O primeiro fruto que se há
de colher da consideração da primeira Palavra dita por Cristo na Cruz
Tradução: Permanência
Tendo
dado o significado literal da primeira palavra dita por Nosso Senhor na Cruz,
nossa próxima tarefa será esforçarmo-nos para recolher alguns de seus frutos
mais preferíveis e vantajosos. O que mais nos impressiona na primeira parte do
sermão de Cristo na Cruz é sua ardente caridade, que arde com fulgor mais
brilhante que o que possamos conhecer ou imaginar, de acordo com o que escreveu
São Paulo aos
Efésios: “e conhecer também aquele amor de Cristo, que excede
toda a ciência”¹. Pois nesta passagem o Apóstolo nos informa, pelo mistério da
Cruz, como a caridade de Cristo ultrapassa nosso entendimento, já que se
estende para além da capacidade de nosso limitado intelecto. Pois quando
sofremos qualquer dor forte, como uma dor de dente, ou uma dor de cabeça, ou
uma dor nos olhos, ou em qualquer outro membro do corpo, nossa mente está tão
atada a isto, que se torna incapaz de qualquer esforço. Então não estamos com
humor para receber os amigos nem para continuar com o trabalho. Mas, quando
Cristo foi pregado na Cruz, usou seu diadema de espinhos, como está claramente
expresso nos escritos dos antigos Padres; por Tertuliano, entre os Padres
latinos, em seu livro contra os judeus, e por Orígenes, entre os Padres gregos,
em sua obra acerca de São Mateus; e portanto se segue que Ele não podia mover a
cabeça para trás nem movê-la de um lado para o outro sem dor adicional. Toscos
cravos lhe sujeitavam as mãos e pés, e, pela maneira como lhe dilaceravam a
carne, ocasionavam doloroso e longo tormento. Seu corpo estava desnudo,
desgastado pelo cruel flagelo e pelo intenso ir-e-vir, exposto ignominiosamente
à vista do vulgo, aumentando por seu peso as feridas nos pés e mãos, numa
bárbara e contínua agonia. Todas estas coisas combinadas foram origem de muito
sofrimento, como se fossem outras tantas cruzes. Não obstante, ó caridade,
verdadeiramente a ultrapassar nosso entendimento, Ele não pensou em seus
tormentos, como se não sofresse, não estando solícito senão à salvação de seus
inimigos, e, desejando cobrir-lhes a pena dos crimes, clamou fortemente a seu
Pai: “Pai, perdoa-lhes”. Que teria feito Ele se esses infelizes fossem as
vítimas de uma perseguição injusta, ou se tivessem sido seus amigos, seus
parentes, ou seus filhos, e não seus inimigos, seus traidores e parricidas?
Verdadeiramente, ó benigníssimo Jesus! vossa caridade ultrapassa nosso
entendimento. Observo vosso coração no meio de tal tormento de injúrias e
sofrimentos, como uma rocha no meio do oceano que permanece imutável e
pacífica, ainda que as ondas choquem furiosamente contra ela. Pois vedes que
vossos inimigos não estão satisfeitos com infligir ferimentos mortais a Vosso
Corpo, senão que têm de escarnecer-vos a paciência, e uivar triunfalmente com
os maus tratos. E os olhais, digo eu, não como um inimigo que mede o
adversário, mas como um Pai que trata com os extraviados filhos, como um médico
que escuta os desvarios de um paciente que delira. Vós não estais aborrecido
com eles, mas os compadeceis, e os confiais ao cuidado de Vosso Pai
Todo-poderoso, para que Ele os cure e os deixe inteiros. Este é o efeito da
verdadeira caridade, estar de bem com todos os homens, não considerando nenhum
como inimigo, e vivendo pacificamente com aqueles que odeiam a paz.
Isto
é o que é cantado no Cântico do amor acerca da virtude da perfeita caridade:
“As muitas águas não puderam extinguir o amor, nem os rios terão força para o
submergir”2. As muitas águas são os muitos sofrimentos que nossas
misérias espirituais, como tormentas do inferno, infligem a Cristo através dos
judeus e dos gentios, os quais representavam as paixões obscuras de nosso
coração. Ainda assim, esta inundação de águas, quer dizer, de dores, não pode
extinguir o fogo da caridade que ardeu no peito de Cristo. Por isso a caridade
de Cristo foi maior que tal transbordamento de muitas águas, e resplandeceu
brilhantemente em sua oração: “Pai, perdoa-lhes”. E não só foram estas muitas
águas incapazes de extinguir a caridade de Cristo; também nem sequer depois de
anos puderam as tormentas da perseguição sobrepujar a caridade dos membros de
Cristo. Assim, a caridade de Cristo, que possuiu o coração de Santo Estêvão,
não podia ser esmagada pelas pedras com que foi martirizado. Estava viva então,
e ele orou: “Senhor, não lhes imputes este pecado” 3. Enfim, a
perfeita e invencível caridade de Cristo, que foi propagada nos corações de
mártires e confessores, combateu tão tenazmente os ataques de perseguidores,
visíveis e invisíveis, que se pode dizer com verdade, até o fim do mundo, que
um mar de sofrimento não poderá apagar a chama da caridade.
Mas
da consideração da Humanidade de Cristo ascendamos à consideração de Sua
Divindade. Grande foi a caridade de Cristo como homem para com seus verdugos,
mas maior foi a caridade de Cristo como Deus, e do Pai, e do Espírito Santo, no
dia último, para com toda a humanidade, que fora culpada de atos de inimizade
para com seu Criador, e que, se tivesse sido capaz, o teria expulsado do céu,
pregado a uma cruz, e assassinado. Quem pode conceber a caridade que Deus tem
para com tão ingratas e malvadas criaturas? Deus não poupou os anjos quando
pecaram, nem lhes deu tempo para arrepender-se; com freqüência, todavia,
suporta pacientemente o homem pecador, blasfemos, e aqueles que se enrolam no
estandarte do demônio, Seu inimigo, e não só os suporta mas também os alimenta
e cria, e até os alenta e sustém, porque “n’Ele vivemos, e nos movemos, e
existimos” 4, como diz o Apóstolo. Tampouco preserva somente o justo
e bom, mas igualmente o homem ingrato e malvado, como Nosso Senhor nos diz no
Evangelho segundo São Lucas. Tampouco nosso Bom Senhor meramente alimenta e
cria, alenta e sustém seus inimigos, senão que amiúde acumula seus favores
sobre eles, dando-lhes talentos, tornando-os honrosos, e os eleva a tronos
temporais, enquanto lhes aguarda pacientemente o regresso da senda da
iniqüidade e perdição.
E,
não nos ocupando aqui de várias características da caridade que Deus sente
pelos homens malvados, os inimigos de sua Divina Majestade, cada uma das quais
requereria um volume se as tratássemos singularmente, limitar-nos-emos agora
àquela singular bondade de Cristo que estamos tratando. Pois “Deus amou de tal
modo o mundo, que lhe deu seu Filho Unigênito”? 5. O mundo é o
inimigo de Deus, porque “todo o mundo está sob o [jugo do espírito] maligno”
6, como nos diz São João. E, “se alguém ama o mundo, não há nele o amor
do Pai” 7, como torna a dizer adiante. São Tiago escreve: “Portanto,
todo aquele que quiser ser amigo deste século constitui-se inimigo de Deus” e
“a amizade deste mundo é inimiga de Deus” 8. Deus, portanto, ao amar
este mundo, mostra seu amor a seu inimigo com a intenção de fazê-lo amigo seu.
Com este propósito enviou seu Filho, “Príncipe da Paz’9, para que
por seu intermédio o mundo possa ser reconciliado com Deus. Por isso, ao nascer
Cristo, os anjos cantaram: “Glória a Deus nas alturas, e paz na terra” 10.
Assim, Deus amou o mundo, seu inimigo, e deu o primeiro passo para a paz, dando
seu Filho, que pode trazer a reconciliação sofrendo a pena devida a seu
inimigo. O mundo não recebeu Cristo, acresceu sua culpa, rebelou-se diante do
único Mediador, e Deus inspirou a este Mediador pagar o mal com o bem orando
por seus perseguidores. Orou e “foi atendido pela sua reverência” 11.
Deus esperou pacientemente o progresso que teriam os Apóstolos por sua pregação
na conversão do mundo. Aqueles que tiverem feito penitência têm o perdão.
Àqueles que não se tiverem arrependido após tão paciente tolerância,
extermina-os o juízo final de Deus. Portanto, desta primeira palavra de Cristo
aprendemos, em verdade, que a caridade de Deus Pai — que “amou de tal modo o
mundo, que lhe deu seu Filho Unigênito, para que todo o que crê n’Ele não
pereça, mas tenha vida eterna” 12 — ultrapassa todo e qualquer
conhecimento.
1. Ef 3,19.
2. Cant 8,7.
3. Atos 7,59.
4. Atos 17,28.
5. Jo 3,16.
6. 1Jo 5,19.
7. 1Jo 2,15.
8. Tg 4,4.
9. Is 2,6.
10. Lc 2,14.
11. Hb 5,7.
12. Jo 3,16.
Fonte: http://www.permanencia.org.br/drupal/node/57
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