Isso é confirmado pelas palavras do Apóstolo, Farei uma obra em vossos dias, que nela não podereis acreditar se alguém antes não a tiver revelado (At 13,41). Confirma-o também, o que falou o Profeta Habacuc: Será feita uma obra em vossos dias que ninguém acreditará quando for narrada (Hab 1,5).
A graça e o amor de Deus para conosco são tão grandes, que Ele fez por nós mais do que podemos compreender. Não se deve, porém, crer que, quando Cristo morreu por nós, a Divindade também morreu. NEle morreu a natureza humana; não morreu enquanto Deus, mas enquanto homem.
Três exemplos esclarecerão essa verdade.
Um deles, encontramos em nós mesmos. Sabe-se que quando um homem morre, na separação que há entre a alma e o corpo, a alma não morre, mas o corpo, a carne.
Assim também na morte de Cristo não morreu a divindade, mas a natureza humana.
Pode-se aqui fazer a seguinte objeção: - Se os judeus não mataram a divindade, evidentemente o pecado deles, matando Cristo, não foi maior do que se tivessem morto um outro homem.
Respondamos a essa objeção:
Se alguém sujasse as vestes com as quais o rei estava vestido, cometeria falta tão grande como se tivesse sujado o próprio rei. Assim também os judeus. Como não puderam matar Deus, matando a natureza humana assumida por Cristo, eles mereceram severa punição, como se tivessem assassinado a própria divindade.
Como dissemos acima, o Filho de Deus é o Verbo de Deus, e o Verbo de Deus Encarnado é como a palavra de Deus escrita em uma carta. Se alguém rasgasse a carta do rei, cometeria a mesma falta daquele que tivesse rasgado a palavra do rei.
Por isso os judeus pecaram tão gravemente como se tivessem morto o Verbo de Deus.
Podes ainda perguntar:
- Que necessidade havia de o Verbo de Deus padecer por nós?
- Grande necessidade, e por duas razões. Uma, porque foi remédio para os nossos pecados; outra, porque foi um exemplo para as nossas ações. Foi, sim, um remédio, porque contra todos os males que contraímos pelo pecado, encontramos o remédio na Paixão de Cristo.
Contraímos pelo pecado cinco males:
O primeiro, é a própria mancha do pecado.
Quando um homem peca, conspurca a sua alma, porque, como a virtude a embeleza, o pecado a enfeia. Lê-se em Baruc: Por que estás, ó Israel, na terra dos inimigos, e te contaminaste com os mortos? (3,10). Mas a Paixão de Cristo lavou esta mancha. Cristo, na sua Paixão, fez do seu sangue um banho para nele lavar os pecadores: Lavou-os do pecado no sangue (Ap 1,5).
- No Batismo a alma é lavada no Sangue de Cristo, por que este sacramento recebe do Sangue de Cristo a força regeneradora. Por isso, quando alguém batizado se macula pelo pecado, faz uma injúria a Cristo e o seu pecado é maior que o cometido antes do batismo. Lê-se na Carta aos Hebreus: O que desprezou a lei de Moisés, após ouvido o testemunho de dois ou três, deve morrer. Como não deve merecer maiores suplícios, aquele que pisou no Sangue do Filho de Deus e considerou impuro o Sangue da Aliança? (10,28-29).
O segundo mal que contraímos pelo pecado é nos tornarmos objeto da aversão de Deus.
Assim como quem é carnal ama a beleza da carne, Deus de modo semelhante ama a beleza espiritual, que é a beleza da alma. Quando, por conseguinte, a alma se deixa contaminar pelo mal do pecado, Deus fica ofendido e odeia o pecador. Lê-se no Livro da Sabedoria: Deus odeia o ímpio e a sua impiedade (14,9).
- Mas a Paixão de Cristo remove essas coisas, por que ela satisfez ao Pai ofendido pelo pecado, cuja satisfação não poderia vir do homem. A caridade e a obediência de Cristo foram maiores que o pecado e a desobediêneia do primeiro homem. Lê-se em S. Paulo: Sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho (Rom 5,10). (26)
O terceiro mal é a fraqueza.
O homem, pecando pela primeira vez, pensa que depois pode abster-se do pecado. Acontece, porém, o contrário: debilita-se pelo primeiro pecado e fica propenso para pecar mais. O pecado vai dominando cada vez mais o homem, e este, por si mesmo, coloca-se em tal estado que não pode mais se levantar. É como alguém que se lançou num poço. Só pode sair dele pela força divina. Depois que o homem pecou, a nossa natureza ficou debilitada, corrompida, e, por isso mesmo, ficou ele mais propenso para o pecado.
- Mas Cristo diminuiu essa fraqueza e corrupção, bem que não as tenha totalmente apagado. O homem foi fortalecido pela Paixão de Cristo e o pecado, enfraquecido, de sorte que este não mais o dominará. Pode, por este motivo, auxiliado pela graça divina, que é conferida pelos sacramentos, cuja eficácia deriva da Paixão de Cristo, esforçar-se para sair do pecado. Lê-se em S. Paulo: O nosso velho homem foi crucificado juntamente com Ele, para que fosse destruído o corpo do pecado (Rom 6,6). Antes da Paixão de Cristo, poucos havia sem pecado mortal. Mas, depois dela, muitos viveram e vivem sem pecado mortal.
O quarto mal é a obrigação que temos de cumprir a pena do pecado.
A justiça de Deus exige que o pecado seja punido, e a pena é medida pela culpa. Como a culpa do pecado é infinita, porque ele vai contra o bem infinito, Deus, cujo mandamento o pecador desprezou, também a pena devida ao pecado mortal é infinita.
- Mas Cristo pela sua Paixão livrou-nos dessa pena, assumindo-a Ele próprio. Confirma-o S. Pedro: Os nossos pecados (Lê, a pena do pecado) Ele carregou no seu corpo (1Ped2,24). Foi de tal modo exuberante a virtude da Paixão de Cristo, que, ela só, foi suficiente para expiar todos os pecados de todos os homens, mesmo que fossem em número de milhões. Eis o motivo pelo qual aquele que foi batizado, foi também purificado de todos os pecados. É também por esse motivo que os sacerdotes perdoam os pecados. Do mesmo modo, aquele cujo sofrimento mais se assemelha ao da Paixão de Cristo, consegue um maior perdão e merece maiores graças.
O quinto mal contraído pelo pecado foi nos exilarmos do reino do céu.
É natural que aqueles que ofendem o rei sejam obrigados a sair da pátria. O homem foi afastado do paraíso por causa do pecado: Adão imediatamente após o pecado foi expulso do paraíso, e sua porta lhe foi trancada.
- Mas Cristo, pela sua Paixão, abriu aquela porta e novamente chamou os exilados para o reino. Quando foi aberto o lado de Cristo, foi também a porta do paraíso aberta; quando o seu Sangue foi derramado, a mancha foi apagada, Deus foi aplacado, a fraqueza foi afastada, a pena foi expiada, e os exilados foram convocados para o reino. Por isso é que foi logo dito ao ladrão: Estarás hoje comigo no Paraíso (Lc 23,43). Observe-se que nesse momento não foi dito – outrora; que, também, não foi dito a outrem - nem a Adão, nem a Abraão, nem a Davi; foi dito, hoje, isto é, logo que a porta foi aberta, e o ladrão pediu e recebeu perdão. Lê-se na carta aos Hebreus: Confiantes na entrada no santuário pelo Sangue de Cristo (10,19).
Fica assim esclarecido como a Paixão de Cristo foi útil, enquanto remédio contra o pecado. Mas a sua utilidade não nos foi menor, enquanto ela nos serviu de exemplo. Como disse S. Agostinho: ”A Paixão de Cristo é suficiente para ser o modelo de toda a nossa
Vida. Quem quer que queira ser perfeito na vida, nada mais é necessário fazer senão
desprezar o que Cristo desprezou na cruz, e desejar o que nela Ele desejou. Nenhum exemplo de virtude deixa de estar presente na cruz. Se nela buscas um exemplo de caridade, - ninguém tem maior caridade do que aquele que dá sua vida pelos amigos (Jo 15,13).
Ora, foi o que Cristo fez na cruz, Por isso, já que Cristo entregou a sua vida por nós, não
nos deve ser pesado suportar toda espécie de males por amor a Ele. O que retribuirei ao Senhor, por todas as coisas que Ele me deu? (SI 115,12). Se procuras na cruz um exemplo de paciência, nela encontrarás uma imensa paciência.
A paciência manifesta-se extraordinária de dois modos: ou quando alguém suporta grandes males pacientemente, ou quando suporta aquilo que poderia ser evitado e não quis evitar.
Cristo na cruz suportou grandes sofrimentos: O vós todos que passais pelo caminho, parai e vede se há dor igual à minha! (Je 1,17); Como a ovelha levada para o matadouro, e como o cordeiro silencioso na tosquia(1 Ped 2,23).
Cristo na Cruz suportou também os males que poderia ter evitado, mas não os evitou: julgais que não posso rogar a meu Pai e que Ele logo não me envie mais que doze legiões de Anjos? (Mt 26,53). Realmente, a paciência de Cristo na cruz foi imensa!
Corramos com paciência para o combate que nos espera " com os olhos fitos em Jesus, o autor da nossa fé, que a levará ao termo: Ele que, lhe tendo sido oferecida a alegria, suportou a cruz sem levar em consideração a sua humilhação" (Heb 36,17).
Se desejares ver na cruz um exemplo de humildade, basta-te olhar para o crucifixo. Deus quis ser julgado sob Pôncio Pilatos e morrer: A vossa causa, Senhor, foi julgada como a de um ímpio (Jo 36,17). Sim, de um ímpio, porque disseram: Condenêmo-lo a uma morte muito vergonhosa (Sab 2,20). O Senhor quis morrer pelo seu servo, e Aquele que dá a vida aos Anjos, pelo homem: Fez-se obediente até à morte (Fil 2,8).
Se queres na cruz um exemplo de obediência, segue Aquele que se fez obediente ao Pai, até à morte:Assim como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecados; também pela obediência de um só homem, muitos se tornaram justos (Rom 5,19).
Se na cruz estás procurando um exemplo de desprezo das coisas terrenas, segue Aquele que é o Rei e o Senhor dos Senhores, no qual estão os tesouros da sabedoria, mas que na cruz aparece nu, ridicularizado, escarrado, flagelado, coroado de espinhos, na sede saciado com fel e vinagre, e morto. Não te deves apegar às vestes e às riquezas, porque dividiram entre si as minhas vestes (SI 29,19); nem às honras, porque Eu suportei as zombarias e os açoites; nem às dignidades, porque puseram em minha cabeça uma coroa de espinhos que trançaram; nem às delícias, porque na minha sede deram-me vinagre para beber (SI 68,22).
Comentando este texto da Carta aos Hebreus - Que, apesar de lhe oferecerem alegria, suportou a cruz, desprezando a humilhação dela (12,2) -, Agostinho nos diz: O homem, Cristo lesus, desprezou todos os bens terrenos, para mostrar que devem ser desprezados.
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