sul da Sicília. De sua nova fortaleza
faziam incursões marítimas, que representavam um grande entrave à expansão
turca, pois esses “escorpiões do Mediterrâneo” — como os chamavam com ódio os
infiéis — atacavam toda e qualquer embarcação inimiga, incorporando à própria
frota as naus que apresavam. As riquezas que estas estivessem transportando
eram confiscadas para o Comum Tesouro da Ordem, e os prisioneiros postos a
remar nas galés. Em 1565 Solimão II enviou uma poderosa armada contra a ilha,
mas os monges-cavaleiros resistiram com tal denodo, que o sultão teve que
retirar-se, perdendo na empresa um de seus melhores generais, Dragut Rais, e
mais de trinta mil homens.
Apesar
desta derrota, o poderio turco atingia o seu auge. Dispondo de um exército
numeroso e aguerrido, cuja sanha anticatólica era liderada por um corpo de
renegados, os janízaros, gozavam de uma situação econômica florescente. Solimão
o Magnífico reinava sobre um império imenso, que se estendia de Belgrado a
Aden, de Bagdad à Argélia. Ansiava conquistar a Itália para aniquilar o Papado,
fundamento da Religião inimiga, e o projeto já não parecia uma quimera. De
resto, a atitude omissa do Imperador Maximiliano e as perpétuas querelas entre
as nações católicas mais poderosas — a Espanha, a França e Veneza — só podiam
augurar bom termo ao avassalador avanço turco.
São Pio V
convida os príncipes a unirem suas forças
Pio V, o
dominicano que havia sido Grande Inquisidor, era como um raio de luz da Idade
Média a fulgurar sobre aquela Europa imersa nas sombras da heresia
protestante e do neopaganismo humanista. Escrevia o grande
São Carlos Borromeu ao Rei de Portugal, a respeito do recente conclave: “Desde
que o conheci, julguei que a Cristandade não podia ser melhor governada que por
ele, e consagrei-lhe todos os meus esforços”. E o Rei da Espanha, Filipe II,
expressa seus sentimentos em carta ao Arcebispo de Sevilha: “Dou graças
infinitas a Deus por esta eleição. Ele se dignou dar-nos um Pontífice de uma
vida tão exemplar, que disso se pode esperar um grande bem para a conservação
de nossa santa Fé”. Devoto insigne da Virgem, penetrado de zelo pela causa de
Deus, ardia na alma do novo Pontífice o desejo de soerguer a Cristandade para
um duplo combate: contra o protestantismo e contra o adversário otomano.
No
próprio ano de sua elevação ao pontificado, comunicou ele ao Rei da Espanha e
ao Imperador seu intento de promover uma aliança dos príncipes contra o sultão.
Em março, escreveu vigorosa carta ao Grão-Mestre da Ordem de São João de
Jerusalém, Jean de La Valette, que tencionava abandonar a Ilha de Malta com
seus cavaleiros, por lhe parecer impossível continuar enfrentando a ameaça dos
turcos, que derrotara gloriosamente no ano anterior. Depois de enaltecer o heroísmo
de que o Grão-Mestre dera mostras naquela ocasião, o Papa censura e
repele o seu projeto de retirada e o exorta paternalmente: “Ponde de lado a
idéia de abandonar a ilha. Permanecei aí com vossa Ordem bem unida. Vossa
simples presença em Malta inflamará a coragem dos cristãos e imporá respeito ao
otomano, pelo terror do nome que o fulminou no ano passado. Sabei que ele teme
vossa pessoa, mais que todos os vossos soldados reunidos”. La Valette leu a
carta do Papa diante do Conselho da Ordem, beijou respeitosamente o documento
pontifício, e depois o solo da ilha, e exclamou: “A voz de vosso Vigário, ó Jesus,
indica o meu dever. Ficaremos aqui, e aqui morreremos”.
No mês de maio desse
ano, cai mais uma ilha do arquipélago jônico, Quios, e em setembro a cidade de
Szigethvar, na Hungria. De todos os lados afluem notícias da aproximação de
forças turcas: de Tarento, de Corfu, de Veneza…
Em Roma,
São Pio V vigia e procura obter todas as informações possíveis sobre a marcha
dos acontecimentos. Chega-lhe então a boa nova de que Solimão II morrera
enquanto era travada a batalha de Szigethvar, e que deixara o trono para seu
filho Selim II, mole, sensual e sem a fibra do pai.
Animado
pelo desaparecimento de um inimigo tão temível como fora Solimão, nem por isso
São Pio V se deixa levar pela idéia de que todo o risco era passado. Em março,
publicara uma bula na qual descrevia com palavras cheias de dor o perigo turco
e afirmava que somente com muita penitência poderia o povo fiel aplacar a ira
de Deus e esperar seu poderoso auxílio. No mês seguinte, encarecia a
necessidade de o clero ter costumes puros, pois ao armar-se a Cristandade
contra o Crescente, só lhe podiam valer as preces dos ministros de Deus que
levassem uma vida sem mácula. Em julho era publicado um Jubileu
extraordinário pelo bom êxito da guerra contra os turcos, e pôde-se ver o
próprio Sumo Pontífice participando de uma procissão rogatória para afastar a
ameaça que pesava sobre a Europa.
Em dezembro,
o Papa dirige às nações católicas novo brado de alarma e o convite a se unirem
numa liga em defesa da Cristandade. Mas ninguém quer ouvi-lo. Veneza, por suas
desconfianças para com os Habsburgos e por seus interesses econômicos, preferia
conservar-se numa perigosa e dispendiosa neutralidade armada, mantendo relações
pacíficas com os turcos. Filipe II mostra-se também pouco inclinado a formar
uma coligação, alegando que necessitava de todas as suas forças para enfrentar
a revolta dos protestantes nos Países Baixos. O Imperador Maximiliano II
pensava antes de mais nada em socorrer a Hungria. O Rei de Portugal igualmente
se omitia. Na França estalavam as guerras de religião, e pouco se podia esperar
das intrigas da Rainha-Mãe.
O projeto
da Liga ficou estacionário por três anos, durante os quais o Papa procurava
ajudar o Imperador contra os turcos na Hungria, buscava socorro para a Ordem de
Malta e erguia fortificações nas costas dos Estados Pontifícios.
Ameaçada
pelo sultão, Veneza aceita a idéia da Liga
Um fato
inesperado veio precipitar os acontecimentos e quebrar a atonia dos príncipes
católicos em face dos apelos do Papa.
Em fins
de 1569 chegava a Constantinopla a notícia de que o arsenal veneziano fora
destruído pelo golfo, e devido a uma má colheita a Península toda estava
ameaçada pela fome. Essas informações vinham com cores exageradamente fortes,
fazendo crer que Veneza estava reduzida à impotência. Diante disso, Selim II
decidiu romper a paz antes ajustada com a Sereníssima República e enviar-lhe na
primavera um ultimato: ou Veneza entregava uma de suas possessões preferidas,
Chipre, ou era a guerra.
A
República de São Marcos, que ao longo dos últimos trinta anos mantivera
relações amistosas com a Sublime Porta, compreendeu que, pelo menos a bem de
seus interesses, era preciso não alimentar mais ilusões, e urgia buscar o
auxílio das outras potências católicas.
Não podia
ela contar com a Alemanha nem com a França, empenhadas em aquietar graves
turbulências internas. Restavam a Espanha e a Santa Sé. Da parte do Papa, a
acolhida foi benévola. Quanto à Espanha, então a maior potência do continente —
cujos vice-reis governavam Nápoles, a Sicília, a Sardenha e Milão, e de quem
dependiam ainda Gênova, a Sabóia e a Toscana — não eram das melhores as suas
relações com os venezianos.
Para o
Pontífice Romano, cujos olhos nunca se haviam desviado do plano de uma
confederação anti-otomana, as circunstâncias pareciam tornar-se favoráveis para
uma aproximação entre as duas potências católicas. Os primeiros passos dados
nesse sentido pelo Núncio Apostólico em Veneza não encontraram, porém, ambiente
receptivo. A Senhoria queria apenas a mediação do Papa junto aos demais
Estados, para obter dinheiro, mantimentos e tropas, e assim fortalecer-se a si
mesma. Mas não desejava uma aliança com sua rival, a Espanha, que lhe
acarretasse muitos compromissos.
Entretanto,
poucas semanas mais tarde o Núncio Facchinetti informava o Papa de que Veneza,
ante o inevitável da guerra, estava propensa a aceitar a idéia de uma coalizão
das potências católicas. Poucos dias depois, um emissário turco apresentava-se
à entrada de Veneza para transmitir o ultimato do Sultão. Conduzido por uma
escolta, foi recebido em uma audiência de apenas um quarto de hora pelo Senado,
que o despediu com “palavras frias e cheias de dignidade”, contendo uma rotunda
negativa: com esperança na justiça de Deus, a República defenderia pelas armas
a Ilha de Chipre, da qual era legítima senhora.
Também a
Espanha procura seus próprios interesses
A reação
da Espanha ante o apelo de S. Pio V, para que entrasse na Liga contra os
turcos, traduziu-se na atitude de seus dois embaixadores em Roma, os Cardeais
Zuñiga e Granvela. Para aumentar o mais possível o preço da adesão de seu
governo, os dois diplomatas valiam-se de rodeios e subterfúgios, dando a
entender que Filipe II não pensava em aderir à Liga, e sobretudo não aprovava
uma aliança com Veneza.
No
consistório reunido em fevereiro de 1570, os Cardeais, em sua
maioria, concordaram com o Pontífice quanto à iminência da queda de Chipre se a
Espanha não interviesse sem demora. O Cardeal Granvela contestou, pedindo que
não precipitassem seu rei e a Igreja numa empresa incerta e perigosa.
Acrescentou que a República de São Marcos não era digna de confiança e não
merecia apoio imediato; que melhor seria esperar, para ver se ela entrava mesmo
em guerra com os turcos; e que sempre seria tempo para uma ajuda da Espanha.
Acreditava que Deus queria castigar Veneza e dar uma lição à sua soberba e
egoísmo. A estas considerações opôs-se o Cardeal Commendone, o qual lembrou
todos os serviços prestados por Veneza à Cristandade e à Santa Sé, e que, além
do mais, não era somente ela que estava em jogo, mas a honra e o bem da
Cristandade.
Terminado
o consistório com a quase unanimidade de opinião dos cardeais quanto a este
último ponto, São Pio V ofereceu ao Doge valioso auxílio pecuniário
(representado pelo dízimo do clero veneziano) para a defesa de Chipre, e ao
mesmo tempo deu um passo decisivo para mover Filipe II a fazer uma aliança com
Veneza.
Tendo-lhe
a Senhoria confiado a direção das negociações com Madri, o Papa escolheu para
encaminhá-las um de seus melhores diplomatas, de origem espanhola ademais, o
clérigo da Câmara Apostólica, Luiz de Torres. O enviado do Papa devia realçar
junto a Sua Majestade Católica que nenhum monarca poderia enfrentar sozinho o
Grão-Turco, e que se impunha a união de todos os príncipes católicos para
derrubar o inimigo comum. Filipe II era conjurado, pela misericórdia de Deus, a
enviar o quanto antes à Sicília uma esquadra poderosa, para proteger Malta e
garantir a rota que levaria socorros à Ilha de Chipre. A Liga entre a Espanha e
Veneza deveria ter caráter defensivo e ofensivo e ajustar-se para sempre, ou
pelo menos por um prazo determinado.
Em meados
de maio, Filipe II acedeu em outorgar poderes a Granvela, Pacheco e Zuñiga para
as negociações desejadas por Pio V. O Papa chorou de alegria ao saber disso. Em
junho, nomeou Marco Antonio Colonna — pessoa grata a Filipe II, a quem servira
outrora, e também a Veneza — como chefe da esquadra auxiliar pontifícia. No dia
11 o Príncipe Colonna dirigiu-se solenemente ao Vaticano. Depois de ouvir a
Missa do Espírito Santo na capela pontifícia, ajoelhou-se aos pés do
Papa, para prestar-lhe juramento e receber de suas mãos o bastão de comando e a
bandeira de seda vermelha, na qual se viam Jesus Crucificado, o Príncipe dos
Apóstolos, o brasão de Pio V e o lema “In hoc signo vinces“.
O
Príncipe tomou a peito o chamado do Papa, e apesar de ter recebido o comando de
apenas doze galeras (o máximo que comportavam os recursos do tesouro pontifício),
entregou-se por inteiro à tarefa de equipar a pequena esquadra. Colonna
encontrou na nobreza romana as melhores disposições para tomar parte em tão
gloriosa empresa. Dirigiu-se logo depois para Veneza, passando por Loreto, onde
encomendou sua pessoa e sua esquadra à proteção de Maria Santíssima,
pois sabia que teria diante de si não poucas dificuldades.
Seis
meses perdidos em negociações
No mês de
julho chegava a Roma Miguel Soriano, representante da República de São Marcos,
para entabular com a Espanha as negociações da Liga, sob a égide e mediação do
Pontífice Romano. Começaram elas em julho, com um inflamado discurso em que o
Papa exortava todos para a nova cruzada.
As
difíceis tratativas prolongaram-se desmedidamente, trazendo à tona os jogos de
interesses às vezes mesquinhos de ambas as partes. Ora os espanhóis
demonstravam desconfiança para com as intenções de Veneza, e receavam uma “combinazione”
desta com a Sublime Porta; ora eles mesmos queriam dobrar e até triplicar o
preço dos cereais que iriam de Nápoles para Veneza; por seu lado, os venezianos
diziam-se impossibilitados de contribuir com mais de uma quarta parte dos
gastos da guerra, quando eram sobejamente conhecidas as possibilidades do
tesouro da Senhoria…
Apesar de
seu temperamento fogoso, São Pio V intervinha com uma paciência e cordura
heróicas. Aqui ele conciliava, ali aparava arestas, acolá estimulava. A
discussão sobre o número de embarcações a serem fornecidas pelas duas partes
foi causa de novas discórdias. Chegou-se afinal à questão do comando supremo,
que a Espanha chamava a si, mas Soriano, embaixador de Veneza, interveio para
lembrar que o pavilhão veneziano exerceria maior força de atração nos mares
orientais, especialmente para levar a sublevarem-se os povos cristãos oprimidos
pelo Crescente.
Foi nessa
ocasião que o Cardeal Morone sugeriu para generalíssimo dos exércitos cristãos
o nome do irmão bastardo de Filipe II, D. João d’Áustria, o qual se havia distinguido
extraordinariamente na guerra contra os mouros no norte da África. Chegou-se
enfim ao acordo de que o Papa tomaria a iniciativa de convocar outros
príncipes, e especialmente o Imperador; que nenhum dos confederados poderia
ajustar a paz; e que o Pontífice deveria ser o supremo juiz nos litígios da
Liga.
Fez-se
então um esboço dos itens do acordo. Enquanto isso os espanhóis consultavam seu
Rei sobre se as três esquadras — espanhola, pontifícia e veneziana — deviam ser
unificadas num só corpo. Em fins de julho Veneza aceitava D. João como
generalíssimo, e dias depois era apresentado ao Pontífice o projeto da Liga.
A perda
de tempo com as reivindicações de vantagens e com as disputas sobre pontos de
vista divergentes já se fazia sentir. Enquanto a peste dizimava a esquadra
veneziana, em setembro os turcos atacavam a Ilha de Chipre e sitiavam Nicósia,
a qual caía depois de 48 dias de resistência heróica.
O
desânimo começava a espalhar-se pela Cristandade. Quando Granvela chegou a
dizer ao Papa que os turcos eram excessivamente fortes, e que talvez só
pudessem ser vencidos se atacados em diversas frentes, incluindo a África, a
Albânia e a Hungria, São Pio V, tomado de forte emoção e com lágrimas nos
olhos, retrucou-lhe que a culpa disso era dos príncipes católicos, os quais
deviam arrepender-se de sua atitude antes que fosse tarde demais, e só
expiariam sua falta se se resolvessem afinal a unir-se na defesa da causa da
Cristandade. Falou ainda de São Ladislau e de Scanderbeg, na Polônia e na
Albânia, como exemplos da força dos que põem sua confiança na poderosa justiça
do Altíssimo. Que se armassem e se unissem, pois Deus os ajudaria: sua causa
era a de Deus.
No fim do
ano o Papa resolveu escrever uma carta de próprio punho a Filipe II. Nela o
Pontífice traduzia suas mais amargas queixas. Dizia que, depois que se tinha
conseguido contornar as últimas dificuldades com os venezianos, eram os
comissários espanhóis que procuravam entravar a conclusão da aliança.
Qualificava essa atitude de estranha e suspeita. Tendo intimado o Núncio de
Madrid — o qual devia entregar a missiva — a não aceitar evasivas do Rei, Pio V
aguardou com sublime paciência a resposta. Enquanto isso, chegavam as piores
notícias: Os turcos sitiavam Famagusta, ameaçavam Corfu e Ragusa; o Núncio em
Veneza, Facchinetti, anunciava em fevereiro de 1571 que, se não se ultimasse
imediatamente a Liga, havia perigo de que a Senhoria ajustasse as pazes com a
Sublime Porta, ainda que à custa da perda de Chipre.
“Qui seminant in lacrimis,
in exsultatione metent”
“Quem
semeia nas lágrimas, colhe na alegria” — diz o Salmo do real Profeta
(Sl.125,5). Os sofrimentos morais do Santo Padre iriam encontrar o consolo
merecido.
Em março
chegaram, com diferença de dias, as respostas do Rei da Espanha e do Doge de Veneza.
Havia ainda algumas graves discordâncias, mas um último esforço dos auxiliares
do Papa superou-as. Afinal, em meados de maio, do rigoroso segredo em que se
desenvolviam as tratativas emergiu a boa nova: estava concluída a Santa Liga. A
aliança ajustada entre o Papa, o Rei da Espanha e a República de Veneza devia
ser estável, ter caráter ofensivo e defensivo e dirigir-se não somente contra o
sultão, mas também contra seus Estados tributários: Argel, Túnis e Trípoli.
A
tríplice aliança contaria com duzentas galeras, cem transportes, 50 mil
infantes espanhóis, italianos e alemães, 4.500 cavalos ligeiros e o número de
canhões necessário. Em cada outono se celebraria um convênio em Roma, sobre a
campanha do ano seguinte. Espanha e Veneza deviam defender-se mutuamente em
caso de ataque. O Papa arcaria com uma sexta parte dos gastos, a Espanha com
três sextos, e Veneza com o restante. O generalíssimo D. João d’Áustria
aconselhar-se-ia com os comandantes das tropas venezianas e pontifícias, e nas
deliberações decidiria a maioria dos votos. O lugar-tenente de D. João seria o
Príncipe Colonna. Era facultado ao Imperador e aos demais príncipes católicos
ingressar na Liga.
O Sumo
Pontífice transbordava de santa alegria. Publicou um Jubileu geral, para atrair
as bênçãos do Deus das batalhas sobre o exército cristão. Tomou parte nas
procissões rogatórias, que se realizaram ainda no mês de maio em Roma, e mandou
cunhar uma medalha comemorativa.
Por tua
mão será abatida a soberba do inimigo
Tratava-se
agora de acelerar os preparativos da tríplice armada, acertar o ponto de
encontro e os planos da batalha. Ao mesmo tempo o incansável São Pio V enviou
legados ao Imperador e aos outros príncipes, a fim de instá-los a ingressarem
na Liga.
Além
disso, nomeara ele uma Congregação cardinalícia especialmente incumbida das
providências da guerra. Um documento da época relata que naqueles dias só se
viam soldados nas ruas da Cidade Eterna.
Em meados
de junho a esquadra pontifícia fazia-se à vela para o sul, ancorando em
Nápoles, onde devia encontrar-se com as naus espanholas. Já no mês anterior o
Papa havia escrito uma carta a Filipe II, pedindo-lhe para apressar a partida
de D. João, a fim de não se perder a boa ocasião.
Como os
espanhóis tardassem para adiantar a empresa, os navios do Papa zarparam
novamente em julho rumo a Messina, ponto convencionado para o encontro das três
armadas. Poucos dias depois chegavam os venezianos, comandados pelo valoroso
veterano Sebastião Veniero. Enquanto isso, vinham notícias de que o inimigo
acuava Creta, Citera, Zanta e Cefalônia.
Como
entre a nobreza de Roma, também entre os fidalgos da Espanha reinava vivo
entusiasmo pela Cruzada, tendo-se alistado numerosos deles. Zarpando de
Barcelona com 46 galeras, Dom João d’Áustria chegou a Gênova em meados de
julho. Dali enviou um emissário a Veneza, a fim de comunicar que já estava a
caminho de Messina, e outro ao Papa (o Rei Filipe II negara-lhe a permissão de
passar por Roma), para agradecer a escolha para o posto de generalíssimo e
escusar-se do atraso. Quando o representante do príncipe espanhol se despediu
do Pontífice, este encarregou-o de dizer a D. João que se lembrasse sempre de
que ia combater pela Fé católica, e de que por isso Deus lhe daria a vitória.
Ao mesmo tempo o Papa enviou ao generalíssimo o estandarte da Liga.
O
estandarte era de damasco de seda azul e ostentava a imagem do Crucificado,
tendo aos pés as armas do Papa, da Espanha, de Veneza e de D. João. O Príncipe
recebeu-o solenemente em Nápoles das mãos do Vice-Rei, o Cardeal Granvela, na
Igreja de Santa Clara, com a presença de muitos nobres, entre os quais os
príncipes de Parma e de Urbino. “Toma, ditoso Príncipe — disse-lhe o Cardeal —
a insígnia do verdadeiro Verbo humanado. Toma o sinal vivo da santa
Fé, da qual és o defensor nesta empresa. Ele te dará uma vitória gloriosa sobre
o ímpio inimigo, e por tua mão será abatida sua soberba. Amém!” Um forte clamor
ecoou da multidão que enchia a nave: “Amém! Amém!”
Vivamente
angustiado ante as notícias do avanço turco, São Pio V mandou no dia 17 uma
carta de próprio punho ao generalíssimo, exortando-o a sair sem demora ao
encontro do inimigo. D. João zarpou então para Messina, onde foi recebido com
júbilo indizível.
De uma
formosura varonil, louro e de olhos azuis, no esplendor da juventude — tinha 24
anos de idade — profundamente aristocrático, o filho de Carlos V causou enorme
impressão nos sicilianos que o estavam recepcionando. O porto, juncado de naus
cristãs, assemelhava-se a uma floresta de mastros que balouçavam serenamente
sobre o mar, à espera do momento em que deveriam singrar águas tintas de
sangue. Era uma terrível ameaça para o inimigo e um irresistível chamado para aqueles
novos cruzados.
Os
soldados preparam-se por três dias de jejum
Nos
primeiros conselhos de guerra, D. João empenhou-se em comunicar seu ardor aos
setenta oficiais ali reunidos e em beneficiar-se, em troca, de sua prudência e
maturidade. Mesmo aí, não deixou de haver alguns desentendimentos, que fizeram
perder mais três semanas em deliberações.
Alguns
generais achavam que a campanha iria ser meramente defensiva, dado o poderio do
inimigo. Outros afirmavam que as naus turcas não eram muito eficientes. O próprio
D. João mostrou-se hesitante, até que o Núncio Odescalchi, que viera distribuir
partículas do Santo Lenho para que houvesse uma partícula em cada nau,
comunicou ao Príncipe que o Pontífice lhe prometia em nome de Deus a vitória,
por cima de todos os cálculos humanos. Mandava dizer que, se a esquadra se
deixasse derrotar, iria ele mesmo à guerra, com seus cabelos brancos, para
vergonha dos jovens indolentes.
D. João
tomou uma série de medidas para preservar o caráter sacral da expedição.
Proibiu a presença de mulheres a bordo e cominou pena de morte para as
blasfêmias. Enquanto se esperava o regresso de uma esquadrilha de
reconhecimento, todos jejuaram três dias, e nenhum dos 81 mil marinheiros e
soldados deixou de confessar-se e comungar, o mesmo fazendo os condenados que
remavam nas galeras. Jesuítas, franciscanos, capuchinhos,
dominicanos, iam e vinham no meio daquela gente rude, para purificar os
corações e preparar um exército verdadeiramente de cruzados.
Nos dias
16 e 17 de setembro, nos quais se deu a partida de Messina, o espetáculo foi
deslumbrante. As naus começaram a mover-se duas a duas, encimadas por bandeiras
cujas cores as distinguiam segundo a posição que assumiriam na batalha. À
frente tremulavam as bandeiras verdes de Andrea Doria, o comandante dos
espanhóis. Em seguida vinha a batalha ou centro, com suas bandeiras azuis, e o
gonfalão de Nossa Senhora de Guadalupe sobre a nau de D. João d’Áustria. Os
estandartes do Papa e da Liga ficaram guardados para o momento do embate. À
direita da batalha vinha Marco Antonio Colonna na nau capitânia do Papa; à esquerda,
o veneziano Sebastião Veniero, grande conhecedor das lides do mar, vigoroso com
seus setenta anos, altivamente em pé na popa de sua nau.
A divisão
de Veneza, comandada pelo nobre Barbarigo, seguia atrás, com bandeiras
amarelas; as bandeiras brancas de D. Álvaro de Bazán, Marquês de Santa Cruz,
fechavam aquele imponente cortejo naval. Uma figura toda vestida de púrpura
destacava-se de entre a multidão reunida no porto. Era o Núncio papal, que dava
a bênção a cada barco que passava, com seus cruzados piedosamente ajoelhados na
ponte: nobres revestidos de armaduras refulgentes, soldados de variados
uniformes, marinheiros de roupas e gorros vermelhos. Os remos compassados e as
velas que se iam enfunando levavam-nos em demanda do inimigo da Fé. Na sua
armadura dourada, terrível como um anjo vingador, avultava a figura de D. João
d’Áustria, a quem o próprio São Pio V aplicaria depois da vitória o que o
Evangelho diz de São João Batista: “Fuit homo missus a Deo, cui nomen erat
Ioannes” — Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João (Jo. 1,6).
O
estandarte da Liga é içado na nau capitânia
Deixando
o estreito de Messina, as naus da Liga costearam o litoral da Calábria e da
Apúlia, e de lá seguiram para a ilha de Corfu, depois para Gomenitsa, nas
costas da Albânia, onde aportaram no último dia do mês de setembro.
Ao longo
desse percurso foram encontrando sinais da passagem dos turcos: restos
carbonizados de igrejas e casas, objetos de culto profanados, corpos
dilacerados de sacerdotes, mulheres e crianças covardemente assassinadas. A
inconformidade com o crime e o desejo de uma santa vingança faziam-se sentir no
coração de todos os cruzados e revigoravam neles a vontade de lutar.
Nesse
meio tempo os espias informaram que a esquadra inimiga estava ancorada em Lepanto,
um porto localizado pouco mais ao sul, no estreito de igual nome, o qual liga o
Golfo de Patras ao de Corinto. Tratava-se agora de tomar a iniciativa da luta,
indo ao encalço do inimigo.
Feitos
todos os preparativos para a batalha, no dia 6 de outubro os navios
da Liga deixaram a costa da Albânia em direção a Cefalônia, ilha do Arquipélago
Jônico situada defronte ao Golfo de Patras, ao fundo do qual se achavam os
navios turcos. Foi aí que os católicos receberam a notícia de que Famagusta,
capital de Chipre, caíra em poder do Crescente, e que o general Mustafá
cometera as piores atrocidades com o comandante da praça, Marco Antonio
Bragadino, a quem mandara esfolar vivo, e cuja pele cheia de palha fizera
conduzir por toda a cidade. A narração dessas crueldades acendeu o ódio da
tropa cristã, que ansiava por defrontar-se com os otomanos.
O embate
já então era iminente, dada a proximidade em que se encontravam os dois
exércitos. O vento soprava do Levante, o céu estava encoberto e o mar era
cinzento e cheio de névoa naquele sexto dia do mês. Os católicos não sabiam que
o vento que os detinha era o mesmo que convidava o inimigo a deixar seu refúgio
em Lepanto, e assim tornava possível a batalha. Com efeito, se os turcos não se
resolvessem a sair, seria muito difícil desalojá-los de seu reduto. O estreito
de Lepanto era protegido por duas fortalezas, cujos canhões fariam grande
estrago à armada da Liga. A noite caiu, envolta em um silêncio misteriosamente cheio
de prenúncios.
Às duas
horas da madrugada do domingo, 7 de outubro, um vento fresco vindo do poente
limpou completamente o céu, prometendo um dia ensolarado. Antes do amanhecer,
D. João mandou levantar âncoras e soltar as velas. Quando as naus cristãs,
tendo passado pelo canal que ficava entre a ilha de Oxia e o cabo Scrofa,
desembocavam no golfo de Patras, uma fragata ligeira mandada em reconhecimento
veio ao seu encontro, com a informação de que a esquadra turca estava a poucas
milhas de distância. A bandeira que devia sinalizar a presença do inimigo
tremulou no mastro da capitânia vanguarda. Depois de uma rápida deliberação com
Veniero, o generalíssimo ordenou que todos se dispusessem em ordem de batalha.
Fez-se ouvir o troar de um canhão, enquanto era içado o estandarte da Santa
Liga no mastro mais alto da galera capitânia.
“Aqui
venceremos ou morreremos” — bradou D. João entusiasmado, ao acompanhar as
evoluções da esquadra católica.
Seis
pesadas galeras venezianas, comandadas por Francisco Duodo, rumaram lentamente
para seus postos, na vanguarda. Como que no desejo de esmagar os otomanos num
terrível amplexo, a esquadra católica procurou estender-se o quanto pôde, desde
o litoral até o alto mar. À esquerda o veneziano Barbarigo, com 64 galeras,
alargou seu flanco em direção ao litoral, para evitar um envolvimento dos
inimigos pelo norte. Dom João comandava o centro, ladeado por Colonna e
Veniero; o catalão Requeséns vinha um pouco mais atrás. A esquadra espanhola de
Andrea Doria, com 60 naus, formava a ala direita, em direção ao mar alto. As 35
embarcações do Marquês de Santa Cruz aguardavam ordens à retaguarda, para uma
eventual intervenção.
Também o
almirante otomano — Kapudan-Pachá Muesinsade Ali, que passou à História como
Ali-Pachá — dispôs sua esquadra para o combate. A ala direita, que devia
defrontar-se com Barbarigo, compunha-se de 55 galeras e era comandada por Maomé
Shaulak, governador de Alexandria; a ala esquerda, à qual cabia opor-se a
Andrea Doria, era formada por 73 unidades às ordens do temível corsário Uluch
Ali (Occhiali), um renegado calabrês que, segundo se dizia, fora frade; o
centro, finalmente, com 96 galeras, estava sob o mando direto do próprio
Ali-Pachá e constituía a elite da armada infiel. Uma divisão de reserva ficara
à retaguarda.
O
generalíssimo turco parecia querer investir resolutamente pelo centro, e ao
mesmo tempo envolver os cristãos, aproveitando-se da sua superioridade numérica
sobre estes (286 naus contra 208). O vento soprava de leste, favorável aos
infiéis, enquanto os católicos tinham que se mover à força de remos. Decorreram
quatro horas até que as duas armadas estivessem prontas para o confronto. O
vento amainara.
A essa
altura, Doria chegava à nau de D. João d’Áustria para propor um conselho de
guerra, no qual se discutisse se convinha ou não dar combate a um inimigo
numericamente superior. O generalíssimo limitou-se a responder-lhe: “Não é mais
hora de falar, mas de lutar!” Doria voltou ao seu posto, tendo antes proposto a
D. João que mandasse cortar o enorme esporão que pesava na proa das galeras. A
vantagem desta medida, indicada pelo astuto genovês, revelou-se enorme: aliviou
as naus, facilitando as manobras, e ademais permitiu que o canhão central, em
vez de atirar por cima, visasse diretamente o alvo, com maior impacto.
D. João
quis passar uma última revista a suas tropas. Subiu a uma fragata e percorreu o
corpo central e a ala direita da esquadra. Dom Luiz de Requeséns foi incumbido
de visitar a outra ala. O comandante supremo apresentou-se aos nobres e à
tripulação de cada nau, levando na mão um crucifixo e
conclamando com ardor para o lance iminente: “Este é o dia em que a Cristandade
deve mostrar seu poder, para aniquilar esta seita maldita e obter uma vitória
sem precedentes”. E mais adiante: “É pela vontade de Deus que viestes todos até
aqui, para castigar o furor e a maldade destes cães bárbaros. Todos cuidem de
cumprir seu dever. Ponde vossa esperança unicamente no Deus dos Exércitos, que
rege e governa o universo”. A outros, dizia: “Lembrai-vos de que combateis pela
Fé; nenhum poltrão ganhará o Céu”.
A
resposta a essas palavras eram aclamações estrepitosas, e não havia quem não se
mostrasse ao jovem general em atitude ufana e combativa. Enquanto isso, ele
fazia distribuir escapulários, medalhas e rosários. O entusiasmo levou a tropa
a tomar-lhe o chapéu e as luvas; por fim D. João voltou à sua capitânia, a fim
de armar-se para o combate.
Ouvia-se
do lado do inimigo um som fanhoso de cornetas, um crescendo de vociferações, o
estrépito de címbalos e o sinistro percutir das cimitarras sobre os escudos. Os
infiéis entretinham-se com danças, acompanhadas pelo crepitar de armas de fogo.
Escachoam as gargalhadas, e a soldadesca escarnece da presunção dos que ousavam
enfrentar o poderio imenso do sultão: “Esses cristãos vieram como um rebanho,
para que os degolemos!” A ordem dada por Ali-Pachá era não fazer prisioneiros.
Reaparece
D. João. Sua armadura e seu elmo brilham ao sol, que agora está a pino, sem
nenhuma nuvem a toldar o céu. O Príncipe ajoelha-se e reza. Todos os seus homens
fazem o mesmo. No meio de um silêncio grandioso, os religiosos davam a última
bênção e a absolvição geral aos que iam expor-se à morte pela Fé. Do lado
inimigo também tudo se aquietara. Anjos e demônios pareciam
fazer sentir sua presença e a transcendência do fato que ia ocorrer.
A cabeça
de Ali-Pachá na ponta de uma lança
As
esquadras se aproximam. No momento azado, Ali-Pachá manda dar um tiro de canhão
para chamar os cristãos à luta. Dom João d’Áustria aceita o desafio,
respondendo com outro tiro. O vento mudara inesperadamente. Os estandartes do
Crucificado e da Virgem de Guadalupe investem contra as bandeiras vermelhas de
Maomé, marcadas com a meia-lua, estrelas e o nome de Alá bordado a ouro. Nesse
momento o Céu já enviara um augúrio da vitória: o primeiro tiro que partira
contra os infiéis lhes afundara uma galera. Aos gritos de “Vitória! Vitória!
Viva Cristo!”,
os cruzados lançaram-se com toda a energia na batalha.
Os turcos
procuravam dar a maior amplitude a seu deslocamento, para envolver um dos
flancos do adversário. Doria tenta impedir-lhes a manobra, mas afasta-se demais
da zona que lhe havia sido designada, abrindo um perigoso vão entre a ala sob
seu comando e o centro da esquadra cristã.
Os 264
canhões de Duodo, abrindo fogo, conseguem romper a linha inimiga. Começam as
abordagens.
O
apóstata italiano Uluch Ali entra pelo vazio deixado por Doria. Com suas
melhores naves, lança-se no combate em que o centro dos cristãos estava
engajado, e com algumas galeras pesadas mantém Doria afastado. Neste lance iam
sendo aniquiladas as tropas de Doria, e a reserva do Marquês de Santa Cruz não
podia socorrê-las, pois estava empenhada em auxiliar os venezianos da ala
esquerda, junto ao litoral.
Ali-Pachá,
reconhecendo pelos estandartes a galera de D. João, abalroou-a com seu próprio
navio, proa contra proa, e lançou sobre ela toda uma tropa de janízaros
escolhidos. Neste momento o conselho de Doria provou sua eficácia: desembaraçada
do esporão, a artilharia da nau católica pôs-se a dizimar a tripulação da
“Sultana”, a nave de Ali-Pachá. Em socorro desta acorreram mais sete galeras
turcas, que despejaram mais janízaros sobre a ponte ensangüentada da capitânia
de D. João. Duas vezes a horda turca penetrou nesta até o mastro principal, mas
os bravos veteranos espanhóis obrigaram-na a recuar. Dom João contava agora com
apenas dois barcos de reserva, sua tropa tinha sofrido muitas baixas, e ele
mesmo fora ferido no pé. A situação ia-se tornando cada vez mais perigosa,
quando o Marquês de Santa Cruz, tendo liberado os venezianos, veio em socorro
do generalíssimo e este pôde repelir os janízaros.
A batalha
chegara ao seu auge. As águas tingiam-se de sangue, ressoavam gritos e gemidos
dos que lutavam, dos feridos, mutilados e agonizantes. O estrondo das armas de
fogo entrecruzava-se com o tinir das lâminas de aço, num concerto trágico e
grandioso. Sucediam-se umas às outras as proezas. O sangue nobre corria. Um
após outro caíram Juan de Córdoba, Fábio Graziani, Juan Ponce de León. O velho
Veniero lutava de espada na mão, à frente de seus soldados. O general veneziano
Barbarigo tombara ferido por uma flecha no olho, quando, para dar ordens a seus
homens, afastara o escudo que o protegia. “É um risco menor do que o de não
conseguir fazer-me entender numa hora destas!” — respondera a alguém que o
advertia do perigo. O jovem Alexandre Farnese, Duque de Parma, entrou sozinho
numa galera turca, e não morreu. De sua parte, o inimigo tentava toda espécie
de manobras e dava inegáveis provas de valor.
O momento
era crítico, e ainda deixava muitas dúvidas quanto ao desenlace da batalha,
quando Ali-Pachá, defendendo a “Sultana” de mais uma investida cristã, caiu
morto por uma bala de arcabuz espanhol (ou suicidou-se, segundo outra versão).
Eram 4 horas da tarde.
O corpo
do generalíssimo dos infiéis foi arrastado até os pés de D. João. Um soldado
espanhol avançou sobre ele e cortou-lhe a cabeça. Esta, por ordem do Príncipe,
foi então erguida na ponta de uma lança, para que todos a vissem. Um clamor de
alegria vitoriosa levantou-se da capitânia católica. Os turcos estavam
derrotados, e o pânico espalhou-se celeremente entre suas hostes, a partir do
momento em que o estandarte de Cristo começou a drapejar sobre a “Sultana”.
Uluch Ali
ainda investiu sobre a ala direita comandada por Andrea Doria. Mas, atacado
pelo Marquês de Santa Cruz, tratou de fugir.
O
veneziano Girolamo Duodo conta que “uma grande parte dos escravos cristãos, que
se encontravam nos navios inimigos, compreendeu que os turcos estavam perdidos.
Apesar dos guardas, esses infelizes multiplicaram seus esforços para buscar a
salvação na fuga e favorecer a vitória dos nossos. Em pouco tempo, ei-los
combatendo em todos os setores onde há guerra, com uma coragem sem igual. Seu
ardor é decuplicado pelos gritos que ecoam de todos os lados: “A vitória é
nossa!”. Nos navios da Liga, os galés — que tinham sido armados de espada —
abandonavam os remos quando havia abordagem e lutavam valentemente contra os turcos.
Uma
Senhora de aspecto majestoso e ameaçador
Os restos
da esquadra inimiga batem em retirada e se dispersam, enquanto as trombetas
católicas proclamam a todos os ventos a vitória da Santa Liga, na maior batalha
naval que a História jamais registrara.
A tarde
começava a cair e prometia um mar agitado. No crepúsculo daquele santo dia, os
navios da Liga se reagrupavam e mal podiam navegar através dos restos da
batalha: cadáveres, remos e mastros espalhados bizarramente pela água. As
embarcações apresadas vinham à retaguarda das galeras católicas, arrastadas
humilhantemente pela popa.
As perdas
dos infiéis tinham sido enormes: 30 a 40 mil mortos, 8 ou 10 mil prisioneiros
(entre os quais dois filhos de Ali-Pachá e quarenta outros membros das famílias
principais do império), 120 galeras apresadas e cinqüenta postas a pique ou
incendiadas, numerosas bandeiras e grande parte da artilharia em poder dos
vencedores. Doze mil cristãos escravizados alcançaram a liberdade. A Liga
perdeu doze galeras e teve menos de 8 mil mortos.
Soube-se
depois que, no maior fragor da batalha, os soldados de Mafoma tinham avistado
acima dos mais altos mastros da esquadra católica uma Senhora, que os aterrava
com seu aspecto majestoso e ameaçador.
É hora de
dar graças a Jesus Cristo pela vitória
Bem longe
dali, o Papa aguardava ansioso notícias da esquadra católica. Desde a chegada
de D. João a Messina, redobrara de orações e jejuns pela vitória das
armas cristãs, e instava para que monges, cardeais e fiéis rezassem e jejuassem
na mesma intenção. Confiava sobretudo na eficácia do rosário, para obter o
socorro onipotente da Virgem.
No dia 7
de outubro ele trabalhava com seu tesoureiro, Donato Cesi, o qual lhe expunha
problemas financeiros. De repente, separou-se de seu interlocutor, abriu uma
janela e entrou em êxtase. Logo depois voltou-se para o tesoureiro e disse-lhe:
“Ide com Deus. Agora não é hora de negócios, mas sim de dar graças a Jesus
Cristo, pois nossa esquadra acaba de vencer”. E dirigiu-se à sua capela.
As
notícias do desfecho da batalha chegaram a Roma, por vias humanas, duas semanas
depois, por um correio que vinha de Veneza. Na noite de 21 para 22 de outubro o
Cardeal Rusticucci acordou o Papa, para confirmar a visão que ele tinha tido.
No meio de um pranto varonil, São Pio V repetiu as palavras do velho Simeão: “Nunc
dimittis servum tuum, Domine, in pace” (Luc.2,29). No dia seguinte, a
notícia foi dada em São Pedro, após uma procissão e um solene “Te Deum“.
A vitória
foi por todos atribuída à intervenção da Virgem. O dia 7 de outubro ficou
consagrado a Nossa Senhora da Vitória, e mais tarde ao Santo Rosário. Além
disso o Santo Padre acrescentou à Ladainha Lauretana uma invocação que nascera
pela “vox populi“, no momento da grande proeza: “Auxilium
Christianorum“. Na Espanha e na Itália começaram a surgir igrejas e capelas
com a invocação de Nossa Senhora da Vitória. O senado veneziano pôs debaixo do
quadro que representava a batalha a seguinte frase: “Non virtus, non arma,
non duces, sed Maria Rosarii victores nos fecit” — Nem as tropas, nem as
armas, nem os comandantes, mas a Virgem Maria do Rosário é que nos deu a
vitória. Gênova e outras cidades mandaram pintar em suas portas a efígie da
Virgem do Rosário, e algumas puseram em seu escudo a imagem de Maria Santíssima
calcando aos pés o Crescente. Poetas e músicos procuraram enaltecer com seu
gênio o grande acontecimento.
Também ao
Papa se prestaram as maiores homenagens, pela participação decisiva que tivera
na luta e no seu desfecho.
Logo
depois das solenes celebrações da vitória, o Pontífice recebeu os embaixadores
e os cardeais para deliberar sobre a continuação e ampliação da Liga e o
prosseguimento da guerra, de modo a se tirar todo o proveito da “maior vitória
jamais obtida contra os infiéis”. O plano de São Pio V era promover uma
confederação européia e obter o concurso de certos régulos maometanos, rivais
do sultão, para expulsar da Europa o Crescente, e afinal investir contra
Constantinopla e retomar o Santo Sepulcro, aniquilando definitivamente o perigo
muçulmano.
Mas,
apesar de ingentes esforços, o Papa não conseguiu mover os príncipes católicos.
A Liga se desfez. O Rei da França propôs ao sultão uma aliança contra
a Espanha.
Chamando-o
ao Céu em primeiro de maio de 1572, a Providência poupou a São Pio V o desgosto
de ver que a vitória de Lepanto, depois de salvar a Cristandade, ficaria sem
conseqüências estratégicas e políticas imediatas. Tanto maiores foram
certamente os efeitos mediatos. A História é testemunha de que a lenta
decadência do poderio naval dos otomanos começou com a jornada de Lepanto.
O último
ato de governo do Santo Pontífice consistiu em entregar a seu tesoureiro um
pequeno cofre com 13 mil escudos, dos quais costumava fazer suas esmolas
particulares, dizendo-lhe: “Isto prestará bons serviços à guerra da Liga”.
(Giovan
Tinelli di Olivano, in “Catolicismo” nº 250, outubro de 1971)
Fonte: http://www.lepanto.com.br
NOTA: “Em 29 de Janeiro de
1965, Paulo VI entregava aos turcos as insígnias da vitória de
Lepanto; São Pio V instituiu a “Festa
de Nossa Senhora do Rosário”, a fim de perpetuar a recordação daquela vitória
devida à intercessão da Ss Virgem Mãe de Deus. Deste modo,
com aquele vergonhoso ato, Paulo VI não podia deixar de significar também um insulto à Virgem do Rosário”.
Belíssimo artigo. Glória da Cristandade.
ResponderExcluirSe formos devotos de Nossa Senhora rezando piedosamente o Santo Rosário, certamente que obteremos outras vitórias sobre todos nossos inimigos.
Pe. João Costa