Tradução: Seminário
de Sintra (Portugal)
A Festa da Natividade de Nossa
Senhora desde muito cedo que foi celebrada no Oriente, e muitos textos dos
Padres o atestam; este, que traduzimos, foi pronunciado em Jerusalém, na Igreja
situada sobre o local da Piscina Probática, onde Jesus tinha curado o paralítico,
e onde a tradição – atestada por alguns apócrifos – situava a casa de Joaquim e
de Ana, o que vem a explicar certas alusões feitas ao longo do texto.
É um grande texto panegírico da
glória de Maria, por dela ter nascido o Salvador, com expressões que chegam a
parecer ter sido produzidas em estado de êxtase. Usando dados do Antigo
Testamento, dos Evangelhos e das Cartas, da tradição oral, de outros teólogos e
da própria liturgia bizantina, o nosso Doutor passa em revista a importância
para a salvação e para a Igreja do nascimento de Maria, louvando «en passant»
os seus pais, Joaquim e Ana. Um ponto muito importante: chama e afirma – é dos
primeiros a fazê-lo - Imaculada a Maria.
Sem deixar de fazer também todo o
desfiar das tipologias de Maria presentes no Antigo Testamento, S. João
Damasceno consegue louvar Nossa Senhora como poucos o fizeram, fornecendo a
base patrística para muitas das afirmações acerca de Maria e do seu lugar no
mistério da Redenção do homem que mais tarde vieram a efectuar-se. A sua
influência na Idade Média foi enorme, e pode mesmo dizer-se que a intuição de
base do Dogma da Assunção Corporal de Nossa Senhora ao céu está já presente na
obra do Damasceno.
Do humilde monge e
presbítero João Damasceno, discurso para o nascimento de Nossa Senhora
Santíssima, a Mãe de Deus e sempre Virgem Maria.
1. Vinde, todas as
nações, vinde, homens de todas as raças, línguas e idades, de todas as
condições: com alegria celebremos a natividade da alegria do mundo inteiro! Se
os gregos destacavam com todo o tipo de honras – com os dons que cada um podia
oferecer – o aniversário das divindades, impostos aos espíritos por mitos
mentirosos que obscureciam a verdade, e também o dos reis, mesmo se eles fossem
o flagelo de toda a existência, que deveríamos nós fazer para honrar o
aniversário da Mãe de Deus, por quem toda a raça mortal foi transformada, por
quem o castigo de Eva, nossa primeira mãe, foi mudada em alegria? Com efeito,
uma ouviu a sentença divina: «Darás à luz no meio de penas»; a outra ouviu, por
seu turno: «Alegra-te, oh Cheia de Graça». À primeira disse-se: «Inclinar-te-ás
para o teu marido», mas à segunda: «O Senhor está contigo». Que homenagem
ofereceremos então nós à Mãe do Verbo, senão outra palavra? Que a criação
inteira se alegre e festeje, e cante a natividade de uma santa mulher, porque
ela gerou para o mundo um tesouro imperecível de bondade, e porque por ela o
Criador mudou toda a natureza num estado melhor, pela mediação da humanidade.
Porque se o homem, que ocupa o meio entre o espírito e a matéria, é o laço de
toda a criação, visível e invisível, o Verbo criador de Deus, ao se unir à
natureza humana, uniu-se através dela a toda a criação. Festejemos assim o
desaparecimento da humana esterilidade, pois cessou para nós a enfermidade que
nos impedia a posse dos bens.
2. Mas porque nasceu a
Virgem Maria de uma mulher estéril? Àquele que é o único verdadeiramente novo
debaixo do sol, como coroamento das Suas maravilhas, deviam ser preparados os
caminhos por maravilhas, para que lentamente as realidades mais baixas se
elevassem de modo a serem as mais altas. E eis uma outra razão, mais alta e
mais divina: a natureza cedeu o lugar à graça, pois ao vê-la tremeu, e não quis
mais ter o primeiro lugar. Como a Virgem Mãe de Deus devia nascer de Ana, a
natureza não ousou prevenir o fruto da graça, mas permaneceu ela própria sem
fruto, até que a graça trouxesse o seu. Era necessário que fosse primogénita
aquela que deveria gerar «o Primogénito de toda a criação, no Qual tudo
subsiste». Oh Joaquim e Ana, casal venturoso! Toda a criação está em dívida
para convosco, porque através de vós ela pôde oferecer ao Criador o dom – entre
todos o mais excelso – de uma Mãe venerável, a única digna d’Aquele que a
criou. Ditosos os rins de Joaquim, de onde saiu uma semente totalmente
imaculada, e admirável o seio de Ana, graças ao qual se desenvolveu lentamente,
onde se formou e de onde nasceu uma tão santa criança! Oh entranhas que
levastes um céu vivo, mais vasto que a imensidade dos céus! Oh moinho onde foi amassado
o Pão vivificante, segundo as próprias palavras de Cristo: «Se o grão de trigo
não cair na terra e morrer, ficará só». Oh seio que aleitaste aquela que
alimentou o Aquele que alimenta o mundo! Maravilha das maravilhas, paradoxo dos
paradoxos! Sim, a inexprimível Encarnação de Deus, cheia de condescendência,
devia ser precedida por estas maravilhas. Mas como prosseguirei? O meu espírito
está fora de si, dividido que estou entre o temor e o amor; o meu coração bate
e a minha língua move-se: não posso suportar a alegria, as maravilhas deitam-me
por terra, o ardor apaixonado aprisionou-me num arrebatamento divino. Que o
amor vença, que o temor desapareça e que cante a cítara do Espírito:
«Alegrem-se os céus, exulte a terra»!
3. Hoje as portas da
esterilidade abrem-se, e uma porta virginal e divina avança: a partir dela, por
ela, o Deus que está acima de todos os seres deve «vir ao mundo»
«corporalmente», segundo a expressão de Paulo, ouvinte dos segredos inefáveis.
Hoje, da raíz de Jessé saiu uma vergôntea, de onde surgirá para o mundo uma
flor substancialmente unida à divindade.
Hoje, a partir da natureza terrena, um céu foi formado sobre a
terra por Aquele que outrora o tornara sólido separando-o das águas, elevando o
firmamento nas alturas. É um céu verdadeiramente mais divino e mais elevado que
o primeiro, porque Aquele que no primeiro céu criara o sol Se elevou a Si
próprio neste novo como um sol de justiça. Sim, há n’Ele duas Naturezas, apesar
da loucura dos Acéfalos, e uma só Pessoa, mesmo que os Nestorianos se
encolerizem! A Luz eterna, proveniente da Luz eterna antes de todos os séculos,
o Ser, imaterial e incorpóreo, tomou um corpo desta mulher, e como um esposo
que sai para fora de seu tálamo, assim fez Deus, tornando-se como tal filho da
raça terrena. Como um gigante Ele alegra-Se de percorrer os caminhos da nossa
natureza, de Se encaminhar, pelos Seus sofrimentos, para a morte, de atar o
homem forte e lhe arrancar os seus bens, isto é, a nossa natureza, e de reunir
na terra celeste a ovelha errante.
Hoje, o «Filho do Carpinteiro», O Verbo universalmente activo
d’Aquele que tudo construiu por Ele, o Braço Poderoso do Deus Altíssimo,
querendo afiar pelo Espírito - que é como o seu dedo – a lâmina embotada da
natureza, construiu para Si uma escada viva, cuja base está firmada na terra,
com o cimo a tocar os céus: Deus repousa sobre ela. É dela a figura que Jacob
contemplou, e por ela Deus desceu da Sua imobilidade, ou melhor, inclinou-Se
com condescendência, tornando-Se assim «visível sobre a terra, e conversando
com os homens». Estes símbolos representam a Sua vinda ao meio de nós, o seu
abaixamento condescendente, a sua existência terrena, o verdadeiro conhecimento
d’Ele próprio, dado a todos aqueles que estão sobre a terra. A escada
espiritual, a Virgem, está fixa na terra, pois na terra ela tem a sua origem,
mas a sua cabeça eleva-se até ao céu. A cabeça de toda a mulher é o homem, mas
para ela, que não conheceu homem, Deus Pai ocupa o lugar de sua cabeça: pelo
Espírito Santo, Ele concluiu uma aliança e, como semente divina e espiritual,
enviou o Seu Filho e Verbo, força omnipotente. Em virtude do beneplácito do
Pai, não é por uma união natural, mas é superando as leis da natureza, pelo
Espírito Santo e pela Virgem Maria, que o Verbo Se fez carne e habitou entre
nós. É por aqui que se vê que a união de Deus com os homens se cumpre pelo
Espírito Santo.
«Quem puder entender, que entenda»; «Quem tem ouvidos para ouvir,
que oiça». Descartemos as representações corporais: a divindade jamais sofreu
mudança, oh homens! Aquele que sem alteração gerou Seu Filho a primeira vez
segundo a natureza, sem alteração O gera agora de novo segundo a economia.
Disto é testemunha a palavra de David, antepassado de Deus: «O Senhor disse-me:
"Tu és Meu Filho, Eu hoje te gerei"». Ora este «hoje» não tem
cabimento na geração antes de todos os séculos, pois esta deu-se fora do tempo.
4. Hoje é edificada a
Porta do Oriente, que dará a Cristo «entrada e saída», e «essa porta estará
fechada». Nela está Cristo, «a Porta das Ovelhas», e «o Seu nome é Oriente»:
por Ele obtivemos acesso ao Pai das Luzes. Hoje sopraram as brisas anunciadoras
duma alegria universal. Alegre-se o céu nas alturas, que debaixo dele «exulte a
terra», que os mares do mundo bramam, porque no mundo acaba de ser concebida
uma concha, a qual pelo clarão celeste da divindade conceberá em seu seio,
gerando a pérola inestimável, Cristo. Dela sairá o «Rei da Glória», revestido
da púrpura de sua carne, para «visitar os cativos», e «proclamar a libertação».
Que a natureza transborde de alegria: a cordeirinha vem ao mundo, graças à qual
o Pastor revestirá a ovelha, tirando-lhe as túnicas da antiga mortalidade. Que
a virgindade forme os seus coros de dança, pois nasceu a Virgem que, segundo
Isaías, «conceberá e dará à luz um filho, que será chamado Emmanuel, o que quer
dizer "Deus connosco"». Aprendei, oh Nestorianos, e fugi à vossa
derrota: «Deus connosco»! Não é nem só um homem, nem um mensageiro, mas o
Senhor em Pessoa que virá e nos salvará.
«Bendito o que vem em nome do Senhor», «o Senhor é Deus, e
iluminou-nos»; «Celebremos uma festa» para o nascimento da Mãe de Deus.
Rejubila, Ana, «estéril que não davas à luz; ri de alegria e de júbilo, tu que
não tiveste as dores de parto»! Rejubila, Joaquim: de tua filha «um menino nos
nasceu, um filho nos foi dado (...) e ser-lhe-á dado este nome: Anjo do grande
Conselho (quer dizer, Salvação do Universo) Deus Forte». Que Nestório fique
vermelho e meta a mão sobre a boca. A criança é Deus; portanto, como não seria
ela a Mãe de Deus, ela que O colocou no mundo? «Se alguém não reconhece por Mãe
de Deus a Santa Virgem, está separado da divindade». A frase não é minha, mas
no entanto pertence-me: recebi-a como precioso tesouro e herança teológica do
meu pai Gregório, o Teólogo.
5. Oh Joaquim e Ana,
casal bem-aventurado e verdadeiramente sem mancha! Pelo fruto do vosso seio
fostes reconhecidos, segundo a palavra do Senhor: «Pelos seus frutos os
reconhecereis». A vossa conduta foi agradável a Deus e digna daquela que nasceu
de vós. Tendo levado uma vida casta e santa, engendrastes a jóia da virgindade,
aquela que deveria permanecer Virgem antes, durante e depois do parto, a única
sempre Virgem de espírito, de alma e de corpo. Convinha, de facto, que a
virgindade saída da castidade produzisse a Luz única e monógena, corporalmente,
pela benevolência d’Aquele que A gerou sem corpo – o Ser que não gera, mas que
é eternamente gerado, para Quem ser gerado é a única qualidade própria da Sua
Pessoa. Oh que maravilhas, e que alianças estão neste menino! Oh Filha da
esterilidade, virgindade que engravida, nela se unirão divindade e humanidade,
sofrimento e impassibilidade, vida e morte, para que em todas as coisas o menos
perfeito seja vencido pelo melhor! E tudo isto para minha salvação, oh Mestre!
Amas-me tanto que não realizaste esta salvação nem pelos anjos, nem por nenhuma
outra criatura, mas tal como já a minha criação, também a minha regeneração foi
Tua obra pessoal. Assim, eu exulto, faço despertar a minha alegria e o meu
júbilo, volto à fonte das maravilhas, e embriagado de uma torrente de alegria,
toco de novo a cítara do espírito e canto o hino divino da natividade.
6. Oh Joaquim e Ana,
casal castíssimo, «par de rolas» no sentido místico! Observando a lei da
natureza, a castidade, merecestes os dons que ultrapassam a natureza: gerastes
no mundo uma Mãe de Deus sem esposo. Depois de uma existência santa e piedosa
numa natureza humana, gerastes uma filha superior aos anjos e que agora reina
sobre eles. Oh Filha graciosíssima e dulcíssima, oh lírio nascido entre os
espinhos, da descendência nobilíssima e real de David! Por ti a realeza
encheu-se com o sacerdócio; por ti foi cumprida «a mudança da Lei», e revelado
o espírito escondido sob a letra, pois que a dignidade sacerdotal passou da
tribo de Levi à de David. Oh Rosa nascida dos espinhos do judaísmo, que enche o
universo de um perfume divino! Oh filha de Adão e Mãe de Deus! Ditosos os rins
e o seio de onde surgistes! Ditosos os braços que te levaram, os lábios que
experimentaram os teus castos beijos, os lábios de teus pais, para que em tudo
tu fosses eternamente virgem. Hoje é para o mundo o início da salvação.
«Aclamai o Senhor, terra inteira, cantai, exultai, tocai instrumentos». Elevai
a vossa voz, «fazei-a escutar sem temor», porque na Santa Probática nos nasceu
uma Mãe de Deus, de quem quis nascer o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo.
Tremei de alegria, oh montanhas, naturezas racionais, voltadas
para o cume da contemplação espiritual: a montanha do Senhor, refulgente, vem
ao mundo, ultrapassando todas as montanhas e todas as colinas, isto é, os anjos
e os homens; dela, sem intervenção da mão do homem, Cristo quis desprender-Se,
Ele que é a Pedra Angular, Pessoa Una, que aproxima em Si aquilo que está
distante: a divindade e a humanidade, os anjos e os homens, os gentios e o
Israel carnal num só Israel espiritual. «Montanha de Deus, montanha de
abundância, montanha que Deus escolheu para Seu repouso. Os carros de Deus vêm
aos milhares, com seres refulgentes» da graça divina, querubins e serafins. Oh
cume mais santo que o Sinai, não coberto nem por fumo, nem por trevas, nem por
tempestades, nem sequer por fogo perecível, mas pelo esplendor que ilumina do
Santíssimo Espírito. No Sinai, o Verbo de Deus tinha gravado a Lei sobre tábuas
de pedra, pelo Espírito, dedo divino; aqui, pela acção do Espírito Santo e pelo
sangue de Maria, o próprio Verbo encarnou, dando-se á nossa natureza como um
remédio de salvação mais eficaz. Antes, era o maná; aqui, está Aquele que deu o
maná e a sua doçura.
Que a morada célebre que Moisés construiu no deserto com matérias
preciosas de todo o tipo, e ainda antes dela a morada do nosso pai Abraão, se
apaguem diante da morada de Deus, viva e espiritual. Ela foi o repouso, não só
da energia divina, mas da Pessoa do Filho, que é Deus, presente
substancialmente. Que a arca recoberta de ouro reconheça que não tem nada de
comparável com Maria, e da mesma forma a urna de ouro com o maná, o candelabro,
a mesa e todos os objectos do culto antigo: eles foram honrados porque todos a
prefiguravam, como sombras do verdadeiro protótipo.
7. Hoje, o Criador de
todas as coisas, Deus Verbo, fez um livro novo, saído do coração do Pai para
ser escrito, como se fosse por uma cana, pelo Espírito, que é a língua de Deus.
Esse livro foi dado a um homem que conhecia as letras, mas que não o lia. José,
com efeito, não conheceu Maria, nem a significação do mistério em si. Oh filha
toda santa de Joaquim e de Ana, que escapaste aos olhares dos Principados e das
Potestades e aos «assédios inflamados do maligno», e que viveste no tálamo do
Espírito, para seres guardada intacta e te tornares esposa de Deus e Mãe de
Deus por natureza! Oh filha toda santa, que apareceste nos braços de tua mãe,
tu és o terror das potências de rebelião! Oh filha toda santa, alimentada do
leite maternal, e rodeada das legiões angélicas! Oh filha amada de Deus, honra
de teus pais, gerações de gerações te proclamam bem aventurada, como tu própria
o afirmaste com verdade! Oh filha digna de Deus, beleza da natureza humana, reabilitação
de Eva, nossa primeira mãe! Por teu nascimento, aquela que tombara foi
redimida. Oh filha toda santa, esplendor do sexo feminino! Se a primeira Eva,
com efeito, foi culpada de transgressão, e se por sua causa «a morte fez a sua
entrada no mundo» (porque ela se colocou ao serviço da serpente contra o nosso
primeiro pai), Maria, que se fez a serva da vontade divina, enganou a serpente
enganadora e introduziu no mundo a imortalidade.
Oh filha sempre Virgem, que pode conceber sem intervenção humana,
porque Aquele que concebeste tem um Pai Eterno! Oh filha da raça terrena, que
levas em teus braços divinamente maternais o Criador! Os séculos rivalizavam
entre si para saber qual deles se honraria de te ver nascer, mas o desígnio
fixado antecipadamente de Deus, «que fez os séculos» colocou fim a essa
rivalidade, e os últimos tornaram-se os primeiros, eles a quem foi atribuída a
felicidade da tua Natividade. Na verdade, tu és mais preciosa que toda a
criação, pois só de ti o Criador recebeu em partilha as primícias da nossa
matéria humana. A Sua Carne foi feita da tua carne, o Seu Sangue do teu sangue;
Deus alimentou-Se do teu leite, e os teus lábios tocaram os lábios de Deus. Oh
maravilhas incompreensíveis e inefáveis! Na presciência da tua dignidade, amou-te
o Deus do universo; porque te amou, predestinou-te, e nos «últimos tempos»,
chamou-te à existência, e constituiu-te Mãe para gerar um Deus e alimentar o
Seu próprio Filho e Verbo.
8. Diz-se que os
contrários servem de remédio contra os contrários, mas os contrários não nascem
uns dos outros. Mesmo se cada ser é na sua natureza um tecido de contrários,
ele próprio provém da predominância da causa que o fez nascer. De facto, da
mesma forma que o pecado, ao operar para mim a morte por meio do bem, mostra em
extremo a sua natureza pecaminosa, da mesma forma o Autor dos bens, pelo meio
dos contrários desses bens, opera para nós o bem que Lhe é natural, porque
«onde abundou o pecado, superabundou a graça». Se tivéssemos conservado a nossa
primeira comunidade com Deus, não teríamos merecido a Segunda, maior e mais
extraordinária. De facto, pelo pecado, fomos julgados indignos da primeira
união, porque não conservámos o dom recebido. Mas pela compaixão de Deus fomos
perdoados e tomados sob a Sua guarda, para que a comunhão fosse assegurada,
porque nos quer conservar unidos a Ele, sem nenhuma beliscadura, Aquele que nos
recebeu sob a Sua protecção.
Sim, toda a terra pejava de fornicações, e o povo do Senhor,
possuído «pelo espírito de fornicação», errava longe do Senhor seu Deus, longe
d’Aquele que o tinha adquirido «com mão forte e braço poderoso», que com sinais
e prodígios o tinha feito sair da «casa da escravidão» do Faraó, o tinha
conduzido através do Mar Vermelho e guiado «por uma nuvem de dia, e noite inteira
por um luzeiro de fogo». O seu coração voltava-se para o Egipto, e o povo do
Senhor tornou-se «aquele que não é o povo do Senhor»; aquele que obtinha
misericórdia, tornou-se aquele que não a merecia, e aquele que era amado,
tornou-se aquele que não era amado.
Eis então a razão pela qual uma Virgem vem agora ao mundo, como
adversária da ancestral fornicação; ela foi dada como esposa ao próprio Deus, e
gerou a misericórdia de Deus. Assim foi estabelecido como povo de Deus aquele
que até aí não era o Seu povo; excluído da Sua misericórdia, obteve
misericórdia; não amado, é agora amado. Dela nasce o Filho Bem-Amado de Deus,
no Qual Ele colocou as Suas complacências.
9. «Uma vinha de belos
sarmentos» foi gerada no seio de Ana, e ela produziu um fruto cheio de doçura,
fonte de um néctar abundante de vida eterna para os habitantes da terra.
Joaquim e Ana fizeram-se semeadores de justiça, e recolheram um fruto de vida.
Eles foram iluminados pela luz do conhecimento, procuraram o Senhor, e daí lhes
veio um fruto de justiça. Que a terra tenha confiança! «Filhos de Sião,
alegrai-vos no Senhor vosso Deus, porque o deserto ficou verdejante»: aquela
que era estéril deu o seu fruto; Joaquim e Ana, como montanhas místicas,
fizeram brotar vinho doce. Permanece na alegria, oh Ana venturosa, por teres
dado à luz uma mulher, porque essa mulher será a Mãe de Deus, porta da luz,
fonte de vida, e reduzirá nada a acusação que pesava sobre a mulher.
Os homens nobres do povo desejarão vê-la, e diante dessa mulher os
reis das nações prostrar-se-ão, oferecendo-lhe presentes. Entregá-la-ás a Deus,
rei universal, adornada da beleza das suas virtudes como de «brocados de ouro»,
ornada da graça do Espírito, de cuja glória ela se reveste. A glória da mulher
é o homem, e é-lhe dada a partir de fora; mas a glória da Mãe de Deus é
interior, e é fruto do seu seio.
Oh mulher amabilíssima, três vezes bem-aventurada! «Bendita és tu
entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre»! Oh mulher, filha do Rei
David e Mãe de Deus, Rei do Universo! Oh divina e vivente obra-prima, na qual
Deus Criador Se alegrou, de quem o espírito é governado por Deus e atento
somente a Ele, e de quem todo o desejo se eleva apenas Àquele que é o único
amável e desejável, que não te encolerizas senão contra o pecado e contra aquele
que o fez nascer! Terás uma vida superior à natureza, porque não é para ti que
a terás, já que também não é para ti que tu nasceste. Terás antes a tua vida
para Deus, e é por causa d’Ele que vieste à vida, por causa de Quem servirás à
salvação universal, para que o antigo desígnio de Deus, a Encarnação do Verbo e
a nossa divinização, se cumpra através de ti. A tua vontade é alimentares-te
das palavras divinas e fortificares-te com a sua seiva, como «oliveira fecunda
na casa de Deus», como «árvore plantada à beira das águas» do Espírito, como
árvore da vida, que deu o seu fruto no tempo que lhe foi destinado: o fruto que
é o Deus Encarnado, Vida eterna de todos os seres. Guardas todos os pensamento
gostoso e útil para a alma, mas todo aquele que é supérfluo e que seria um
perigo para a alma tu o rejeitas ainda antes de o provar. Os teus olhos «estão
sempre voltados para o Senhor», olhando a luz eterna e inacessível. Teus
ouvidos escutam a palavra de Deus e deleitam-se com a cítara do Espírito; foi
por eles que o Verbo entrou para Se fazer Carne. Tuas narinas respiram
deliciadas o aroma dos perfumes do Esposo, que é Ele próprio um perfume,
espontaneamente derramado para perfumar a Sua humanidade: «O teu nome é um
perfume que se espalha», diz a Escritura. Os teus lábios louvam o Senhor, e
estão ligados aos Seus lábios. A tua língua e o teu palato discernem as
palavras de Deus e saciam-se com a suavidade divina. Oh coração puro e sem
mácula, que vê e deseja o Deus imaculado!
É neste seio que o Ser ilimitado veio habitar; do seu leite se
alimentou Deus, o Menino Jesus. Oh porta de Deus, sempre virginal! Eis as mãos
que suportam Deus, e esses joelhos que são um trono mais elevado que os
querubins: por eles «as mãos fracas e os joelhos trémulos» foram fortalecidos.
Os seus pés são guiados pela lei de Deus como por uma lâmpada que brilha, e
correm após Ele sem se voltarem, até que tenham feito chegar aquela que ama
junto do Bem-Amado. Em todo o seu ser ela é o tálamo do Espírito, a Cidade de
Deus Vivo, que «alegra os canais do rio», isto é, as correntes dos carismas do
Espírito: «Toda bela, toda próxima de Deus». Dominando os querubins, mais alta
que os serafins, próxima de Deus: é a ela que esta palavra se aplica!
10. Oh maravilha que
ultrapassa todas as maravilhas: uma mulher é colocada mais alto que os
serafins, porque Deus surgiu abaixado «um pouco inferior aos anjos»! Que o
sapientíssimo Salomão se cale, e não torne a dizer: «Nada de novo debaixo do
sol». Oh Virgem cheia da graça divina, templo santo de Deus, que o Salomão
espiritual, o Príncipe da Paz, construiu e habita, o ouro e as pedrarias não te
dão mais beleza, mas mais que o ouro, é o Espírito que te dá o teu esplendor.
Por pedrarias, tens a pérola preciosíssima, Cristo, a Brasa da divindade.
Suplica-Lhe que toque os nossos lábios, para que, purificados, Lhe cantemos,
com o Pai e o Espírito, a natureza única da Divindade em três Pessoas: «Santo,
Santo, Santo, Senhor Deus dos Exércitos».
Santo é o Pai, que quis que em ti e por ti se cumprisse o mistério
que predeterminara antes de todos os séculos. Santo é o Forte, o Filho de Deus,
e Deus Monógeno, que hoje te faz nascer, primogénita de uma mãe estéril, para
que, sendo Ele próprio Filho Único do Pai e «Primogénito de toda a criatura»,
possa nescer de ti, como Filho único de uma Virgem-Mãe, «Primogénito de uma
multidão de irmãos», semelhante a nós e por ti participante da nossa carne e do
nosso sangue. Apesar disso, não te fez nascer de um só pai ou de uma só mãe,
para que ao único Monógeno fosse reservado em perfeição o privilégio de Filho
Único: Ele é, com efeito, Filho Único, somente Ele de um Pai só, somente Ele de
uma Mãe só.
Santo é o Imortal, o Espírito de toda a santidade, que pelo orvalho
da Sua Divindade te guardou intocada pelo fogo divino: é isto que significou
antecipadamente a sarça ardente.
Eu te saúdo, oh Porta das Ovelhas, morada santíssima da Mãe de
Deus. Eu te saúdo, oh Porta da Ovelhas, domicílio ancestral da tua rainha, antigamente
redil das ovelhas de Joaquim, mas hoje tornada Igreja do rebanho espiritual de
Cristo e imitação do céu. Outrora recebias uma vez por ano um anjo de Deus, que
agitava as águas e devolvia a saúde a um só homem, livrando-o do mal que o
paralisava; agora recebes multidões de potências celestes que celebram connosco
a Mãe de Deus, Abismo de Maravilhas, fonte da cura universal. Tu recebeste, não
um anjo servidor, mas o «Anjo do Grande Conselho», descido sem ruído algum
sobre o velo de lã como uma chuva de bondade, Aquele que renovou toda a
natureza, doente e a ponto de se perder, com uma saúde inalterável e uma vida
sem velhice: por Ele, o paralítico que em ti jazia saltou como um veado. Eu te
saúdo, oh preciosa Porta das Ovelhas, e que se multiplique a tua graça!
Eu te saúdo, Maria, filha dulcíssima de Ana. De novo para ti o
amor me impele. Como descrever o teu caminhar cheio de seriedade, os teus
vestidos, a graça de teu rosto, a maturidade do discernimento num corpo
juvenil? A tua forma de estar foi modesta, distante de todo o luxo e de toda a
indolência; o teu caminhar era grave, sem precipitação, sem preguiça; o teu
carácter era sério, temperado de júbilo, de uma perfeita reserva a propósito
dos homens – disto é testemunho a inquietação que te surgiu aquando da proposta
inesperada do anjo. A teus pais dócil e obediente, tinhas humildes sentimentos
nas mais altas contemplações, palavra amável, provinda de uma alma pacífica. Em
resumo: que outra digna morada senão tu para Deus? Com razão todas as gerações
te proclamam bem-aventurada, oh glória insigne da humanidade! Tu és a honra do
sacerdócio, a esperança dos cristãos, a planta fecunda da virgindade, porque é
através de ti que o renome da virgindade se estendeu aos confins do mundo.
«Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o Fruto do teu ventre». Aqueles que
confessam a tua maternidade divina são benditos, e malditos aqueles que a
negam.
11. Joaquim e Ana,
casal abençoado, recebei de mim estas palavras de aniversário. Oh filha de
Joaquim e de Ana, oh Soberana, acolhe a palavra deste teu servo pecador, mas
inflamada pelo amor, e para quem tu és a única esperança de alegria, a
protectora da vida e, junto de teu Filho, a reconciliadora e firme garantia da
salvação. Possa tu aliviar-me do fardo dos meus pecados, dissipar a névoa que
obscurece o meu espírito e o peso que me agarra à matéria. Possas tu deter as
tentações, governar felizmente a minha vida e conduzir-me pela mão até à
felicidade do Alto. Concede ao mundo a paz, e a todos os habitantes ortodoxos
desta cidade uma alegria perfeita e a salvação eterna, pelas orações de teus
pais e de todo o Corpo da Igreja. Assim seja, assim seja! «Salve, oh cheia de
graça, o Senhor está contigo! Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o
fruto de teu ventre», Jesus Cristo, o Filho de Deus. A Ele a Glória, com o Pai
e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém.
Belíssimo texto do grande São João Damasceno.
ResponderExcluirSe não me engano, ele é o padre da Igreja que deu os mais sólidos fundamentos ao dogma da Assunção de Nossa Senhora, reportando-se a uma atíquissima tradição relativa à dormição da Senhora.
Pe. João Batista